Zeca despertou com a luz fraca da manhã. Ele se sentou na rede, esfregando o rosto e respirando fundo. Ainda não estava acostumado a ter um teto sobre sua cabeça que não fosse a velha casa dos avós. Levantou-se e foi até o pequeno banheiro no fundo do cômodo. O espelho embaçado refletia sua aparência: olheiras profundas, a pele pálida e os olhos inquietos. “Tô parecendo um zumbi”, murmurou para si mesmo enquanto abria a torneira. Escovou os dentes mecanicamente, cuspindo a espuma no ralo enferrujado. Vestiu uma camisa preta simples e um boné surrado, pegou sua mochila e saiu, deixando a porta trancada.
O ponto de ônibus ficava a algumas quadras dali. As ruas estavam apenas começando a ganhar vida, com poucas pessoas indo para o trabalho e o cheiro de café fresco saindo das padarias. Quando chegou ao pequeno terminal, notou as filas de trabalhadores, os idosos conversando entre si, e algumas crianças sonolentas segurando as mãos dos pais.
O ônibus que pegaria era um daqueles antigos, com a pintura descascada e os bancos duros de plástico. Subiu e pagou a passagem, recebendo um olhar breve do motorista, um homem de barba grisalha e expressão entediada.
Escolheu um assento perto da janela, observando a cidade ficar para trás enquanto a paisagem se tornava cada vez mais rural. As casas foram dando lugar a fazendas e trechos de mata fechada. O veículo balançava a cada buraco na estrada, e o cheiro de poeira misturado com suor pairava no ar.
Quando Zeca se levantou e se aproximou do motorista, o homem o olhou pelo espelho retrovisor.
— Quer descer aqui? — perguntou, franzindo o cenho.
Zeca apenas assentiu.
— Aqui no meio do nada, garoto? — uma senhora de lenço colorido interveio. — Cê tem certeza? Não tem nada por aqui além de mato e estrada.
Um homem sentado mais atrás balançou a cabeça.
— Lugar perigoso, moleque. Tem onça nesse matagal.
Zeca riu de leve, e pensou “Se vocês soubessem quem é o verdadeiro predador aqui...”
— Só preciso resolver umas coisas. Volto depois.
Os passageiros se entreolharam, desconfiados. O motorista deu de ombros e abriu a porta.
— Boa sorte, então.
Assim que pisou fora do ônibus, sentiu a brisa fria da manhã bater contra sua pele. O ronco do motor soou atrás dele enquanto o veículo se afastava, deixando-o sozinho, cercado pelo silêncio da mata.
Ele olhou ao redor, respirando fundo.
— É isso. Aqui ninguém vai me achar.
Pôs a mochila nas costas e começou a caminhar para dentro da floresta.
Zeca caminhava devagar pela mata fechada, sentindo o cheiro úmido da terra misturado ao aroma das folhas e do mato alto. Os galhos estalavam sob seus pés, e o canto distante de pássaros e insetos criava uma trilha sonora natural que o envolvia. Ele sabia o que estava procurando, mas ainda não havia encontrado o lugar perfeito.
A floresta parecia cada vez mais densa à medida que ele avançava, e isso era bom. Ele precisava de um espaço onde pudesse se esconder, onde ninguém ousaria entrar. Seus olhos escaneavam cada canto — árvores grossas e retorcidas, clareiras cobertas por musgo, pedras enormes cobertas de líquen. Mas nada parecia certo.
Depois de quase uma hora de caminhada, ele finalmente viu algo que fez seu coração acelerar.
Era uma formação rochosa imensa, com uma entrada que lembrava a boca de um animal ancestral. O buraco negro da caverna se abria entre as pedras, protegido por raízes e vegetação rasteira. Era funda, sombria e parecia esquecida pelo tempo.
Zeca sorriu de lado.
— Perfeito.
Ele se aproximou e entrou devagar. O ar ali dentro era fresco e carregado de umidade. As paredes da caverna eram ásperas e cobertas de marcas antigas, talvez de garras de animais que já tinham usado aquele lugar para se esconder.
A escuridão o envolveu como um abraço.
Ele passou os dedos pelas paredes de pedra, sentindo a textura fria contra sua pele.
— Aqui, ninguém vai me achar. Aqui, eu posso ser o que sou.
A excitação misturada com alívio percorreu seu corpo. Ele finalmente tinha um refúgio. Um lugar onde poderia deixar o monstro sair sem medo de ser caçado.
Sentado sobre uma pedra dentro da caverna, Zeca abriu a sacola plástica que trouxera do açougue. A carne fresca ainda exalava um cheiro forte de sangue, e ele sentiu a boca salivar antes mesmo de dar a primeira mordida. Ele pegou um pedaço e rasgou com os dentes, sentindo a textura crua e o gosto ferroso se espalhando por sua língua.
Cada mordida era intensa, quase instintiva. Ele mastigava devagar, sentindo o suco quente da carne escorrer pela garganta, e um arrepio percorreu sua espinha. Isso deveria ser nojento, deveria ser errado… Mas não era. Era satisfatório. Era natural.
Ele olhou para as próprias mãos, os dedos sujos de sangue, e um pensamento sussurrou em sua mente como uma voz sombria e familiar:
— Talvez eu não precise da lua cheia para ser um monstro. Talvez eu já seja um.
A lembrança da maldição de sua mãe veio como um golpe. Ela o olhava com aqueles olhos cheios de ódio e dor, coberta de sangue, cuspindo palavras que o condenavam antes de morrer. Será que a besta que ele se tornava era apenas a forma final do que ele realmente era? Será que sua humanidade era apenas um véu fino que escondia algo muito pior?
Ele respirou fundo, fechando os olhos. Não importava mais. Ele precisava aceitar o que era. A fome estava ali, a necessidade estava ali. E cedo ou tarde, ele teria que se render por completo a isso.
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Atualizado até capítulo 24
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