Memórias

Quando o sol já se inclinava para o horizonte, pintando o céu com tons alaranjados, Zeca ouviu o ronco de um motor se aproximando. Ele se virou e viu uma caminhonete encostando em frente à sua casa. A carroceria empoeirada indicava que o veículo já tinha rodado muito, mas ainda era uma máquina imponente.

Ele estreitou os olhos, surpreso ao ver Expedito no volante.

O velho riu ao notar a expressão do garoto.

— Tá achando o quê, hein, forasteiro? Só porque eu trabalho na roça e ando naquela motinha véia não quer dizer que eu num tenha algo melhor, não. — Bateu a mão no capô da caminhonete com orgulho.

Antes que Zeca pudesse responder, a porta do passageiro se abriu e uma garota desceu.

Isadora pisou no chão com leveza, e naquele instante, parecia que o tempo diminuiu o ritmo ao redor. Seus cabelos longos e negros balançavam levemente com o vento da tarde, e os olhos castanhos reluziam à luz do crepúsculo. A pele morena, os lábios bem desenhados e o jeito seguro de andar lhe davam um ar de imponência natural. Ela vestia uma calça jeans escura e uma blusa clara, simples, mas que nela parecia ter sido feita sob medida.

Zeca sentiu algo incomum revirar dentro dele. Não era só a beleza dela que chamava atenção, mas a forma como ela parecia carregar uma energia vibrante, algo que o deixava inquieto sem entender o motivo.

— Então é esse o tal do estranho? — Isadora perguntou, cruzando os braços e analisando Zeca com um sorriso travesso.

Ele desviou o olhar por um segundo antes de responder com um simples:

— Sou eu.

Ela arqueou uma sobrancelha e lançou um olhar divertido para o pai.

— Vai ser interessante.

Zeca não soube dizer se ela falava da escola ou dele mesmo. Seja como for, algo lhe dizia que aquela garota não seria uma presença fácil de ignorar.

O motor da caminhonete ronronava suavemente enquanto seguiam pelas ruas da cidade rumo à escola. O interior do veículo estava silencioso, exceto pelo som dos pneus rolando sobre o asfalto e pelo burburinho distante da cidade ao entardecer. Zeca mantinha o olhar fixo na paisagem pela janela, esforçando-se para não olhar para Isadora.

Mas era impossível ignorar sua presença ao lado. O perfume dela se misturava com o cheiro de terra e couro velho da caminhonete, criando uma sensação estranha no peito de Zeca. Ele não entendia direito o que era, só sabia que precisava manter distância. Ele não podia se permitir sentir nada.

— Você é sempre assim calado? — Isadora perguntou, quebrando o silêncio.

Zeca respirou fundo antes de responder de forma curta e seca:

— Só não gosto de falar muito.

Expedito riu do banco do motorista.

— Pois vai ter que se acostumar, meu filho. Isadora fala por dois.

A garota revirou os olhos, mas riu também.

Poucos minutos depois, chegaram à escola. O prédio era antigo, com paredes descascadas e pátio iluminado por luzes amareladas. Jovens já se espalhavam pelo portão e corredores, formando pequenos grupos animados. Assim que desceram da caminhonete, Isadora puxou Zeca pelo braço e o arrastou em direção a um grupo de amigos.

— Gente, esse aqui é o Zeca. Novo na cidade, vai estudar com a gente.

Os olhares recaíram sobre ele, analisando-o com curiosidade. Um dos garotos, alto e de cabelo raspado, estendeu a mão.

— E aí, cara, seja bem-vindo. Sou Matheus.

Zeca hesitou por um instante antes de apertar a mão do rapaz. Outra garota, ruiva e de olhos claros, sorriu simpática.

— Eu sou Amanda. E aí, de onde você veio?

Zeca sentiu o peito apertar. Essa era exatamente o tipo de pergunta que ele não queria responder.

— Do interior — respondeu, sem se aprofundar.

— E tua família? Mora sozinho? — Matheus insistiu.

Zeca sentiu o sangue esquentar. Não queria mentir, mas a verdade era perigosa demais.

— Moro sozinho.

O grupo trocou olhares rápidos, mas Isadora interferiu antes que começassem a questioná-lo ainda mais.

— Deixem o garoto respirar, gente. Aposto que já tem muita coisa na cabeça.

Zeca lançou um olhar discreto para ela, agradecido.

Ele sabia que não podia se permitir criar laços. Não queria conhecer ninguém. Não queria que ninguém conhecesse ele. A qualquer momento, a besta dentro dele poderia despertar… e então, não haveria amizade que o impedisse de fazer estragos.

A conversa no grupo continuou, mas Zeca se manteve em silêncio, respondendo apenas quando necessário. A escola tinha aquele cheiro característico de tinta velha misturada com perfume barato dos estudantes, e ele sentia-se deslocado ali. Era um ambiente comum, normal demais para alguém como ele.

O sino tocou, e os alunos começaram a se dispersar em direção às salas de aula. Isadora caminhou ao lado de Zeca, guiando-o até a secretaria para finalizar sua matrícula. Expedito já havia adiantado a papelada, então o processo foi rápido. Logo ele estava com um caderno novo nas mãos, pronto para enfrentar a primeira aula.

— Nossa sala é essa aqui — Isadora apontou para uma porta descascada. — E aí, tá nervoso?

Zeca deu de ombros.

— Não.

Isadora sorriu.

— Claro que tá. Mas relaxa, ninguém morde aqui.

Se ao menos ela soubesse.

A sala estava cheia, mas não lotada. Zeca escolheu um lugar no fundo, afastado das janelas e das atenções. Isadora sentou-se algumas cadeiras à frente, sempre rodeada por colegas. Durante toda a aula, Zeca tentou se concentrar no que o professor dizia, mas a verdade é que sua mente vagava. Ele não pertencia ali. A qualquer momento, poderia perder o controle e acabar machucando alguém.

O tempo passou devagar. A cada olhar curioso que recebia dos outros alunos, sentia-se mais inquieto. Quando finalmente o sino tocou, ele foi o primeiro a sair da sala, querendo apenas voltar para sua kitnet e se afastar de todos. Mas Isadora, como sempre, apareceu ao seu lado no corredor.

— E aí, sobrevivemos ao primeiro dia — ela brincou.

Zeca apenas assentiu, apertando o passo.

— Ei, calma aí! — Ela segurou seu braço, fazendo-o parar. — Você tá sempre fugindo das pessoas assim?

Ele encarou-a por um momento, sua expressão fechada.

— Não sou bom em fazer amigos.

Isadora cruzou os braços, um sorriso de desafio nos lábios.

— Então é bom ir se acostumando. Porque agora você tem pelo menos uma.

Zeca sentiu o estômago revirar. Ele não queria amizades. Mas algo na determinação dela o fez hesitar.

Talvez, por um tempo, ele pudesse fingir que era um garoto normal. Pelo menos até a próxima lua cheia.

As noites passaram rápidas, e Zeca se acostumou à rotina. Trabalhar de dia, estudar à noite. Ele ainda não se permitia criar laços, mas também não os evitava como antes. Com o tempo, foi aceitando a presença de Isadora, que insistia em incluí-lo nos diálogos, mesmo quando ele respondia com monossílabos. Expedito parecia satisfeito com o esforço do garoto, sempre dizendo que trabalho e estudo "faziam o homem se endireitar na vida".

Mas agora, faltavam poucos dias para a lua cheia.

Ele sabia que era questão de tempo. Logo, sua rotina meticulosamente construída desmoronaria. Não importava quantos dias ele fingisse ser normal, aquilo não mudaria o que ele era.

O que ele sempre foi.

Naquela noite, deitado na rede de sua kitnet, Zeca encarava o teto, perdido em pensamentos que evitava há anos.

Se não fosse um monstro... como seria sua vida?

Se não tivesse aquela maldição, teria crescido? Se não tivesse feito aquilo com sua mãe? Teria frequentado a escola como um adolescente normal, preocupado com provas e não com o cheiro de sangue? Será que teria amigos de verdade? Um futuro?

Ele apertou os olhos, tentando bloquear as memórias que insistiam em ressurgir.

Sua mãe, caída no chão frio. O sangue escorrendo. Os olhos dela fixos nele.

Por quê?

Por que ele fez aquilo?

Ele sentiu as mãos tremerem. Sua mente lhe dava respostas que ele não queria aceitar. Não tinha sido um impulso. Não tinha sido o descontrole da besta dentro dele.

Foi escolha.

Sua escolha.

Porque, no fundo, ele gostava daquilo.

Gostava da morte.

O pensamento lhe causou ânsia. Ele se sentou na rede, passando as mãos pelo rosto suado. Precisava se afastar de tudo. Precisava de ar.

Levantou-se e saiu, caminhando sem rumo pelas ruas silenciosas. Mas não importava o quanto tentasse escapar de si mesmo.

O monstro estava ali, o monstro era ele.

Zeca caminhava pelas ruas escuras, sentindo o vento frio da noite cortar sua pele. O asfalto úmido refletia as poucas luzes dos postes, e o silêncio da cidade pequena o envolvia. Seus passos ecoavam em sua mente, assim como as memórias que ele tentava sufocar.

Era só uma criança.

Era o que ele tentava se convencer. Mas, no fundo, sabia que nunca tinha sido uma criança como as outras.

Ele se lembrou do quintal da casa onde morava com os pais. Pequeno, mas cercado de vida. Sua mãe adorava criar animais, e sempre o chamava para ajudar a alimentá-los. Ele sorria, corria animado, fazia tudo como um filho exemplar.

Mas, sozinho... era diferente.

Os pintinhos vieram primeiro. Criaturas frágeis, pequenas, com penas macias demais. Ele se lembrava de como gostava de segurá-los na palma da mão e sentir o calor dos pequenos corpos tremendo contra sua pele. Mas um dia, a curiosidade veio junto com um pensamento repentino: O que acontece quando param de se mexer?

A resposta veio quando ele apertou um deles entre os dedos, sentindo o minúsculo peito se debater freneticamente até não sobrar nada além de um silêncio absoluto.

A mãe chorou quando encontrou os pintinhos mortos no canto do galinheiro. Ele chorou também, se jogando nos braços dela, fingindo tristeza. E funcionou. Ela o consolou, dizendo que devia ter sido algum gato ou rato.

Mas ele sabia a verdade.

Depois vieram os filhotes de porco. Mais resistentes. Mais barulhentos. Ele gostava de vê-los correr pelo quintal, tropeçando nas próprias pernas. Até que um dia, pegou um deles e o segurou dentro de um balde de água. Primeiro, esperneios. Depois, um silêncio agonizante. Ele observou o corpo enrijecer, e algo dentro dele se acendeu.

A mãe ficou devastada, pensando que o animal tinha caído no balde sozinho. Ele ficou ao lado dela, triste por fora, mas por dentro... ele queria mais.

Então veio o cachorro.

O filhote era seu presente de aniversário. Um vira-lata pequeno e bobo, que o seguia por toda parte. Um amigo, diziam. Mas Zeca não queria um amigo. Ele queria saber.

Saber quanto tempo um cachorro resistia sem ar.

Ele segurou o focinho do animal com força e observou os olhos assustados se arregalarem, as patinhas arranhando o chão. O desespero dele era fascinante. A vida lutava para ficar. Mas Zeca não soltou. E então, veio a morte.

A mãe chorou de novo. O pai prometeu comprar outro cachorro. E Zeca fingiu tristeza. Como sempre.

Agora, parado no meio da rua deserta, ele sentiu os lábios se abrirem em um sorriso involuntário.

As lembranças, que haviam surgido como culpa, agora eram outra coisa.

Desejo.

A mesma sensação pulsava dentro dele. O mesmo calor que sentira quando pequeno.

O monstro dentro dele sempre esteve ali. A lua cheia apenas lhe dava permissão.

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