Fantasmas Queimando

Nik caminhava devagar pela estrada de terra, cada passo um desafio para suas pernas fracas e seu corpo machucado. O vento frio batia em seu rosto, trazendo consigo o cheiro da manhã e da liberdade — uma liberdade que parecia surreal demais para acreditar.

Seu peito doía a cada respiração, como se seus pulmões tivessem esquecido como funcionar fora daquela casa. Mas ele seguiu em frente, porque parar não era uma opção.

O som de um motor se aproximou.

Nik ergueu os olhos, e uma ambulância velha e manchada de poeira parou bem à sua frente. A porta lateral se abriu com um rangido, e um socorrista desceu apressado, correndo em direção a ele.

— Meu Deus, garoto… Você consegue me ouvir? — A voz do homem era urgente, mas gentil. — Foi você que ligou pedindo ajuda?

Nik franziu o cenho, confuso. Sua mente estava embaralhada, mas então… ele lembrou.

Foi Loki.

Antes de abrir aquela porta e mandá-lo embora, antes de libertá-lo, Loki deve ter ligado para pedir socorro.

Aquele monstro. Aquele maldito monstro… tinha chamado ajuda para ele.

— Sim… — Nik sussurrou, com a voz fraca, quase inaudível.

O socorrista segurou Nik pelos braços, sustentando-o, já que suas pernas tremiam e mal conseguiam aguentar seu próprio peso.

— Calma, garoto, você tá seguro agora. Vamos cuidar de você.

Nik deixou-se ser guiado até a ambulância, o corpo mole, o rosto marcado por cortes e hematomas. O socorrista começou a examiná-lo, perguntando seu nome, sua idade, mas Nik não respondia. Sua mente estava em outro lugar.

Atrás dele.

Lá longe, uma explosão ecoou.

Nik e o socorrista viraram o rosto ao mesmo tempo, e uma nuvem densa de fumaça preta subiu no céu.

Era a casa.

A casa de Loki estava em chamas.

A explosão foi tão forte que as janelas estouraram, pedaços da estrutura voaram, e o fogo devorava o que restava.

— Meu Deus… Tem alguém lá dentro? — O socorrista perguntou, preocupado.

Nik apertou os olhos, o coração apertado, o estômago revirando.

Foi Loki.

Foi ele que fez isso.

Ele sabia que Nik não voltaria por conta própria.

Ele sabia que, para realmente cortar aquele elo, tinha que se apagar da história.

Mas, mesmo enquanto a ambulância começava a se afastar, levando Nik para longe, ele não conseguia afastar a sensação de que não era o fim.

Porque monstros como Loki…

Não morrem tão fácil.

E mesmo que o corpo de Loki queimasse junto com aquela casa, ele ainda existiria dentro de Nik.

Sempre existiria.

E Nik sabia:

Liberdade nunca seria realmente dele.

Porque parte dele…

Sempre pertenceria àquele monstro.

— Você tá bem, garoto? — O socorrista perguntou, percebendo as lágrimas silenciosas escorrendo pelo rosto de Nik.

Nik limpou o rosto com o dorso da mão, forçando um sorriso vazio.

— Sim… Tô ótimo.

Mas, por dentro, ele nunca esteve tão despedaçado.

Semanas haviam se passado desde a explosão. Desde aquela manhã cinzenta em que Nik foi encontrado na estrada, quase sem forças para ficar de pé, resgatado por uma ambulância que nunca deveria ter aparecido.

Ele foi levado para um hospital particular — não por causa de sua própria influência, mas porque seu sobrenome ainda carregava peso.

A notícia de seu desaparecimento e resgate chegou rápido até sua família. E, pela primeira vez em muito tempo, Eleanor Laurent apareceu.

Nik estava sentado em uma cadeira de rodas, o gesso ainda envolvendo sua perna quebrada. Ele usava uma camisa hospitalar larga demais para seu corpo magro e ossudo. O quarto era luxuoso, digno de sua família, mas o vazio era o mesmo de sempre.

A porta abriu e sua mãe entrou, os saltos batendo suavemente contra o chão brilhante. Eleanor estava impecável como sempre — cabelos loiros presos, maquiagem leve e um vestido de grife.

Mas algo em seu olhar havia mudado.

Preocupação.

Ela parou ao lado da cama, as mãos delicadamente cruzadas diante de si, e o observou em silêncio por alguns segundos.

— Nik… — Sua voz era suave, mas trêmula, como se ela não soubesse exatamente como falar com ele.

Nik ergueu o olhar, os olhos escuros fixos nos dela. Não havia raiva, nem emoção. Apenas cansaço.

— Você veio. — Sua voz era fraca, mas carregava uma pontada de ironia.

Eleanor mordeu o lábio, abaixando-se para ficar da altura dele. Aquela mulher que sempre foi fria, distante, agora parecia diferente. Quase… humana.

— Eu… eu devia ter prestado mais atenção em você. — A confissão saiu em um sussurro. — Eu não sabia que as coisas tinham chegado tão longe.

Nik deu uma risada curta e seca.

— Você nunca quis saber. Você só queria que eu não atrapalhasse suas festas e suas fotos perfeitas.

Ela piscou algumas vezes, contendo as lágrimas. Eleanor Laurent nunca chorava. Mas agora, seus olhos brilhavam de um jeito que Nik nunca tinha visto.

— Eu sei. Eu fui uma péssima mãe. Mas… você ainda é meu filho.

Nik queria rir mais, queria gritar, jogar na cara dela todos os anos de ausência, todas as vezes em que ela escolheu não enxergar. Mas não havia mais força para ódio.

— Tarde demais, mãe. — Ele sussurrou.

A porta abriu novamente, e Victor Laurent entrou. Ele nem olhou diretamente para Nik — apenas deu um olhar rápido para o filho, depois se jogou em uma poltrona no canto do quarto, puxando o celular do bolso.

— Quanto tempo vai demorar essa recuperação? — Victor perguntou, sem tirar os olhos da tela.

— Ele quase morreu, Victor. — Eleanor disse, sem esconder a irritação na voz.

Victor deu de ombros.

— Mas não morreu. Ele é um Laurent, afinal. Já pode voltar para casa e parar com esse show?

Nik olhou para o pai, e pela primeira vez não sentiu raiva.

Sentiu vazio.

Porque agora ele sabia.

Ele não precisava mais do amor daquele homem.

— Você não precisa se preocupar, pai. — Nik disse, a voz baixa e firme. — Eu não vou ficar nessa casa por muito tempo.

Victor apenas bufou.

— Você sempre foi dramático.

Eleanor encarou Nik com preocupação verdadeira. Ela sabia — mesmo sem palavras — que havia algo quebrado demais em seu filho. Algo que talvez nem ela conseguisse consertar.

— Nik… por favor, deixa eu cuidar de você agora. — Sua voz era quase uma súplica.

Nik olhou para ela. Pela primeira vez, havia uma rachadura na armadura de sua mãe.

— Eu não sei se tem algo em mim que ainda pode ser cuidado, mãe. — Ele respondeu.

Eleanor não soube o que dizer. Apenas ficou ali, parada, vendo o filho que ela negligenciou por anos se tornar alguém que ela mal reconhecia.

Mas o que ela não sabia — o que ninguém sabia — era que, mesmo cercado de médicos, luxo e conforto, Nik ainda sentia a presença de Loki.

Nos cantos escuros do quarto. No silêncio entre os batimentos do monitor cardíaco. Nos pesadelos que o faziam acordar suando frio.

Loki ainda estava dentro dele.

E, talvez, sempre estaria.

Os dias no hospital se arrastavam em uma rotina monótona de exames, fisioterapia e remédios. Mas, pela primeira vez, Nik não estava sozinho.

Eleanor Laurent, a mulher que passou uma vida inteira distante, agora estava presente todos os dias.

Ela o ajudava a comer, arrumava seus travesseiros, trazia flores frescas e tentava — de uma forma desajeitada — ser a mãe que nunca foi.

— Eu mandei preparar seu quarto de novo, com tudo novo. Roupas, móveis, até sua coleção de livros. Você pode voltar para casa assim que estiver pronto. — Ela dizia enquanto penteava os cabelos escuros de Nik, como se cuidar dele fosse sua forma de pedir perdão.

Nik não respondia muito. Ele aceitava o cuidado porque seu corpo precisava. Mas seu coração… esse já estava endurecido demais para ser conquistado por gestos tardios.

E então havia Victor Laurent.

Ele aparecia apenas uma ou duas vezes por semana, sempre impecável em seus ternos caros, com o celular na mão e o olhar distante. Mas quando vinha, sempre fazia a mesma pergunta:

— O que aconteceu com você, Nik? Quem te fez isso?

Nik nunca respondia.

— Foi um sequestro? Você andou se metendo com quem não devia? Ou… — Victor arqueava uma sobrancelha. — Foi só mais um dos seus escândalos idiotas?

Nik apenas virava o rosto para a janela, se recusando a dar ao pai qualquer parte daquela história.

Mas a verdade é que Nik não falava… porque não sabia como explicar.

Como explicar Loki?

Como explicar aquele homem que era seu algoz, seu carcereiro, e de alguma forma, a única pessoa que realmente o enxergou?

E mesmo com os remédios, os analgésicos e os calmantes, Loki continuava ali.

Ele aparecia no reflexo da janela, encostado no vidro, o sorriso torto e cruel nos lábios.

Ele surgia nas sombras do canto do quarto, com os olhos brilhando no escuro.

E, pior de tudo, ele aparecia nos sonhos.

Nos sonhos, Loki não era só o monstro.

Ele era o homem que Nik tocava no escuro.

A respiração quente, as mãos firmes segurando-o, a dor e o prazer se misturando até Nik não saber mais onde terminava o ódio e começava a obsessão.

— Você sente minha falta, príncipe? — Loki sussurrava em sua mente.

Nik acordava suado, o peito subindo e descendo rápido demais, a cicatriz em sua perna latejando como se a presença de Loki pudesse atravessar o tempo e o espaço.

Mesmo no quarto branco e seguro do hospital, ele não estava livre.

E quando Eleanor segurava sua mão, tentando confortá-lo durante um de seus pesadelos, Nik olhava para ela e sabia:

Por mais que sua mãe tentasse cuidar dele agora, era tarde demais.

Porque Loki havia deixado sua marca.

E Nik não sabia se algum dia seria capaz de arrancá-la.

Nik estava sentado na beira da cama hospitalar, já vestido com uma calça de linho leve e uma camisa de algodão que sua mãe havia trazido. O médico explicava as últimas recomendações antes de assinar a alta.

— A perna ainda vai precisar de cuidado. Fisioterapia intensiva, analgésicos nos horários certos. Evite esforços por algumas semanas e… tente manter a mente ocupada. — O médico disse, entregando os papéis à Eleanor, que acompanhava tudo de perto.

Nik não disse nada. Apenas assentiu levemente, como se sua própria recuperação não fosse uma preocupação real. Ele não se importava com dores físicas — essas eram fáceis de suportar.

Pouco depois, a porta do quarto abriu-se, e Victor Laurent entrou.

Ele nem olhou diretamente para Nik, apenas checou o relógio de pulso e suspirou impaciente.

— Vamos. O carro está esperando.

Eleanor ajeitou o cabelo de Nik uma última vez e beijou sua testa de forma desconfortavelmente maternal.

— Se precisar de mim, me chama, tá? Vou te esperar em casa.

Nik não respondeu. Apenas se levantou com dificuldade, apoiado na muleta, e seguiu o pai.

O carro preto de luxo esperava na entrada do hospital, os vidros escuros escondendo o interior impecável. Nik entrou no banco de trás, deixando a muleta de lado, enquanto seu pai sentava-se ao seu lado, já com o celular em mãos.

O silêncio no carro era pesado. Nik olhava para fora, vendo a cidade passar como um borrão cinzento. Mas então, Victor quebrou o silêncio.

— Hoje à noite teremos um jantar importante.

Nik nem virou o rosto, mas seu pai continuou.

— Uma família estrangeira, poderosa no setor de tecnologia, está vindo fechar contrato com a empresa. E o filho mais novo deles vai estar presente. Quero que você esteja lá.

Nik apertou os dedos sobre o joelho, a irritação já queimando em sua garganta.

— Eu acabei de sair do hospital, pai. Você acha mesmo que eu tô em condições de sorrir e fingir que nossa família é perfeita?

Victor soltou uma risada curta, fria.

— Ninguém se importa com suas condições, Nik. Você é um Laurent. Você senta à mesa, sorri e se comporta. Ou você quer que eles pensem que meu filho é um fracote mimado que não aguenta um jantar?

Nik fechou os olhos por um instante, prendendo a respiração. Ele conhecia essa dinâmica.

Nada nunca mudou.

— Qual é a sua obsessão em me usar como vitrine? Eu sou só uma peça decorativa nesse circo, né?

Victor finalmente virou o rosto, encarando Nik com desdém.

— Você nunca passou de um acessório, Nik. Eu me conformei com isso há muito tempo. Mas hoje… hoje você vai fazer o seu papel.

Nik sentiu algo gelado apertar seu peito.

Não era medo.

Era certeza.

Por mais que tivesse sobrevivido àquela casa, a Loki, às correntes e humilhações, ele continuava preso.

Preso àquela família, àquela imagem, àquele sobrenome.

E agora, preso a um novo jogo.

E se tinha algo que Nik aprendeu com Loki…

É que jogos só terminam quando alguém perde tudo.

— Tudo bem, pai. — Nik sussurrou. — Eu vou.

Mas, dentro dele, algo estava acordando.

E dessa vez, ele não seria a peça quebrada do tabuleiro.

CONTINUA...

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