Zeca, o Homem e o Cachorro

Zeca respirou fundo, fechando os olhos por um momento, tentando afastar as lembranças que, agora, já não eram mais um peso, mas sim um chamado. Seu peito subia e descia lentamente enquanto caminhava de volta para a kitnet. A cidade parecia adormecida, mergulhada na penumbra, e ele gostava disso. Gostava de sentir que tudo estava em silêncio, que ninguém estava olhando.

A besta dentro dele acordava aos poucos. Ele sentia. A lua cheia se aproximava.

Ele entrou em casa, trancou a porta e se jogou na rede. O teto velho rangia sob o peso do tempo, e a escuridão do quarto era quase acolhedora. Mas sua mente estava longe dali.

"E se eu não fosse assim?"

A pergunta ecoou como um sussurro em sua cabeça. Uma parte dele se perguntava como seria uma vida normal. Escola, amigos, uma namorada talvez…

Isadora.

O nome dela surgiu sem permissão em seus pensamentos, e ele franziu a testa. Desde que a conhecera, algo nele parecia diferente. Um incômodo estranho, como se seu instinto estivesse em conflito. Ela era tão cheia de vida, tão… inocente.

"Eu deveria ficar longe dela."

Ele sabia que deveria. Mas não queria.

Zeca passou a mão pelo rosto, exausto. O corpo estava inquieto, como se precisasse de algo que ele ainda não podia ter. Como um viciado esperando pela próxima dose.

O tempo passava devagar, mas ele sabia que logo chegaria a noite da transformação. Ele precisaria sair da cidade, encontrar um lugar seguro. Mas, no fundo, sabia que não era apenas isso.

Ele queria mais.

A fome por carne fresca nunca passava. Nunca diminuía.

E, dessa vez, talvez um simples animal não fosse suficiente.

A noite avançava, e Zeca permanecia deitado na rede, balançando lentamente enquanto sua mente mergulhava em um abismo escuro. O desejo crescia dentro dele, pulsando como algo vivo, algo que exigia ser alimentado.

Ele tentou fechar os olhos, mas as lembranças vinham como vultos na escuridão. O sangue quente escorrendo pelos dedos, o cheiro ferroso impregnado na pele, a sensação de dominar algo indefeso, de sentir a vida se esvaindo sob seu controle.

O coração dele acelerou.

"Eu preciso sair daqui."

Levantou-se de súbito, respirando fundo. A lua cheia ainda não havia chegado, mas a inquietação que precedia a transformação já fazia seu corpo formigar. Ele abriu a porta e saiu para a rua deserta. O ar frio da noite era um alívio, mas não suficiente.

Seus passos o levaram sem que ele percebesse. Quando se deu conta, estava na beira da cidade, onde as luzes dos postes já não alcançavam, onde apenas o som dos grilos e do vento podiam ser ouvidos.

Havia algo ali.

Zeca parou, seus olhos se ajustando à penumbra. A poucos metros, um cachorro revirava um saco de lixo, farejando restos de comida. O animal não percebeu sua presença de imediato, mas, quando o fez, ergueu a cabeça e rosnou, sentindo o perigo.

Os olhos de Zeca brilharam na escuridão.

Um sorriso lento se formou em seus lábios.

O cachorro recuou um passo, mas era tarde demais.

Zeca avançou.

O cachorro tentou correr, mas Zeca era rápido. Muito rápido. Em um impulso predatório, ele se lançou sobre o animal, derrubando-o no chão poeirento. O cão guinchou, debatendo-se desesperado, as patas arranhando o asfalto na tentativa de se livrar do aperto. Mas Zeca estava tomado por algo primitivo. Algo feroz.

Suas mãos firmaram o pescoço do animal e, com um estalo seco, ele quebrou a coluna do pobre bicho. O corpo ainda estremeceu por alguns segundos antes de ficar completamente imóvel. O silêncio da noite voltou, interrompido apenas pela respiração pesada de Zeca.

O cheiro do sangue quente o intoxicava. O peito subia e descia com excitação. Ele não pensou, não hesitou. A fome falou mais alto.

Curvando-se sobre o cadáver, Zeca rasgou a pele macia com os dentes, a carne cedeu sob sua mandíbula. Um gemido gutural escapou de sua garganta quando o gosto ferroso explodiu em sua boca. Estava delicioso. Tão melhor do que qualquer coisa que já havia comido.

Ele devorou pedaços inteiros, sentindo o calor escorrer por sua garganta, sujando suas mãos, seu rosto, impregnando-se em sua pele como um batismo de sangue.

Foi então que ouviu um som.

Um estalo de passos apressados.

Seus olhos, selvagens e vidrados, ergueram-se num ímpeto, e ali, parado sob a fraca luz de um poste, estava ele.

O homem da lanchonete.

Os olhos arregalados, a boca entreaberta em choque absoluto. Ele não se moveu por um segundo, como se o cérebro ainda estivesse processando a cena grotesca diante de si. Depois, como se despertasse de um pesadelo, deu um passo para trás, cambaleante.

Zeca se ergueu lentamente, o rosto sujo de sangue, o olhar fixo como um predador analisando sua próxima presa.

E então, o homem sussurrou em choque:

— Esse cachorro… era da dona Alzira…

O coração de Zeca disparou.

Ele havia sido visto.

O homem continuou parado, olhando para Zeca como se estivesse diante de algo impossível. Seus olhos desceram até o corpo dilacerado do cachorro, depois voltaram para o garoto, que estava com os lábios ainda manchados de sangue.

— Mas que diabos… — murmurou, engolindo seco.

Zeca não respondeu. Seu corpo inteiro estava tenso, o coração martelando contra o peito. A única coisa que passava por sua mente era que ele precisava agir rápido. Ele não podia deixar esse homem sair dali. Não podia deixar que ele espalhasse o que viu.

O homem, por outro lado, percebeu o perigo quase ao mesmo tempo. Deu um passo para trás, e mais outro, como quem tentava se afastar sem chamar atenção. Mas o olhar de Zeca já estava afiado como o de um caçador.

— Moleque… o que você é? — a voz do homem saiu baixa, vacilante.

Zeca permaneceu imóvel. Ele sentia o cheiro do medo impregnando o ar. E isso despertava algo dentro dele.

O homem respirou fundo, como se estivesse reunindo coragem, e então virou-se para correr.

Mas Zeca foi mais rápido.

Como um animal saltando sobre sua presa, ele avançou, derrubando o homem no chão de um golpe seco. O sujeito gritou, se debatendo, tentando empurrar Zeca para longe, mas a força do garoto era descomunal. Ele segurou a cabeça do homem e a bateu contra o asfalto, uma, duas, três vezes, até o sangue começar a se espalhar pelo chão.

A respiração de Zeca estava acelerada. Ele olhou para o rosto deformado do homem, que ainda respirava, os olhos semicerrados, a boca aberta como se tentasse dizer algo.

Na manhã seguinte, a cidade despertou sob um clima estranho, uma sensação de que algo terrível havia acontecido. Murmúrios corriam pelas ruas estreitas, sussurrados de boca em boca.

O corpo do homem foi encontrado ainda na madrugada, jogado na calçada, a cabeça esmagada contra o concreto, o rosto irreconhecível. O sangue seco havia desenhado padrões grotescos pelo chão. Ao seu lado, o cachorro de Dona Alzira jazia sem vida, o pequeno corpo destroçado como se tivesse sido atacado por um animal selvagem.

A polícia foi chamada, mas os moradores já estavam ali, reunidos, espiando por cima dos ombros uns dos outros, tentando compreender a cena horrenda. Dona Alzira estava entre eles, de pé, pálida como um fantasma. Seus olhos estavam fixos no corpo de seu cachorro, e uma mistura de horror e tristeza se estampava em seu rosto enrugado.

— Quem faria uma coisa dessas? — alguém murmurou na multidão.

— Um bicho… só pode ter sido um bicho grande, uma onça, talvez… — sugeriu um senhor de chapéu de palha, coçando a barba.

— E o homem? Não parece ataque de bicho, não… parece… outra coisa.

Os cochichos aumentaram. Medo. A cidade era pequena, e um crime desses não passaria despercebido.

Zeca assistia de longe, misturado à multidão, as mãos nos bolsos do moletom, o coração batendo forte.

Ele sentia os olhares de algumas pessoas se voltarem para ele de tempos em tempos, desconfiados, como se sentissem sua presença de forma instintiva.

Ele não deveria ter deixado o corpo lá.

Ele deveria ter feito o que sempre fazia: sumir com os rastros.

Mas por que não fez?

O pensamento o incomodava. Ele nunca fora descuidado. Mas, naquela noite, algo dentro dele não quis fugir. Ele quis deixar um recado.

E agora, sentindo a tensão no ar, vendo os olhos atentos dos moradores, ele percebeu que isso poderia ser um problema.

Um problema grande.

Zeca percebeu os dois policiais se aproximando antes mesmo de ouvirem seu nome ser chamado. Seu corpo enrijeceu, mas ele se obrigou a manter a expressão neutra. Era natural que viessem até ele. Afinal, morava ali perto e, pelo que parecia, o crime aconteceu há poucas ruas de distância.

— Você mora aqui por perto, né, garoto? — perguntou um dos policiais, um homem alto, de ombros largos e olhar cansado. Seu nome no distintivo dizia "Sgt. Arnaldo".

— Moro, sim, senhor — respondeu Zeca, evitando encarar os olhos do homem por muito tempo.

O outro policial, um sujeito magro de bigode ralo, tirou um bloquinho do bolso e começou a rabiscar algo enquanto falava:

— Você andou por essas ruas ontem à noite?

Zeca hesitou por uma fração de segundo antes de responder:

— Passei aqui mais cedo, mas depois fui direto pra casa. Dormi cedo.

Sargento Arnaldo cruzou os braços.

— E não ouviu nada? Nenhum grito, briga, cachorro latindo desesperado?

Zeca balançou a cabeça.

— Nada. Eu durmo pesado.

Os policiais se entreolharam, talvez ponderando sobre a resposta. O magrelo anotou algo no bloquinho e então ergueu o olhar para Zeca de novo.

— O homem morto… você já viu ele antes?

Zeca forçou uma expressão de dúvida, fingindo pensar.

— Acho que já… na lanchonete, né? Ele sempre ia lá.

— Sim, exatamente — o sargento Arnaldo confirmou. — Você conversou com ele alguma vez?

— Só uma vez, quando cheguei na cidade. Ele fez umas perguntas, mas nada demais…

— Que tipo de perguntas?

— Sobre de onde eu vim, onde estavam meus pais, essas coisas.

Os policiais trocaram olhares de novo, e Zeca sentiu o incômodo crescer dentro de si. Eles estavam tentando achar alguma ligação entre ele e a vítima.

— Certo… — Arnaldo disse, puxando um suspiro. — Se lembrar de qualquer coisa, mesmo que pareça pequena, nos procure, entendeu?

— Sim, senhor.

Os dois policiais agradeceram e se afastaram, mas Zeca sentiu que não havia convencido completamente. Ele os observou se dirigirem até Dona Alzira, que ainda estava de pé, abraçando um pano de prato como se aquilo pudesse conter seu luto pelo cachorro.

Ele precisava agir rápido.

A cidade era pequena demais para tantos segredos.

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