A noite caiu rapidamente, envolvendo a casa em sombras alongadas e sinistras. O vento frio assobiava pelas frestas das janelas quebradas, e o silêncio era tão pesado que qualquer ruído parecia um grito. Joaquim, no entanto, se manteve calmo. Ele remexia o pequeno fogareiro, onde esquentava uma panela com um resto de carne salgada e batatas. O cheiro tomou o ambiente, mas Zeca não parecia interessado.
Sentado a um canto da mesa, o garoto observava o pai com olhos desconfiados, os dedos inquietos tamborilando contra a madeira envelhecida. De vez em quando, Joaquim desviava o olhar do fogareiro para encará-lo, como se esperasse algo... como se estivesse tentando ver além da pele pálida e dos olhos fundos do filho.
— Você devia ir embora. — Zeca disse, a voz saindo mais baixa do que pretendia.
Joaquim ergueu uma sobrancelha e serviu a comida em dois pratos de estanho.
— Ir embora? Depois de encontrar a casa dos meus pais nesse estado? Meu filho ferido, sozinho, falando em tragédia e escuridão? Não, Zeca. Eu não vou a lugar nenhum.
Ele puxou uma cadeira e sentou-se, empurrando um prato para o filho.
— Coma. Tá precisando.
Zeca olhou para a comida, mas seu estômago embrulhou. O cheiro de carne cozida era repulsivo. Seu pai percebeu sua hesitação e bateu o garfo contra o prato.
— Tá com medo de quê? Não tá envenenado, se é isso que pensa.
O garoto soltou um riso seco.
— Não é isso... — Ele mexeu a comida com o garfo, mas não comeu. — Só não tenho fome.
Joaquim o estudou por um longo momento antes de suspirar e levar um pedaço à boca. Mas seu olhar não deixava o filho.
— Essa casa tá fedendo a morte, Zeca. E você age como se fosse só mais um dia comum. Tá magro, tá pálido... E me diz que quase morreu tentando fugir? Do quê?
O garoto desviou o olhar.
— Não sei.
— Não sabe ou não quer me dizer?
Zeca mordeu o lábio, os dedos apertando as laterais da cadeira.
— Você não entenderia.
Joaquim bufou.
— Tenta.
O silêncio se alongou. O vento gemeu lá fora, sacudindo os galhos secos das árvores. A luz tremeluzente do fogareiro projetava sombras distorcidas nas paredes, e Joaquim sentiu um arrepio na espinha.
Zeca finalmente levantou o olhar, e por um momento seus olhos brilharam de um jeito estranho, refletindo a luz como os de um animal.
— Pai... — sua voz saiu grave, quase um sussurro. — Você devia ir embora.
Joaquim apertou os punhos, sentindo uma tensão crescente dentro de si.
— Por quê?
O garoto abriu a boca para responder, mas não encontrou palavras. Como ele poderia explicar? Como dizer que algo dentro dele estava mudando, que um instinto primitivo rastejava sob sua pele, esperando para ser libertado?
Ele abaixou a cabeça, apertando as têmporas com força.
Joaquim continuava observando. Esperando.
E lá fora, a lua cheia subia lentamente no céu, espalhando seu brilho pálido pela terra amaldiçoada.
Joaquim sentiu um arrepio percorrer sua espinha quando o silêncio se tornou opressor. A chama do fogareiro crepitava suavemente, lançando sombras dançantes nas paredes destruídas da casa. Ele percebeu a respiração do filho acelerar, seu peito subindo e descendo como se contivesse algo prestes a explodir. Havia algo profundamente errado ali. Algo que não era apenas o peso da tragédia.
— Zeca… — ele murmurou, pousando o garfo devagar sobre a mesa. — O que está acontecendo com você?
O garoto fechou os olhos com força, as mãos crispadas sobre os joelhos. Sua pele suada reluzia sob a luz trêmula. Quando ele ergueu o rosto para encarar o pai novamente, algo em sua expressão não era mais humano. Um tremor percorreu suas feições, e por um segundo, Joaquim viu os olhos do menino refletirem o brilho pálido da lua lá fora. A noite estava apenas começando.
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Atualizado até capítulo 24
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