O sol castigava forte quando Zeca pegou a estrada de volta. A terra seca levantava poeira a cada passo, e o calor fazia o ar tremular sobre o asfalto rachado. Já passava das três da tarde, e o cansaço começava a pesar em suas pernas depois do tempo que passou na mata. O cheiro de folhas queimadas e esterco no vento denunciava que algumas roças não estavam longe dali. O caminho era longo, mas ele não tinha escolha.
Andava sozinho, com os olhos atentos a qualquer movimento no mato fechado que margeava a estrada. Sentia o peso da carne fresca no estômago e, ao mesmo tempo, o peso de um pensamento incômodo na mente. "Eu sou o monstro mesmo?", perguntou-se em silêncio. Cada mordida na carne crua, cada desejo estranho que surgia dentro dele, tudo apontava para algo que ele não queria aceitar.
Os minutos se arrastavam e o silêncio era quebrado apenas pelo canto das cigarras e pelo farfalhar das árvores. Até que, ao longe, um ronco de motor se aproximou. Uma moto velha subia a estrada devagar, engasgando a cada troca de marcha. O homem que a pilotava passou direto por ele, mas, poucos metros à frente, reduziu a velocidade e fez a volta.
O sujeito parou ao lado de Zeca e o observou por um instante. Era um homem de pele queimada do sol, barba grisalha rala e um olhar atento. Vestia uma camisa aberta no peito, revelando a pele curtida pelo tempo. Nas costas, uma espingarda descansava sobre a moto, e um facão pendia de sua cintura, embainhado e gasto pelo uso.
— Ô rapaz, tu tá indo pra onde? — perguntou, com um sotaque arrastado.
Zeca não parou de andar, mas respondeu seco:
— Tô indo pra casa.
O homem estreitou os olhos.
— E tua casa é pra esses lado? Que eu saiba, pra frente só tem mato. — Ele coçou o queixo, sem desviar o olhar. — Tu não é daqui, né?
O garoto sentiu um nó na garganta. Não queria conversa, muito menos com um homem tão observador.
— Sou, sim.
— É? Pois num lembro de já ter te visto por essas banda. Tua família mora por aqui?
Zeca sentiu o estômago revirar.
— Meu pai morreu. Minha mãe também.
O homem franziu a testa. Ficou um tempo em silêncio, apenas encarando Zeca com um olhar difícil de decifrar. Então, soltou um suspiro e balançou a cabeça.
— Sei... Esse mundo é danado de perigoso, menino. — Ele ajeitou a espingarda nas costas.
O homem manteve o motor roncando por alguns segundos, como se estivesse pensando.
— Quer uma carona, rapaz? Tá um sol de rachar, e ainda falta um bocado pra cidade.
Zeca hesitou. Não gostava da ideia de ficar próximo de ninguém, muito menos de um sujeito que parecia desconfiado dele. Mas também não queria caminhar mais horas debaixo daquele sol escaldante.
— Sei não, senhor.
— Deixa de frescura, menino. Eu num posso deixá um cabra novo desse jeito se acabando no meio do nada. — O homem bateu no banco de trás da moto. — Vamo logo, antes que o sol derrube nós dois.
Zeca olhou para os lados. O vento quente balançava as folhas secas na estrada, e ele sabia que não havia mais ninguém ali para vê-los. O perigo maior não estava naquele homem, mas sim dentro dele.
— Tá bom — respondeu, finalmente, subindo na garupa.
O homem acelerou, e a moto seguiu estrada afora. O cheiro de óleo queimado e terra subia no ar enquanto a cidade se aproximava no horizonte.
— E tu, como é que se chama? — o homem perguntou, sem olhar para trás.
Zeca demorou para responder.
— Zeca.
O homem assentiu.
— Eu sou Expedito. Mas me chama de Seu Expedito.
O silêncio se instalou entre eles.
A moto seguia cortando o vento quente da estrada. Seu Expedito, com o olhar sempre atento à frente, resolveu puxar assunto.
— E tu estuda, Zeca?
— Não.
— Hum… Mas já estudou, né?
— Já.
— E num pensa em voltá?
— Não.
Seu Expedito apertou os lábios, pensativo.
— E tu trabalha?
— Não.
— Ah… Mas vai trabalhá, né?
— Talvez.
O silêncio se prolongou por alguns instantes. O barulho do motor era a única coisa que preenchia o espaço entre eles.
— E tu é de onde, rapaz?
— Do interior.
— Sei… Família mora por lá?
— Não.
Seu Expedito arqueou as sobrancelhas, mas não perguntou mais nada por um tempo. Percebeu que Zeca não queria conversa, mas também não era de desistir fácil.
— Tá indo pra cidade pra quê?
— Morar.
— Hum… Então tu mora sozinho?
— Sim.
Seu Expedito soltou um assobio baixo, balançando a cabeça.
— Pois é, vida difícil, né?
Zeca não respondeu. Apenas continuou encarando o caminho à frente, esperando que a viagem terminasse logo.
— Pois então, me diz onde fica tua casa que te deixo lá — disse Seu Expedito, diminuindo a velocidade da moto.
— Não precisa.
— Ôxi, como não? Já tô indo mesmo, num custa nada.
— Eu desço aqui.
— Besteira tua, rapaz. Já que tu aceitou a carona, deixa eu te deixar direito.
Zeca suspirou, percebendo que o homem não desistiria fácil.
— Tá bom… Entra na Rua São Miguel ali na frente, depois pega a segunda à direita, a Rua das Laranjeiras. Quando chegar no fim, dobra à esquerda na Travessa do Cedro. Minha casa é a penúltima, do lado de uma casa azul com varanda grande.
Seu Expedito seguiu as instruções, guiando a moto pelas ruas de asfalto maltratado. O bairro era simples, com casas pequenas e muros baixos. Algumas pessoas estavam sentadas nas calçadas, aproveitando a sombra da tarde quente.
Quando parou em frente à casa de Dona Alzira, olhou bem ao redor e depois para Zeca.
— Amanhã cedinho passo aqui pra te buscar pro trabalho.
Zeca franziu o cenho.
— Trabalho?
— Claro! Num pode ficar só gastando dinheiro, tem que trabalhar também, né? Conheço um serviço pra tu, nada pesado, coisa boa pra começar. Cinco da manhã tô aqui.
Antes que Zeca pudesse protestar, Seu Expedito acelerou a moto e foi embora, deixando apenas um rastro de poeira no ar.
O garoto ficou parado por um instante, olhando a moto sumir ao longe. Depois sorriu de canto de boca.
— Esse velho é doido… mas parece ser um cara legal.
E entrou em casa.
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Atualizado até capítulo 24
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