— Caio? Está me ouvindo?
Sim,
estou te ouvindo. É o que eu deveria dizer, mas palavra
nenhuma sai da minha boca. Sinto gosto ruim na língua. Por que minha cabeça dói
tanto? Assim como o desfocar de uma lente fotográfica, meus olhos, lentamente,
se abrem. Um forte clarão me impossibilita de mantê-los abertos por muito tempo.
Pisco duas vezes. Vejo rostos. Um, dois, três, quatro pessoas em volta. Ou
serão cinco?
Fecho meus olhos mais uma
vez.
— Caio? — uma voz
feminina ecoa em minha direção. — Está tudo bem?
Sinto alguém tocar meu
pulso. Um cheiro familiar surge no ar.
Eu
desmaiei?
— Ele está vivo, galera — David. Reconheço sua voz firme e
aguda.
Dedos seguram em meu
pulso e me erguem, fazendo-me sentar.
— O que houve? —
pergunto, esfregando minhas têmporas.
David, Helena, Mônica e
Carla. Quatro rostos familiares me cercam. David está agachado, sorrindo e segurando
em meu pulso. Helena de pé, fitando-me nos olhos e mantendo braços cruzados.
Mônica e Carla do lado, curiosas. E...
— Quem é essa? — minha
pergunta sai baixo o suficiente para eu duvidar se realmente entenderam. Minha
garganta está seca. — Quanto tempo eu fiquei no chão?
— Dois minutos? —
responde Helena.
Dois
minutos?
Sorrio. Coloco-me de pé,
ainda que atordoado. Sinto um caroço em minha nuca, provavelmente por culpa do
tombo que levei. Não havia desmaiado desde muito tempo, quando ainda era um
garoto que sofria fortemente de crises de ansiedade e síndrome do pânico.
Pensando bem, parece que
ainda sou esse garoto.
Vejo um rosto pouco
familiar em minha frente. Olhos verdes e piercing no nariz. Cabelo curto, chegando até altura dos ombros; além de mechas azuis.
Por algum motivo, que eu ainda não consigo lembrar, eu conheço essa garota.
— Parece que você perdeu
mesmo a visão, não foi? — pergunta ela, em um frágil sussurro.
Agora eu me lembro. Ainda
assim, sem saber o que dizer, permaneço em silêncio. Recordo-me de caminhar apressadamente
e trombar em seu corpo, exatamente como ocorreu dois minutos atrás. Eu estava
com medo, havia deixado um professor desentendido em sua sala, e então, perdido
e sem direção, me choquei com toda força contra essa menina de olhos claros.
Ela me xingou e eu simplesmente ignorei.
Sempre serei um garoto amedrontado.
— Ele é mudo? — pergunta
novamente, franzindo os cenhos.
— Caio? Está tudo bem com
você? — sinto os dedos de David em minha testa, como se quisesse medir minha
temperatura. Por que não consigo respondê-lo? O que está acontecendo?
Uma mão alcança meu
ombro.
— Caio? — Helena. — Você está bem?
Não pode ser. Não agora.
É apenas uma garota. Uma garota que me rejeitará sem hesitar, como aconteceu
durante todos esses anos. Não posso confiar nas reações do meu corpo.
Balanço minha cabeça,
afastando, ou tentando, toda ideia confusa em minha mente.
— Sim, estou bem —
respondo, engolindo em seco. — Caio, prazer.
Enxergo seus olhos mais
uma vez.
— Maia — responde ela.
Não afasto o olhar e nem encaro outro ponto distante. Não me sinto
constrangido. — Parece que você gosta mesmo de me acertar, não é?
Demoro poucos segundos
para entender e sorrir.
— Peço desculpas — digo.
Deslizo meu dedo sobre o caroço em minha nuca. Parece que ficou maior. — Eu...
Bem... Sinto muito. Desculpe.
Sou
um idiota.
— Então era você? — Maia
ergue uma das mãos, revelando um pequeno panfleto, o mesmo feito por David.
— Sim... Quer dizer, tecnicamente
sim. Sou eu — sorrio timidamente. — Por acaso você...
Estava
a caminho da biblioteca?
Não consigo terminar, me
sinto constrangido demais em perguntar.
— É. Bom, não sei
exatamente. Talvez sim, talvez não — responde ela, sabendo perfeitamente o
sentido da minha pergunta. Gosto de seu tom de voz, agudo e apressado. — No
meio da dúvida, minha mãe diz que o melhor é não fazer. Mas não posso culpá-la,
sempre fugiu dos problemas antes.
Silêncio.
Vejo vazio em seu olhar,
ou será cansaço? Não sei. Nenhum sorriso surge em minha direção. Ela suspira.
Coloca uma mecha do cabelo atrás da orelha, mordendo o lábio inferior. Um fino
colar está em volta de seu pescoço, com uma pequena pedra esverdeada no centro.
— Então... — começa
David, interrompendo o breve silêncio presente. — Gostei dessa interação, entre
vocês dois, claro, mas... Caio, você desmaiou, está tudo bem mesmo? Parece que
ainda está meio idiota.
— Eu concordo com ele — afirma
Helena.
— Eu também — diz Mônica,
tendo suas primeiras palavras após meu desmaio. Havia esquecido o quanto sua
voz me deixa irritado. — Você parece um pouco vesgo, sabe?
Esfrego meus olhos.
— Não, eu estou bem.
Só... Bem... Eu desmaiei, não é? Acontece — deixo um sorriso escapar.
— Está tentando passar
confiança para alguém? — pergunta David.
— O que? Não. Por quê?
— Está sorrindo feito uma
baleia-piloto e até agora não deixou de encarar essa menina. Nunca vi você
olhar tanto nos olhos de alguém antes. Está tudo bem? — por um rápido momento,
talvez mais, sinto vontade de socar David.
Mas infelizmente ele tem
razão. Não havia notado, ou não queria notar, mas já faz algum tempo que meus
olhos estão fixos sobre Maia. Não demoro e logo encaro o chão sob meus pés. Algo
prende minha garganta. Não gosto de receber atenção, principalmente quando
estou movido pela timidez e constrangimento.
Ergo minha cabeça e
enxergo Maia mais uma vez. Seus olhos estão apertados em minha direção. Meu
coração está acelerado demais. Ela está enxergando todo defeito em meu rosto,
assim como o restante do corpo. Percebendo minhas orelhas de abanos, meus olhos
arregalados, minha boca ressecada e meu cabelo desgrenhado. Provavelmente está
achando graça e se arrependendo de segurar um panfleto idiota. Agora que
descobriu quem é o misterioso garoto por trás da interrogação, jamais aceitará minha
oferta.
Por
que eu quero que ela aceite?
— Maia, certo? — diz
Helena, se virando na direção da garota de cabelo curto. Sinto um frio em minha
barriga, temendo o que poderia surgir em seguida. — Agora que você sabe quem é
o garoto do panfleto, o que me diz?
— Sobre o que?
Helena faz um leve
movimento com a cabeça, indicando minha presença.
Não
faz isso, Helena.
— Está perguntando sobre
ser uma namorada de aluguel? — pela primeira vez desde que eu me lembre, Maia
sorri, mas que logo é contido. — Não. Quer dizer, não é o que eu procuro no
momento. Então não.
— Mas você está com
panfleto até agora e, se não percebeu, não tem ninguém na escola. Então... —
Helena ergue uma das sobrancelhas, deixando suas palavras no ar.
— O que você está dizendo,
senhorita? — Mônica parece não gostar e interrompe a conversa entre Maia e
Helena. — Caso não notou, o que eu acho que foi o caso, eu cheguei primeiro.
Por que ela seria acompanhante dele?
— Uma acompanhante? —
Maia volta sua atenção para mim rapidamente.
Engulo em seco.
— Não é uma acompanhante!
— rebate Helena no mesmo instante. — Sim, é uma acompanhante, mas por uma noite
apenas. Não é como se fosse uma acompanhante de luxo.
— Mas será um casamento,
o que eu acho que é bem pior. Casamentos são um porre, para falar a verdade —
Mônica revira os olhos.
— Então esse panfleto é
para um casamento? — novamente exibe seus dentes.
— Dinheiro fácil, não é
menina? — ironiza Mônica. — Eu achei que seria como nos filmes, sabe? Ter que
andar com ele de mão dada pela escola e fingir ser uma namorada, como esses
idiotas fissurados por filmes estrelares costumam fazer.
— O que não vai acontecer
com você, obviamente — sussurra Helena. — Caio jamais te escolheria.
— Por que tem tanta
certeza, menina das trevas? — Cruza os braços, apresentando uma séria
expressão.
— Nem preciso responder,
sua interesseira. Só está aqui por causa do dinheiro.
— E eu tenho culpa se
ofereceram uma recompensa para sair com esse idiota?
— Como é? — Helena se
exalta e ameaça avançar na direção de Mônica.
— Opa! Pode parando aí,
bonitona. — David entra na frente, segurando Helena. — Vamos nos acalmar, tudo
bem? Já está ficando tarde e Caio não gosta de brigas, sabe disso. Vamos
apenas... — pensa por um segundo. — Sair, o que me dizem? Respirar um pouco do
ar lá fora. Sabia que baleias também fazem isso?
— Esse garoto só sabe
falar de baleias? — Mônica também se mostra enraivecida.
— Melhor que falar de dinheiro,
seu olho gordo! — grita Helena.
— Acho que já entendemos,
não é mesmo? Não precisa dessa raiva toda — David continua segurando Helena.
Não posso negar minha
vontade incontrolável de girar o corpo e sair de perto de toda essa situação. Porém,
ainda que eu me sinta constrangido e extremamente desconfortável, algo faz meus
pés permanecerem no mesmo lugar. Maia. Não posso simplesmente caminhar para
fora, como eu fiz durante toda minha vida, ou jamais verei essa garota
novamente.
Gostaria
de ir ao casamento comigo?
Sinto as palavras presas
em minha língua, faltando pouco para sair. Mas não consigo. Minha garganta se
fecha, como se um fantasma estivesse me apertando agora. Meu corpo está paralisado.
Gostaria
de ir ao casamento comigo?
Novamente sinto vontade
de perguntar. Por que não consigo? Não é uma pergunta tão complicada assim.
Será o medo da rejeição?
Merda!
Encaro Helena por um
rápido segundo, já livre das mãos de David. Não tenho certeza se ela entendeu o
que eu gostaria de dizer. Meus olhos estão acuados demais para que ela possa
percebê-los. Sinto algo se agitando dentro do meu estômago. Só quero perguntar
se Maia gostaria de ir até o casamento comigo. Mas não funciona.
Cincos pessoas em
completo silêncio. Ainda sinto o clima tenso parar no ar. Mônica continua com
os olhos fixos sobre Helena, como se em sua mente milhares de pensamentos
assassinos passasse de segundo em segundo. Carla nada diz, tendo seu silêncio
como atributo fundamental. David e Helena não sabem o que fazer, assim como
Maia, que está no meio de um fogo cruzado. Meu corpo se mantém imóvel, sem
forças para falar e sem motivos para fugir.
— Desculpe — diz Maia,
baixinho.
Em um minuto ela já não
está presente. Seu corpo desaparece em questão de segundos, saindo de vista
pelo portão da escola. David e Helena arregalam os olhos, incrédulos. Não eu.
No fundo, eu sabia que não tinha todo tempo do mundo. Ela fez o que eu teria
feito. Na verdade, ela fez o que eu fiz momentos atrás. Um buraco se abre em
meu peito, como se toda animação e esperança fosse sugado para dentro,
deixando-me vazio, perdido. David coloca uma mão em meu ombro, parecendo
entender minha situação.
— Bem feito — diz Mônica,
ajeitando o cabelo e caminhando para fora da escola. Carla também desaparece,
sabendo que eu não poderia escolhê-la.
Sinto como se um caroço
estivesse entalado em minha garganta.
— Eu posso ir com você,
se quiser — sugere Helena, em um tom baixo, se aproximando de mim.
— Eu estou bem — digo.
Meus olhos se enchem d’água.
Por
que essa vontade de chorar?
Pisco várias vezes para
afastar o sofrimento inconveniente que surge nos olhos. Não gosto que me veem
chorando. Não tenho motivos para chorar.
— Vamos? — pergunta
David, abrindo caminho e revelando o livre corredor.
Tudo está silencioso. Sem
professores, alunos e diretores. Nem mesmo o zelador está por perto. Ainda
sinto o buraco em meu peito. Não sei por que me senti atraído por Maia. Não sei
sua história, não sei seu passado e não sei seus sonhos. Tudo o que eu pude
notar fora sua beleza e suas palavras apressadas.
Espero seja apenas um
sentimento momentâneo.
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Atualizado até capítulo 31
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