Uma mesa de jantar e três pratos
intocáveis sobre ela. Assim que eu, meu pai e minha irmã passam boa parte da
noite. Todos em completo silêncio. Meu pai olha apenas para o prato abaixo de
si, movimentando o garfo de um lado para o outro, percebendo que cozinhar nunca
foi meu ponto forte. Minha irmã se perde em seu celular, sustentada por um
fraco sorriso. Seus dedos são ágeis e incontroláveis.
Uma fraca iluminação
paira sobre nossas cabeças. Tudo é muito silencioso sem minha mãe por perto.
— Como foi hoje na escola,
filho? — pergunta meu pai, de forma monótona e um tanto sem interesse.
— Bem — minto, limpando minha
garganta. — Como foi o emprego?
— Bem — responde de
volta, suspirando baixinho. — Nada de novo, se quer mesmo saber. Sabia que
robôs fazem todo nosso trabalho? Semana passada demitiram o Jorge, posso ser o
próximo se não ficar esperto.
— É só fazer o que máquinas
não sabem — diz minha irmã, tendo suas primeiras palavras na noite. Seu olhar
ainda está vidrado sobre a tela de seu celular, como se fosse sua única fonte
de luz.
Meu pai gira o corpo em
sua direção, enxergando pequenos olhos castanhos e um cabelo escuro que está
escondido atrás da orelha. Minha irmã não faz questão de encará-lo de volta.
Continua com seu sorriso frágil.
— Como eu poderia fazer o
que elas não sabem? — pergunta ele com olhos apertados. — Elas são... máquinas.
E eu sou... eu. Única coisa de diferente que eu sei fazer é caquinha e xixi,
isso eu tenho certeza que elas não fazem.
Minha irmã ergue a cabeça,
com uma expressão azeda no rosto, e encara os olhos escuros de meu pai. Sua
boca se contorce levemente para baixo, enquanto suas sobrancelhas se juntam por
cima dos olhos franzidos.
— Eca, pai. — Nega com a
cabeça, em reprovação.
Um sorriso surge em meu
rosto, enquanto meu pai se mantém com a expressão de sempre: entediado e
desmotivado para comer o purê de batata em seu prato — ou o que deveria ser um
purê.
Subo para o meu quarto
minutos depois, deixando-os sentados na mesa. Em poucas horas ouvirei o barulho
da porta se abrindo no andar debaixo da casa, o que me faz pensar que tempo não
é o que tenho de sobra. Minha mãe com toda certeza questionará minha decisão de
passar mais um dia jogando videogame. O que posso fazer? Não tenho trabalhos de
escola para fazer, e o tédio não se afasta com tanta facilidade assim.
São 21h32; perdi dois
minutos importantes em minha vida. Caminho com passos apressados até o
videogame mais à frente e logo trato de ligá-lo, ajustando meu headset na orelha. Sento-me na cama e
ajeito o corpo na posição ideal, dobrando as pernas com uma almofada apoiada em
meu colo. Respiro fundo e dou início em mais uma partida de Matando os Dinossauros.
— Quem está pronto para
mais uma derrota? — Minha voz surge no ar, de forma autoritária e ameaçadora. Exatamente
o tom que eu gosto de passar para meus adversários. Mesmo sendo todos eles meus
colegas virtuais, obviamente.
— E aí, Caio. Espero que
não chore quando for derrotado. Porque você está frito, garoto! — Certamente é
a voz de John, com uma risada no final de cada frase e tom extremamente baixo e
agudo, como um verdadeiro adolescente passando pela puberdade.
— Não comemore antes da
hora, John. Sabemos que o verdadeiro campeão está conversando com vocês — Black
Jack. Bem, é esse o nome que demos a ele. Na verdade, ninguém sabe o verdadeiro
nome desse garoto, então apenas o chamamos assim.
— Como você é engraçado,
Black Jack. Até parece que seus pais não te ensinaram boas lições. Vocês sabem
que eu sou o melhor. — Peter, o único de todo o grupo que já revelou sua
identidade visual. Rechonchudo com um rosto abarrotado de espinhas. — Vamos botar
para quebrar, galera! — E um tanto quanto animado também.
É justamente nesse
momento, junto com todos esses garotos, que posso me sentir eu mesmo. Não
precisam saber como eu sou, não me olham nos olhos e não estão me julgando. Sou
apenas um adolescente em busca de diversão. Nesse caso, em busca do primeiro
lugar. Matar o maior número de dinossauros possíveis.
Confesso que minhas
habilidades são de alto nível. Portanto, John, Black Jack e Peter, espero que
tomem cuidado.
Porque
eu sou o verdadeiro campeão.
— Galera, eu tenho uma
única pergunta antes de começarmos a partida. Sei que não envolvemos nossa vida
social em jogo, somos meio que anonimatos nesse lance, mas tem alguém aqui que
namora? — pergunta Peter no momento em que o jogo se inicia. — Porque assim, não
quero ser enxerido e nem julgador, longe disso, mas vocês têm muito tempo
livres, não acha?
Um breve silêncio se faz
presente.
— Não precisam responder,
é só uma pergunta. Mas... Vocês sabem, ninguém aqui tem voz de pegador.
— Você disse voz de pegador?
— pergunta Black Jack.
— Sim, ele disse voz de pegador
— confirma John. — Eu ouvi claramente.
Risadas surgem no ar.
— E quanto a você,
“pegador”? Me fale mais de sua namorada, garanhão — ironiza John.
— Vocês sabem. Ela está
por aí — responde Peter, afinando de maneira significativa seu tom de voz.
— Por aí, é? — diz Black
Jack. — Concordo com você, o vento está mesmo por aí. Em todos os lugares, para
ser mais exato.
Não consigo me segurar e
deixo uma risada ecoar pelo quarto.
— Acho que alguém vai
chorar hoje — digo, sorrindo. — Não se preocupe, Peter. É só pedir sua namorada
invisível para te abraçar. Pronto, já abraçou.
— Boa, Caio! — Consigo
escutar Black Jack e John gargalharem com meu senso de humor. — Agora é melhor
nos concentrarmos nesse jogo, que uma garota chamada “olhos de aço” está
ganhando da gente.
— Essa daí não vai ganhar
de novo não! — diz John, aumentando seu tom de voz. — Rápido, galera! Matando
dinossauros! Matando dinossauros!
— Matando dinossauros!
Matando dinossauro! — Dizemos em um uníssono.
***
Segundo
dia de aula.
Meus olhos se abrem,
tendo como primeiro pensamento o segundo dia de aula. Alguns minutos se passam
até que eu consiga ter coragem o suficiente para me colocar de pé. Bom ânimo
não é bem meu sobrenome. Minha cabeça gira. Meus olhos ardem. Ficar até três
horas da madrugada, com amigos, jogando videogame, pode não ser o melhor para o
seu estado mental no dia seguinte.
Desço os degraus que fica
em frente ao meu quarto. Passos pesados e corpo cansado. Sinto-me como se
tivesse feito uma maratona. Encaro apenas a madeira que sustenta meus pés, não
conseguindo erguer minha cabeça. Vejo uma sombra logo à frente, sabendo que é
minha mãe.
— Bom dia — digo, descendo
todos os degraus.
Sabia que deveria ter
aceitado seus conselhos e dormido quando tive oportunidade. Olhos de Aço não me
deixou descansar um minuto sequer.
— Filho. — Sua voz ecoa
assim que me aproximo de seu corpo. —, cumprimenta nossa visita.
Espera...
ela disse visita?
Lentamente, com batidas
apressadas em meu coração e temendo o que acontecerá quando eu erguer a cabeça,
eu a obedeço. Meu cabelo está desgrenhado e ainda estou de pijama.
Merda!
Enxergo grandes olhos
azuis e sobrancelhas curvadas.
— Quanto tempo, primo. —
Um arrepio percorre minhas espinhas. Não pela voz estrondosa e animada, ou pela
presença que eu definitivamente não estava esperando, mas por saber que ele
está me olhando agora, enxergando todos os defeitos do meu corpo e rosto.
Minha mãe está sorrindo,
apesar de tudo. É o que sempre costuma fazer. Não eu. Deste modo, abaixo minha
cabeça e tento coçar meus olhos, em um movimento para esconder meu rosto. É o
máximo que eu consigo fazer.
Meu corpo fica paralisado.
Não consigo movimentar um músculo sequer do corpo.
Você
está passando vergonha. Não tente parecer um estranho. Tome uma atitude. Vá até
ele!
Com mãos e pés suados,
tendo em mente o que minha terapeuta me disse certa vez: “não ligue para o medo
em sua mente, faça ainda que necessite rastejar”, caminho até Tony. Lábios
ressecados. Coração acelerado.
Meu
Deus, ele está me vendo suar, não está? Minha cara de idiota e o medo estampado
em meus olhos.
— Tony — digo, erguendo novamente
meus olhos em sua direção. Estendo minha mão e rapidamente recuo.
O
que está fazendo, idiota?
— Você cresceu, em. —
Anos se passaram desde que nos encontramos pela última vez. Óbvio que eu
cresci. — Nem parece aquele garotinho franzino e chorão que costumava ser.
Bom
saber que eu era assim.
— Filho. — Minha mãe me
faz virar em sua direção. — Tony está aqui porque gostaria de te convidar para
o casamento dele, não é? — Olha para Tony, que está em sua frente, com um
sorriso aberto no rosto.
Casamento?
— Exatamente! — Parece
realmente animado com isso. Não consigo permanecer tanto tempo encarando seus
olhos. Então enxergo o chão por um momento. — Como deve saber, irei me casar. Então
vim pessoalmente entregar esse convite e dizer que seria uma honra ter você em
meu casamento, primo. Convidei sua mãe, mas infelizmente ela não poderá ir, nem
mesmo o seu... — Limpa a garganta antes de continuar. — Pai ou irmã, como você
sabe. Mas não tem problema, porque você vai, não é mesmo?
Vou?
Buscando entendimento ou
quem sabe ajuda para me tirar dessa situação, viro para minha mãe.
— Será o aniversário da
sua irmã, filho. — Ela faz questão de dizer, com a voz que por pouco não
aparece. — Mas ela disse que você pode ir ao casamento de Tony, então aceite o
convite.
— Então, o que me diz,
primo? — Tony estende o convite em minha direção, esperando por uma aprovação.
— Bem...
O
que eu devo dizer agora?
— Será um casamento e
tanto, filho. — Minha mãe tenta me incentivar.
— Você não faz ideia. —
Tony sorri.
— Claro?
Claro?
Eu disse claro? Meu Deus.
— Perfeito! — Eu enxergo
o pequeno convite em seus dedos; dourado com uma fita branca, e o pego. — Não
esquece, você precisa levar alguém.
— O que? — Meus olhos se
arregalam imediatamente.
— Como seus pais não vão
poder ir, nem sua irmã, eu tive que colocar você em outra mesa. E como é uma
mesa para quatros pessoas, contando com você, primo Lucas e a namorada dele,
você precisa de um acompanhante. Sabe como eu sou, né? Quero tudo perfeito.
Então seria melhor se levasse alguém, entende? Assim a mesa ficará preenchida e
ideal para vídeos e fotos. — Ele não deixa de sorrir um segundo sequer, dando
um tapa em meu ombro após a explicação.
— Não é ótimo, filho? —
pergunta minha mãe. — Assim vai poder levar uma garota, se você quiser.
— Uma garota? O primo
está namorando?
— Não. — Me apresso para
responder, envergonhado. — Não estou... Namorando. Não.
Seus olhos estão fixos em
mim, posso sentir. Suor escorre em minha testa. Minhas mãos estão formigando.
— Então terá duas semanas
para encontrar alguém. Aliás, adorei esse pijama de bolinhas. — Seu senso de
humor faz minha mãe gargalhar.
Tanto por causa do
nervosismo, ou vergonha que me sufoca, percebo que o convite dourado se agita
em minha mão.
Em um rápido movimento eu
o coloco no bolso da calça, escondendo-o.
Com um simples aceno de
cabeça, querendo me enfiar no primeiro buraco que surgir em minha frente, caminho
até o banheiro, deixando meu primo com minha mãe, perdidos entre conversas
sobre o quanto ele está maduro e o que espera do casamento agendado.
Fito meus olhos através
do espelho. Claramente consigo enxergar duas sombras debaixo dos olhos. Ambos
os cantos da minha boca se mantém curvados para baixo, como se toda felicidade
fosse sugada por uma alma desumana. Com um pouco de água da pia, que queima
minha mão de tão fria, jogo-a sobre o rosto. Um sentimento momentâneo de alívio
se pondera sobre mim.
Respiro fundo.
Ainda consigo ouvir vozes
surgindo do outro lado da casa. Risadas, conversas altas e elogios. Prefiro não
ter que caminhar até lá mais uma vez. Sento-me sobre o vaso e apoio meu queixo em
um punho fechado, como um verdadeiro pensador do século I. Em poucos minutos, quem
sabe mais, terei que sair dessa casa, caminhar até o matadouro e entrar em mais
uma carnificina. Preparado? Não. Só de imaginar sinto algo prender meu peito,
como paredes estreitas. Um frio invade meu corpo.
Respire
fundo, apenas respire fundo.
Solto o ar devagar, assim
como foi me ensinado.
Conte
até três e solte. Até três e solte.
Minhas mãos estão suadas,
assim como meus pés. Retiro o par de meias. Sinto calor. Quero tirar minha
blusa e sentir o vento em meu corpo. Não será possível. Janela alta demais. Merda.
Respire
fundo, apenas respire fundo.
É o que tento fazer.
Minutos depois, focado
apenas em escutar o barulho do meu coração, percebo que não há mais vozes pela
casa. Foram embora?
Levanto do vaso e sigo
até à porta, sorrateiramente. De leve, evitando o máximo de barulho possível,
giro a maçaneta. Está fria. Um vento fresco atinge meu corpo assim que abro a
porta. Não escuto mais ninguém. Nada de mãe, nada de primo. Apenas um silêncio,
profundo e sereno.
Saio do banheiro, já com
meu coração desapressado e minhas mãos calmas. Não sinto mais nervosismo em meu
corpo nem agitação em minha mente. Suspiro.
— Boa, primo. Dando aquela sujada na
porcelana, em. — Uma gargalhada surge perto de mim, enquanto vejo um corpo alto
e de porte físico caminhar por entre o corredor.
Merda.
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Atualizado até capítulo 31
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