Besta e Solidão

Enquanto seu olhar vagueava pelo ambiente, as imagens da noite anterior começavam a emergir em sua mente, como fragmentos de um pesadelo profundo e retorcido. Ele se lembrou das garras, afiadas e cruéis, rasgando a carne com um prazer insano. Lembrou-se da fome insaciável que o consumia, do som grotesco dos dentes triturando ossos e da explosão de sangue quente espalhando-se pelo ar. Mas o pior de tudo eram os gritos – os gritos desesperados de seus avós, suplicando por uma morte rápida enquanto suas almas eram consumidas. A mistura de horror e realização pulsava em seu peito como um tambor ensurdecedor, reverberando em cada célula de seu corpo.

O sangue manchava seu rosto, escorrendo por suas bochechas e pescoço, misturando-se com as lágrimas secas que ele não conseguia identificar. Suas mãos pequenas ainda estavam cobertas pelos restos das vítimas que, em um passado distante, o haviam acolhido com carinho. Mas, ao invés de sentir apenas medo ou arrependimento, uma excitação mórbida crescia dentro dele. Era uma satisfação profunda, obscura, algo que se entranhava nas suas veias e fazia seu coração pulsar com uma batida primitiva. Como se parte dele tivesse experimentado o êxtase da violência, e esse desejo insaciável por mais estivesse agora incutido em seu ser.

Com um misto de choque e uma curiosidade sombria, Zeca se levantou, seus músculos doloridos, o corpo ainda marcado pela carne dos outros. Ele sentiu a textura pegajosa do sangue seco aderindo à sua pele, como se a substância viscosa estivesse impregnada em sua alma. Olhou ao redor, para as paredes manchadas, onde as marcas da carnificina estavam gravadas – marcas que pareciam gritar em silêncio, lembrando-o do abismo no qual ele havia se afundado. O chão estava coberto por fragmentos da sua própria humanidade. Um sussurro interno, baixo e quase inaudível, ecoou em sua mente, dizendo-lhe que aquilo – o massacre, a dor, a transfiguração – era apenas o começo.

Zeca cresceu isolado, dentro da mesma casa amaldiçoada e marcada pela tragédia, uma prisão de sangue e horror. Seus únicos companheiros eram os envelopes de dinheiro enviados por seu pai, que nunca mais apareceu para ver o filho. Ele aprendeu a sobreviver sozinho, se tornando uma sombra entre as sombras, evitando os olhos da vila, onde sua presença sempre causava arrepios e sussurros nas ruas. Ele nunca se aproximava de ninguém, temendo que alguém pudesse descobrir a monstruosidade que habitava seu interior. Especialmente durante as noites de lua cheia, quando ele se trancava em casa, permitindo que a maldição se consumasse em segredo, longe de qualquer testemunha, enquanto seu ser se desintegrava ainda mais, tornando-se algo ainda mais escuro, mais sedento.

Nas noites de lua cheia, o instinto o dominava de uma maneira brutal e incontrolável. Zeca se fechava no escuro, com o ar carregado de uma tensão que o fazia respirar ofegante. A transformação começava lenta, como se algo estivesse se arrastando para fora de suas entranhas, um monstro esperando para emergir. A cada fase da lua, ele sentia os ossos se retorcendo, os músculos se esticando, e uma fome primitiva tomando conta de sua mente. Não havia como fugir do chamado. Ele sabia o que viria, sabia que não havia mais controle sobre o que acontecia em sua pele. E, em algum lugar profundo dentro de si, ele desejava aquilo. Desejava a liberação, a carnificina, o banquete de sangue. Era o único momento em que ele se sentia vivo, apesar de tudo.

Durante esses episódios, Zeca não era mais o menino doce que seus avós haviam conhecido. Ele se tornava algo irreconhecível, uma fera sem consciência, completamente absorvida pela violência. Cada carne que ele devorava, cada grito que ele arrancava, era como uma droga que o viciava mais e mais. Ele sabia que havia algo dentro de si que não poderia ser curado. Ele era uma aberração, uma maldição, e o tempo, para ele, não tinha mais sentido. O que restava de sua humanidade era uma lembrança nebulosa, perdida nas brumas do que ele já fora.

À medida que os anos passavam, Zeca se tornava mais solitário, mais insuportável para a pequena vila que o cercava. Ele se afastava cada vez mais, escondido nas sombras da sua casa, alimentando-se apenas de carne crua e das memórias de uma vida que ele não podia mais alcançar. Ele parou de tentar se explicar, parou de tentar ser humano. Para ele, já não fazia diferença. O que o mundo pensava dele era irrelevante; o único peso que ele carregava era o da fome. E ela era insaciável, sempre em busca de mais, mais sangue, mais carne, mais morte.

Mas, no fundo, Zeca sabia que havia um preço a pagar. A cada transformação, a cada ataque, algo dentro de si se quebrava mais. A besta que o possuía não era mais uma simples maldição; ela era uma parte intrínseca dele, uma sombra que se alimentava de sua alma. Zeca já não se reconhecia no espelho, e temia o que ele se tornaria. As noites de lua cheia estavam se tornando mais frequentes, mais poderosas. Ele sentia que algo o arrastava para um abismo do qual não poderia mais sair. Ele tinha medo do que veria na próxima vez que despertasse.

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Comments

Regrater

Regrater

Não me deixe presa nesta situação, autora. Atualize logo, por favor.

2025-03-19

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