Zeca sabia que sua permanência ali era insustentável. Os moradores da vila ainda estavam desconfiados, e embora as buscas tivessem cessado, o medo e a tensão pairavam no ar. Ele via, através das frestas das janelas, grupos de homens armados conversando em tom baixo, lançando olhares sombrios em direção à casa isolada. Não demoraria para que alguém criasse coragem o suficiente para entrar e procurar vestígios do que realmente aconteceu naquela noite sangrenta.
Nos dias que se seguiam enquanto ainda se recuperava do ferimento Zeca reunia itens para a eminente partida: algumas roupas velhas, um cantil para guardar água, farinha e carne seca que ainda restava. Seu corpo ainda doía, os pontos improvisados no abdômen latejavam a cada movimento, mas ele não tinha escolha. Se ficasse, seria caçado.
Pouco depois do Massacre, a notícia do que aconteceu na vila se espalhava como um incêndio. Chegou às cidades vizinhas, passou de boca em boca, foi distorcida e exagerada até que ninguém sabia mais o que era verdade ou invenção. Alguns falavam de uma fera demoníaca que devorava pessoas inteiras, outros diziam que fora obra de um assassino fugitivo, enquanto outros acreditavam que era um castigo dos céus sobre aquela terra amaldiçoada.
A história chegou aos ouvidos de um homem distante, alguém que não queria acreditar no que ouvira: Joaquim. Ele recebeu a notícia em meio à sua rotina, e algo dentro dele gelou. Seus pais... seu filho. Um peso descomunal pousou sobre seus ombros enquanto o passado que tentava esquecer voltava para assombrá-lo.
Sem hesitação, ele arrumou suas coisas e partiu para a vila onde seus pais moravam. Seu coração estava apertado, e sua mente oscilava entre a preocupação e o medo do que poderia encontrar. Será que seus pais estavam bem? E Zeca? O que teria acontecido com o menino? Ele precisava ver com seus próprios olhos. E, no fundo, temia que o que encontraria mudaria sua vida para sempre.
Joaquim chegou à casa dos pais quando o sol já se despedia no horizonte, tingindo o céu de vermelho-alaranjado. O lugar estava em ruínas. O cheiro de madeira velha e umidade misturava-se a algo mais... algo metálico e rançoso, que fazia seu estômago revirar. O silêncio ali era pesado, quase sufocante.
Zeca estava prestes a partir quando ouviu os passos se aproximando. Sua respiração ficou pesada, e seu corpo instintivamente ficou tenso. Quando viu o homem parado à porta, sentiu uma mistura de emoções que não conseguia nomear: raiva, surpresa... medo? Não, ele não tinha mais medo daquele homem.
Joaquim o observou com olhos arregalados. O filho estava magro, a pele amarelada e doente, os olhos fundos e sombrios. O garoto parecia um fantasma do que um dia fora. E então, finalmente, ele quebrou o silêncio:
— O que aconteceu aqui, Zeca? Cadê sua avó? E meu pai? Que diabos houve com essa casa? E com você? — A voz de Joaquim era dura, carregada de preocupação e desconfiança.
Zeca riu. Uma risada seca, sem humor, carregada de cansaço e algo mais sombrio. Ele cruzou os braços e olhou para o pai com um olhar desafiador.
— Ora, ora... se não é o grande Joaquim voltando depois de tanto tempo. O que aconteceu? Eu te pergunto! Você deveria estar aqui pra ver o show... mas adivinha? Chegou tarde.
Joaquim estreitou os olhos.
— Não brinque comigo, moleque. Fale de uma vez.
Zeca suspirou dramaticamente e chutou um pedaço de madeira caída no chão.
— Se quer tanto saber... os velhos? Morreram. — Ele disse, sem qualquer emoção na voz. — Uma tragédia, não é? A casa? Bem, tá desse jeito porque... sei lá, talvez porque eu quase morri tentando fugir de algo que eu nem sei explicar.
Joaquim franziu a testa, dando um passo à frente.
— Fugir de quê?
Zeca ergueu as mãos e fez uma cara debochada.
— Ah, pai, como se eu soubesse! Foi tudo tão rápido... Sangue, gritos, escuridão... Eu só sei que acordei depois, sozinho, e tive que me virar. Mas, ei, olha só! Ainda tô aqui, então acho que fui sortudo, né?
A mentira estava ali, escorrendo pelas palavras de Zeca, mas Joaquim não era burro. Ele analisou o filho com um olhar sombrio. Algo estava errado. Muito errado.
E então, um pensamento lhe atravessou como um raio.
A maldição.
Ele tentou enterrá-la junto com aquela mulher... junto com aquele passado. Mas a última coisa que a desgraçada disse antes de morrer ainda ecoava em sua mente.
O sangue de Joaquim gelou. Ele olhou nos olhos do filho e, por um momento, viu algo ali que não deveria estar. Algo bestial. Algo selvagem.
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Atualizado até capítulo 24
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