Incidente

De volta ao meu quarto, tentava pegar no sono mais uma vez, mesmo sabendo que levantaria daqui a algumas horas. Virei de lado, olhando as sombras nas paredes, recordava o período que passei na Itália, levando-me a pensar na primeira vez que Ivan Rurik cruzou o meu caminho.

Tudo que aguentei foi apenas pensando que estava aprendendo o necessário para proteger a minha família e principalmente a ela.

Por dois anos, fui torturado e humilhado. Era considerado o "cumpridor de profecias". Matei mais pessoas do que conseguia contar; depois da décima vítima, você para de querer saber o porquê vai fazer isso. O sangue se torna apenas mais uma cor em suas roupas, e os órgãos espalhados, apenas um aperitivo para os cães.

Em meio a todo o meu sofrimento, a única coisa que me mantinha sã naquela época era o conforto de saber que, quando retornasse para casa, veria Emma novamente. Durante o meio tempo entre os italianos, não fiz amigos nem conheci gente nova. Eu só queria que o tempo passasse logo para poder voltar para casa.

Quando estava com quatorze anos, tinha um último serviço a executar antes de retornar para meu país. Em uma noite chuvosa e fria, estávamos aguardando um carregamento no porto. Fui ordenado a ficar na praça central, próximo à igreja matriz. Naquele dia, estava exausto, não dormia há quase seis dias. Meu trabalho era simples: não deixar ninguém passar pela praça até que o carregamento fosse colocado nos caminhões. Pensei que cochilar não causaria problemas, já que era muito tarde e ninguém passaria por ali àquela hora. Meus olhos pesados piscavam a cada fração de segundo.

Em meio a esses pequenos cochilos, avistei um menino distante, perto da fonte do outro lado da praça. Ele estava sozinho, não carregava nada aparente e se aproximava lentamente com as mãos nos bolsos. Outro cochilo, então senti um ardor no meu pescoço e um líquido quente percorrer meu corpo.

Com os olhos fatigados, tentava mantê-los abertos. O menino, de cabelos e olhos negros, olhava para mim fixamente. Parecíamos ter a mesma idade. Olhei ao redor e vi uma enorme poça de sangue em volta do meu corpo. Aos poucos, tudo à minha volta começou a se transformar em um grande borrão. Tentei segurar o braço dele, mas a força havia sumido das minhas mãos.

Aos poucos, ele se afastou, o som de um carro freando bruscamente soou no silêncio da madrugada, o garoto sorriu dando tchau e entrou no veículo.

Acordei seis dias depois, deitado na cama de um hospital. Acordei assustado, olhando por todo o ambiente, vi tio Elliot sentado numa poltrona perto da porta. Ele se levantou e caminhou até mim de maneira sutil. Ao se aproximar, estalou os dedos duas vezes e me deu um tapa, fazendo meu pescoço sangrar novamente.

— Moleque burro, como pôde quase morrer para aquele garoto que não tem metade do seu treinamento? Como deixou isso acontecer? — Meu tio estava vermelho de raiva.

Não disse nada. O corte havia sido profundo o suficiente para me deixar sem falar por quase seis meses. Durante todo aquele período, só pensava no rosto daquele desgraçado. Iria caçá-lo até o fim do mundo e matá-lo com minhas próprias mãos.

Retornei para casa antes de me recuperar por completo. Meu avô só permitiu, pois disse que eu havia aprendido tudo o que podia e que agora era hora de colocar em prática.

Quando me recuperei totalmente, ele fez uma cerimônia e me nomeou o Pilar Secundário, sucessor de todo o império de ferro. Foi naquele dia que revi Emma depois de dois anos. Ela usava um vestido branco rodado, com várias rosas bordadas, e seus lindos cachos castanho-claros emolduravam seu rosto. Ela tinha seis anos no período vigente.

Quando a cerimônia terminou, pude ir até ela e entregar todos os ursos que havia comprado durante minhas viagens. Aqueles olhos gentis, cheios de bondade e amor, quebravam todas as barreiras do meu coração. Observava-a enquanto dava nome a cada um dos ursos. Ao terminar, aproximou-se de mim e tocou na cicatriz que aquele desgraçado havia deixado.

— Nas fotos, você não tinha esse dodói! — Seu olhar gentil percorria todo o meu pescoço.

— Acabei me machucando na última viagem que fiz, mas não se preocupe, não dói mais!

— E esse aqui? — Ela apontou para uma marca específica na minha mão, resultado de um tiro que levei por errar uma única questão.

— Essa foi uma formiga que fez. Acredite! Nunca brinque com formigas, Bananinha — forcei um sorriso.

— Você é muito desastrado, Ben — ela deu um sorriso tão grande que suas janelinhas apareceram.

Foi naquele dia que cobri a cicatriz no pescoço com uma tatuagem de coruja, para lembrar de nunca mais dormir sem necessidade. Nos dois anos seguintes, fiz mais de quinze tatuagens, todas cobrindo cicatrizes antigas e novas. Não queria mais mentir para ela.

Depois de anos longe de casa, era praticamente um estranho para quase toda a família. Nessa mesma época, minha irmã já não morava mais conosco; ela tinha ido para um lar na Suíça e ficou lá até casar com Vittorio, o sucessor da família Caccini.

Enquanto isso, minha vida seguia o mesmo padrão de sempre: morte, sangue, lágrimas, e a necessidade de ser forte e inabalável, como era esperado de um herdeiro.

Ainda me revirava por toda a cama, agitando os lençóis e meus pensamentos, o dia ameaçava invadir meu quarto pela pequena abertura da cortina. Olhando para o teto, ainda predominava a sensação de não ter matado Ivan.

O que também me fez lembrar que não falava com minha irmã há mais de um mês. A última vez que tive notícias dela, Charlotte havia dado um herdeiro aos italianos. Odiava o fato de ela ser praticamente uma prisioneira, uma fábrica de bebê para manter o contrato em nossas famílias por uma linhagem.

A mente fervilhava quando o celular começou a vibrar, peguei o aparelho e, observando a tela, vi o nome do tio Elliot. Era isso, remoer o passado só me fazia sentir um merda, precisava resolver essa ponta solta para poder seguir adiante com a escuridão que chamava de vida.

Levantei rapidamente, troquei de roupa, alinhei o cabelo, acendi um cigarro, hora de trabalhar, tem outros porcos mais prioritários que Ivan Rurik.

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Comments

Bela Black

Bela Black

Eu fico com dó dele, pq ele não tem opção nenhuma de mudar. Ele é um prisioneiro da " família " e desse impedido de merd@ que o avô criou

2025-04-07

1

Jhay_Focas

Jhay_Focas

Por que não ajuda ela?

2025-04-04

1

Nefelibata

Nefelibata

Pq uma coruja, autora?

2025-04-04

1

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