Kelly tentava analisar tudo, cada coisa fora do lugar. Falou várias vezes com seus pais, insistindo que havia algo errado, que o mundo ao seu redor não batia com suas memórias. Mas eles sempre respondiam com a mesma fórmula repetida:
— São as sequelas do acidente, filha. O coma afetou sua memória. Com o tempo, tudo vai voltar ao normal.
Mas normal era justamente o que Kelly não conseguia encontrar.
Quando a noite chegou, e os pais foram dormir, Vivian pediu para conversar sozinhas, no quarto de Kelly. Sentou-se na beirada da cama, com um sorriso suave e perguntou como ela estava se sentindo. Kelly, cansada de rodeios, foi direto:
— Por que está tudo diferente? Nossa vida não era assim. Vocês não são assim. Parece… uma encenação. Como se estivessem representando papéis que não são de vocês.
Vivian não se ofendeu. Não rebateu. Apenas suspirou, como quem lida com uma criança confusa.
— Você ficou em coma por seis meses, Kelly. É natural que esteja confusa. Todo esse tempo… nós esperamos por você. Nunca desistimos. Nunca perdemos a fé. Estamos felizes por ter você de volta.
Kelly ficou perplexa. Sua irmã, a mesma que passou anos provocando-a, inventando fofocas, rindo de suas derrotas, agora falava com ternura. Pensou, com um arrepio: “Se eu tivesse morrido, Vivian talvez tivesse dado uma festa. Jamais esperaria tamanha aproximação dela”.
A conversa continuou e Kelly, determinada, foi além:
— Suponho… que talvez tenha acontecido um acidente. Talvez eu tenha ficado em coma. Mas vocês estão omitindo alguma coisa. Nossos pais estavam se separando, eu vi a briga. E você… você sempre quis distância de mim. Agora, parece amiga. É estranho, Vivian. Muito estranho.
Vivian sorriu, um sorriso paciente, quase condescendente, e pegou o celular.
— Pare com essas besteiras. Nós sempre fomos grudadas. Se você não lembra, eu posso provar.
Deslizou o dedo pela tela e começou a mostrar fotos, as duas em viagens, abraçadas em festas, fazendo caretas diante do espelho, comendo sorvete em tardes ensolaradas. Lugares que Kelly não se lembrava. Momentos que não lembrava de ter vivido.
— Veja.
Disse Vivian, apontando para uma foto delas em frente a uma cachoeira.
— E quanto aos nossos pais…
Continuou Vivian:
— Eles se amam. Sempre se amaram. Nunca brigam. Você está confusa, mas vai se lembrar aos poucos. Não force tanto sua mente. Deixe vir naturalmente.
Kelly engoliu seco. Havia uma pergunta queimando em sua garganta.
— E o Charlie? Por favor… me diga a verdade sobre ele.
— Não conheço nenhum Charlie.
Respondeu Vivian, rápida, quase automática.
— O nosso vizinho. Meu namorado. O que mora na casa ao lado.
— Você não tem namorado, Kelly. Nunca teve. Nossos vizinhos são um casal de idosos. Os filhos deles têm mais de quarenta anos.
Kelly ignorou a resposta, como se pudesse apagá-la apenas recusando-se a aceitá-la.
— E a faculdade?
Vivian sorriu, aliviada. Como se finalmente tivesse encontrado um terreno seguro.
— Ah, que alegria! Finalmente você se lembrou de algo correto…
— Meu curso de Psicologia, certo?
— Sim. Sua matrícula está trancada, mas todos esperam por você. Seus amigos, seus professores… sempre perguntam por notícias. Foi um choque para todos o seu acidente.
— Não sei o que pensar sobre isso…
— Não precisa voltar a estudar agora. Você precisa se recuperar. Descansar. Se curar.
— Eu deveria fazer algo… para me distrair. Para não ficar pensando nisso tudo.
— Você pode tirar mais tempo para se cuidar. Ninguém está cobrando nada de você.
— Não sei…
— Você se esforça demais, Kelly. Sempre foi assim. Vai acabar se sobrecarregando de novo.
— Quando me sobrecarreguei com isso?
Vivian hesitou um milésimo de segundo, quase imperceptível.
— Você sempre foi uma aluna brilhante. Inclusive… Descobri depois do seu coma que você é uma das melhores alunas da sua turma. Um professor veio aqui, em casa, prestar solidariedade. Disse que você faz falta nas aulas. Que sua ausência deixou um vazio.
Kelly arregalou os olhos.
— Meus professores jamais fariam visitas pessoais na casa de um aluno.
— Como eu disse, você é uma aluna de destaque. Valorizada. Com potencial…
— Qual o nome desse professor?
— Eu não me lembro… Talvez Carlos… Thomas… Edson… Não sei ao certo.
— Não conheço nenhum desses nomes. Como ele era?
— Posso descrevê-lo depois…
Disse Vivian, levantando-se de repente.
— Agora, vamos dormir. Já está tarde, e você precisa descansar. Foram muitas informações por hoje.
Kelly deitou-se, mas o sono não veio. Quando finalmente adormeceu, mergulhou em sonhos estranhos, quase reais, quase palpáveis. Em um deles, uma presença masculina pairava à distância. Não conseguia enxergá-lo claramente, apenas sua sombra, alongada, imóvel, como se estivesse presa. Tentou se aproximar, mas algo invisível, uma barreira de ar a impedia.
O homem estava a uns cinco metros. Não se movia. Não respirava. Apenas falava com uma voz que parecia vir de dentro dela mesma:
— Kelly… aqui não é o mundo real. É o mundo paralelo. Aqui é o mundo ideal.
Repetiu. Várias vezes. Como um eco insistente.
Kelly tentou responder, gritar, perguntar, implorar, mas sua voz não saía. A garganta estava travada. Os pulmões, pesados.
O homem continuou:
— O mundo ideal deve ser o mundo perfeito. O mundo ideal é o melhor.
Ela se contorcia, os dedos cravando nas palmas das mãos, os lábios tremendo, mas nenhum som escapava.
— O universo paralelo foi uma escolha. Não se assuste.
E, subitamente, como se alguém tivesse puxado um plugue, Kelly acordou. Suada. Ofegante. O coração batendo como um tambor descompassado. Sentou-se na cama, as mãos trêmulas, os olhos arregalados na escuridão. O sonho parecia mais real do que a casa de sua família.
“Que história é essa de mundo ideal e universo paralelo?”, pensou, a mente fervendo. Era um delírio? Alucinação? Ou… algo mais? Mesmo que fosse apenas um sonho, algo dentro dela queria acreditar. Queria desesperadamente que aquilo tivesse sentido. Porque, se fosse verdade, talvez houvesse uma explicação. Talvez ela não estivesse louca. Talvez não tivesse perdido a memória.
Começou a sentir calafrios que desciam pela espinha. Náuseas como se seu corpo rejeitasse aquele mundo. Levantou-se, cambaleante, e foi até a cozinha beber água. Encostou-se na pia, respirando fundo, tentando se acalmar.
Quando começou a se sentir melhor, percebeu que havia perdido o sono. Decidiu andar pela casa, como se pudesse encontrar pistas escondidas nos cantos, nas gavetas, nas molduras das fotos.
Notou os porta-retratos, dezenas deles. Todos mostravam a mesma família: sorrindo, abraçada, feliz. Nada daquilo parecia real. Nada daquilo combinava com as memórias que ela tinha das discussões, do silêncio, da tensão constante. Aquele era um álbum de uma família que ela desejaria ter tido, não a que realmente viveu. O ambiente era acolhedor quase demais. E, por isso, assustador. Porque não era dela.
À medida que o dia clareava, Kelly viu os primeiros raios de sol surgirem dourados, suaves, quase cinematográficos. Decidiu sair de casa. Precisava de ar. Precisava de provas. Caminhou até a porta dos vizinhos, a casa onde Charlie morava. Mas, sem coragem de bater, limitou-se a observar de longe, como uma espiã.
Havia um banco de madeira perto da entrada de sua casa. Sentou-se ali, os olhos fixos na rua, no portão, nas janelas da casa ao lado. O sol subia devagar, pintando as casas de tons quentes. A rua estava calma. Quase vazia. Até que a porta da casa dos vizinhos se abriu.
Um senhor de cerca de setenta anos saiu, cabelos brancos, camisa xadrez, calça social passada a ferro. Alguém que Kelly nunca tinha visto antes. Ele a viu sentada no banco, arregalou os olhos e se aproximou, com um sorriso largo, quase emocionado:
— Minha nossa! Que felicidade! Você se recuperou! Está tudo bem, Kelly?
Ela o encarou confusa, desconfiada.
— Quem é o senhor?
O homem pareceu magoado, mas disfarçou com um sorriso ainda maior.
— Somos vizinhos desde que você nasceu. Moro aqui há mais de quarenta anos. Estou tão contente que tenha saído do coma e esteja de volta! Minha esposa vai ficar muito feliz em saber.
Kelly apontou para a casa ao lado, o coração batendo forte.
— O senhor conhece o Charlie? Ele morava nessa casa.
O vizinho pareceu confuso. Depois, assustado como se ela tivesse dito algo proibido.
— Não… não conheço nenhum Charlie. Vivo nessa casa há anos. Sempre fui seu vizinho. Mas… não se preocupe. Tenho certeza de que seus pais vão cuidar de tudo. Foi muito bom vê-la novamente!
Ele se afastou lentamente, lançando-lhe um olhar de pena, o tipo de olhar que se dá a alguém que perdeu a razão.
Kelly permaneceu sentada, imóvel, os olhos fixos no chão. Onde estava Charlie? Se aquilo tudo fosse uma alucinação, por que ele não fazia parte dela? Por que sua mente que reconstruiu uma família feliz, uma casa perfeita, uma cidade bonita, não incluiu o homem que ela amava?
E se fosse realmente um universo paralelo, como a voz no sonho afirmara, por que Charlie não existiria aqui? Ele era parte essencial da sua vida. Do seu coração. Da sua história. Além disso, Kelly não achava que aquele fosse o “mundo ideal”, como a voz dissera. Tudo tinha um tom forçado. A felicidade, programada. Até o sol parecia estar atuando brilhando mais do que deveria, como se quisesse convencê-la de que aquele era o lugar certo.
Ficou sentada no banco, observando as poucas pessoas que passavam todas sorrindo, cumprimentando-se, caminhando como se estivessem em um comercial de margarina. Quase nenhum carro nas ruas. O ar, de fato, mais puro. A temperatura, perfeitamente agradável. Nada fora do lugar. Nada imperfeito. E foi exatamente isso que a assustou. Porque nada que se apresenta como perfeito é real.
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Atualizado até capítulo 64
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