Ao despertar com os primeiros raios de sol. Ele se lembrou dos corpos mutilados dos animais, das garras cobertas de sangue e do alívio que sentiu ao saciar, ainda que parcialmente, sua fome. Mas sabia que aquilo não seria suficiente por muito tempo. Precisava de um lugar para morar e um lugar seguro para se transformar. Ele teria pelo menos mais alguns dias até a próxima transformação.
Zeca passou o dia inteiro andando pela cidade, observando cada detalhe das ruas e dos bairros. Algumas avenidas eram movimentadas demais para seu gosto, com lojas, mercados e bares cheios de gente que notaria sua presença rapidamente. Outras áreas eram mais residenciais, com casas simples de muros baixos e portões enferrujados. Ele viu algumas placas de aluguel e resolveu tentar a sorte.
A primeira casa era um pequeno sobrado no fim de uma rua silenciosa, com uma varanda coberta de plantas e um dono de olhar calculista. O homem, um sujeito magro de cabelo ralo, fez perguntas demais. Queria saber onde Zeca trabalhava, de onde vinha, se tinha família na cidade. Zeca desconversou, mas percebeu que aquele tipo de pessoa sempre suspeitaria de um garoto sozinho, que sumiria todas as noites em uma mesma semana do mês. Agradeceu e saiu dali.
A segunda opção era uma kitnet nos fundos de uma casa térrea, bem arrumada, com um senhor gorducho e sorridente como proprietário. O homem parecia amigável demais, insistia em saber mais sobre ele, ofereceu até um desconto se pagasse os meses adiantados. Mas Zeca percebeu que aquele era o tipo de gente que gostava de bisbilhotar. Imaginou-se voltando ensanguentado depois de uma transformação, com aquele velho curioso espiando pela janela. Não daria certo.
Já estava escurecendo quando ele encontrou uma rua mais afastada, onde as casas eram velhas, algumas de madeira, com cercas baixas e jardins abandonados. Foi lá que encontrou Dona Alzira. Uma senhorinha pequena, de costas ligeiramente encurvadas e cabelos brancos bem presos em um coque. Seus olhos eram pequenos e atentos, mas cansados, e seu rosto enrugado parecia carregar décadas de histórias. Ela usava um vestido floral desbotado e chinelos gastos, e o recebeu com um olhar desconfiado no começo, mas logo suavizou a expressão ao ver que Zeca não era um encrenqueiro.
— Você quer alugar a kitnet? — perguntou com uma voz rouca, coçando o queixo.
— Sim. Preciso de um lugar tranquilo — respondeu ele.
Ela o observou por um momento antes de assentir.
— Bem, é pequena, mas serve. E fica aqui, do lado da minha casa. Você paga o aluguel em dia e não me dá trabalho, certo?
Zeca olhou para a pequena kitnet anexada à casa dela. Era simples, com uma porta de madeira gasta e uma única janela com cortinas antigas. Parecia perfeita. Ele sorriu de canto e respondeu:
— Pode deixar, senhora. Eu sou discreto.
Ele entreabriu a porta da kitnet e deu uma rápida olhada lá dentro. O lugar era pequeno, mas parecia limpo e funcional. Não precisava de luxo, só de um canto onde pudesse ficar sem chamar atenção. Ainda assim, virou-se para Dona Alzira e perguntou, com um olhar cauteloso:
— A senhora não vai querer saber nada sobre mim? De onde eu vim, o que eu faço...?
A velha sorriu de canto, cruzando os braços finos e apoiando um dos pés no degrau da varanda.
— Você vai pagar o aluguel em dia?
Zeca assentiu.
— Então não preciso saber mais nada. Não pago minhas contas com fofoca, garoto. Preciso do seu dinheiro, não da sua história.
Ele encarou a senhora por um instante, tentando avaliar se era só pose ou se realmente cumpriria o que dizia. Gostou da resposta. Melhor uma velha pragmática do que um curioso inconveniente.
— Então temos um acordo — disse, puxando o maço de dinheiro do bolso e entregando a primeira mensalidade adiantada.
Dona Alzira pegou as notas sem cerimônia, contou rapidamente e guardou no bolso do avental.
— Boa escolha. Agora, se precisar de alguma coisa, não me incomode muito. E se fizer barulho demais à noite, eu mesma te coloco pra fora.
Ele soltou um riso baixo.
— Não se preocupe, senhora. Eu sou um inquilino muito silencioso.
Dona Alzira apenas bufou e virou as costas, voltando para dentro de sua casa. Zeca entrou na kitnet e fechou a porta atrás de si. Finalmente, um lugar onde poderia ficar sem levantar suspeitas. Pelo menos por enquanto.
Logo ele armou uma rede para dormir mais tarde e sentiu fome logo adiante havia uma lanchonete na esquina, um lugar pequeno, com mesas de plástico encardidas e um cheiro forte de gordura impregnado no ar. O letreiro piscava fracamente, e o som da TV velha no canto se misturava ao burburinho dos poucos clientes. Ele se sentou em um canto discreto, mas não demorou muito até que um homem de meia-idade, robusto, com barba por fazer e olhos atentos, puxasse assunto.
— Novo por aqui, hein, garoto?
Zeca assentiu com um movimento curto.
— Pediu o quê? — o homem insistiu, apontando para o atendente que preparava os pedidos na chapa.
— Churrasquinho de carne de gado. Mal passado — respondeu, sem dar muita atenção.
O homem arqueou uma sobrancelha.
— Muito mal passado, né? Quase crua.
Zeca sentiu o olhar do sujeito pesando sobre ele e apenas deu de ombros.
— Gosto assim.
O homem riu, mas a expressão curiosa permaneceu.
— De onde você é? Não lembro de ter te visto antes.
Zeca sentiu um frio percorrer sua espinha. Ele não esperava ser interrogado assim, mas manteve o rosto impassível.
— De longe.
— Hum... e quantos anos tem?
— O suficiente para morar sozinho.
O homem riu de novo, dessa vez de um jeito mais seco.
— Sozinho? Um garoto da sua idade? Isso é estranho. Onde estão seus pais?
Zeca desviou o olhar, fingindo interesse na TV. O churrasquinho chegou, e ele o pegou imediatamente, mordendo um pedaço. O gosto do sangue ainda quente escorreu por sua língua, e ele precisou se controlar para não demonstrar o quanto aquilo era prazeroso.
— Meu pai sumiu no mundo. Minha mãe morreu.
O homem inclinou a cabeça, como se analisasse cada palavra.
— E veio morar aqui sozinho? Esse bairro não é lugar pra qualquer um, garoto.
Zeca largou o espetinho sobre o prato e olhou nos olhos do homem, sustentando o olhar por um instante antes de responder:
— Eu me viro.
O sujeito permaneceu em silêncio por um tempo, parecendo tentar decifrá-lo. Então, deu de ombros e voltou a comer, mas Zeca sabia que tinha chamado atenção demais. Terminou seu churrasquinho rápido e pagou a conta sem olhar para trás.
Naquela cidade, ele precisaria ser mais cuidadoso.
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Atualizado até capítulo 24
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