A família de Kelly estava relutante, não apenas em explicar, mas em encarar o que precisava ser dito. Como se as palavras fossem facas, e cada uma delas pudesse cortar algo dentro dela, ou dentro deles mesmos. Após um longo e perturbador silêncio, tão denso que parecia sufocar o ar do quarto, seu pai engoliu seco e começou a falar, a voz trêmula, como se estivesse lutando contra si mesmo:
— Filha… aparentemente, sua memória foi afetada. Você realmente não se lembra de nada daquele dia? Nada mesmo? Nem do acidente?
Sua mãe suspirava baixinho, os olhos marejados, tentando disfarçar o choro com as mãos trêmulas. Vivian levou as mãos à boca, os dedos pressionando os lábios, como se quisesse impedir que um grito escapasse. Kelly, ainda confusa, desorientada, respondeu, quase instintivamente:
— Claro que me lembro. Eu me afoguei na praia.
— O que está dizendo?
Seu pai interrompeu, suavemente, mas com uma seriedade que a fez estremecer.
— Isso pode ser… um delírio. Algo que sua mente criou enquanto estava em coma. Na verdade…
Kelly o interrompeu. Seu corpo inteiro tremia, o coração batia acelerado, a respiração ofegante, curta, como se o ar não chegasse aos pulmões.
— O que você quer dizer com coma? Eu fiquei em coma por causa do afogamento? Isso não é possível!
Sentiu as lágrimas pressionando seus olhos, quentes, insistentes. Tentou contê-las por medo de que, se chorasse, nunca mais conseguisse parar. Observou as expressões emocionadas de sua família e, sabendo que estavam em guerra aberta antes de tudo isso, imaginou que aquilo não podia ser uma encenação. Não era possível fingir tanta dor, tanto alívio, tanta unidade. Começou, então, a acreditar, ou pelo menos a duvidar de si mesma.
Seu pai continuou, devagar, como quem caminha sobre vidro:
— Não houve afogamento, Kelly. Você sofreu um grave acidente de carro. Estava dirigindo… e caiu em um desfiladeiro perto de um rio. Não chegou a ser submersa pela água, o carro parou antes. Mas você ficou gravemente ferida. Esteve entre a vida e a morte. Nós… nunca perdemos a esperança de que ficaria bem.
— Como assim?
Kelly sentia seu coração batendo ainda mais forte, como se quisesse escapar do peito.
— Eu me lembro claramente de estar na praia. Das ondas. Do frio. Da água entrando na minha garganta. Eu me afoguei!
— Calma, filha. Você está confusa. Foram… seis meses de luta.
— O quê?
A voz dela saiu rouca, quase um sussurro rouco de incredulidade.
— Seis meses? Não é possível! Você está me dizendo que fiquei meses desacordada?
Kelly ficou perplexa, não apenas surpresa, mas desmontada. Era como se o chão tivesse sido arrancado debaixo de seus pés. O choque foi tão intenso que, por um momento, seu corpo pareceu paralisar. O coração, que antes disparava, agora parecia ter esquecido como bater. Sentiu-se dormente, os dedos, os braços, as pernas, tudo entorpecido. E, finalmente, as lágrimas que havia segurado escorreram lentas, quentes, silenciosas pelo rosto.
— Sim.
Confirmou seu pai, com a voz engasgada.
— Foram seis longos meses.
— Eu me afoguei.
Repetiu ela, em um sussurro quase inaudível, os olhos fixos no vazio.
— Tenho certeza disso…
Todos ficaram apreensivos. Sua mãe saiu rapidamente para chamar o médico. Seu pai segurou sua mão com força, como se temesse que ela pudesse desaparecer e confirmou com a cabeça, os olhos marejados, cheios de uma dor que Kelly nunca tinha visto nele.
O médico chegou em minutos. Fez perguntas simples, rotineiras: nome, idade, nome dos pais, data de nascimento. Kelly respondeu com precisão clara, lúcida, coerente. Até que ele perguntou:
— E o que aconteceu com você? Lembra como veio parar aqui?
Ela repetiu, sem hesitar:
— Me afoguei na praia.
O médico arqueou as sobrancelhas. Trocou um olhar rápido com os pais. Depois, virou-se para Kelly e, com cuidado, sustentou a versão da família:
— Kelly, os registros médicos, os laudos, os relatórios… tudo indica que você sofreu um acidente de carro. O afogamento pode ser uma memória fabricada, algo que pode ocorrer em casos como o seu.
Kelly não disse mais nada. Apenas olhou para ele fixamente, como se tentasse encontrar uma brecha naquela realidade que lhe era imposta. Ficou em silêncio. Sem reação. Sem lágrimas. Sem gritos. Apenas vazia.
O médico, então, começou a explicar com tom suave, didático, que ela estava em estado de choque pós-traumático, e que era normal sentir confusão, desorientação, até negação. “O cérebro tenta se proteger”, disse. “Reconstrói narrativas para suportar o inaceitável.” Isso pareceu acalmar um pouco seus familiares, como se, finalmente, houvesse uma explicação médica, científica, para o absurdo que estavam vivendo.
Depois, o médico falou em voz baixa com os pais, mas Kelly, com os sentidos aguçados pelo pânico, conseguiu ouvir:
— Pode ser negação... Ou uma sequela neurológica, mesmo com os exames normais. Ela está substituindo o trauma real por uma fantasia menos dolorosa. É raro… mas não impossível.
Ainda em choque, Kelly perguntou, quase num fio de voz:
— Por que eu estaria em negação… por me afogar?
Todos a olharam e o silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer palavra. Pareciam relutantes em falar até que Vivian, que até então só chorava, enxugou as lágrimas, respirou fundo e disse, com uma coragem que soava quase desesperada:
— Na noite do seu acidente… você saiu de uma festa. Estava… embriagada. Talvez tenha dormido ao volante.
Kelly sentiu o estômago revirar.
— Eu… machuquei alguém?
— Não.
Respondeu seu pai, rápido.
— Você estava sozinha. Não atingiu outro veículo. Era tarde da noite, e a estrada estava vazia.
Kelly fechou os olhos por um segundo. Quando os abriu, perguntou como se aquela fosse a última coisa que ainda lhe restava no mundo:
— E depois de todo esse tempo… vocês estão bem? Vocês não se divorciaram? E o Charlie? Ele deve estar arrasado. Tenho medo… tenho medo que a depressão dele tenha piorado…
Quando ela mencionou Charlie, os olhares de sua família mudaram instantaneamente. Foi como se alguém tivesse apertado um botão de pânico. Os rostos empalideceram. O ar ficou mais pesado. Kelly sentiu algo estranho, um frio diferente, que vinha do peito. Seu corpo começou a tremer. Tentou se cobrir com a coberta, como se quisesse desaparecer debaixo dela. O silêncio tomou conta da sala mais uma vez. Ninguém sabia o que dizer. Ninguém ousava. Até que Vivian, respirando fundo, como quem se prepara para pular de um penhasco, falou:
— Nossos pais nunca cogitaram se separar. Nunca. Não se lembra de como éramos felizes? Sempre dissemos que tivemos sorte… porque eles nunca discutem. Nunca brigam. São… perfeitos. E sobre esse nome… Charlie?
Ela fez uma pausa, como se o nome queimasse na língua.
— Eu… nunca ouvi falar dele.
Kelly ficou boquiaberta.
Olhou para o chão. Depois, para as próprias mãos tremendo, incontroláveis. Não podia acreditar. Era impossível. Tudo ao seu redor as vozes, os rostos, as palavras, parecia contrário à realidade que ela conhecia, que ela vivia. Não conseguia assimilar. Não conseguia aceitar.
Em um rompante, explodiu:
— Mentirosos! Por que estão mentindo?! Meu pai foi embora de casa! Eu vi! Eu impedi ele de bater na minha mãe! Vocês não precisam me enganar! E o Charlie… ele deve ter fugido porque eu fiquei em coma, não é isso? É isso?!
Ela esbravejou, a voz rouca, carregada de dor, de raiva, de desespero. Todos se desesperaram com seus gritos. Seu pai correu para chamar o médico. Sua mãe a abraçou apertado, como se quisesse fundir seus corpos e chorou sobre seu ombro, repetindo “está tudo bem, está tudo bem”, como um mantra sem sentido.
O médico voltou apressado. Não perguntou nada. Apenas aplicou uma injeção rápida, silenciosa. Kelly sentiu o líquido frio entrar em sua veia. Em segundos, seu corpo começou a ficar mole. Relaxado. Pesado. Seus olhos… pesaram. E ela… adormeceu. Profundamente.
Kelly dormiu por muitas horas, talvez um dia inteiro. Quando acordou, o sol já estava baixo. Não queria falar com ninguém. Não queria olhar para ninguém. Sua família estava… estranha. Tudo neles parecia encenado, os sorrisos, os abraços, a preocupação. Como se estivessem representando papéis que não lhes pertenciam.
Sentia-se exausta, não fisicamente, mas mentalmente. Sua cabeça latejava, como se seu cérebro estivesse tentando se reorganizar dentro de um crânio que não era mais seu. O médico fez novos exames, ressonâncias, testes neurológicos, sangue. Todos perfeitos. Nenhuma sequela. Nenhum dano. Nada que justificasse sua confusão ou sua lucidez. “É um milagre”, disseram os médicos. “Ficar seis meses em coma e acordar sem nenhuma deficiência motora ou cognitiva… é quase inédito.”
Seus pais a levaram para casa. No caminho, Kelly teve outra surpresa. As ruas da cidade estavam diferentes. Mais limpas. Mais arborizadas. As calçadas, reformadas. As fachadas, pintadas. Até o ar parecia mais leve, como se a cidade inteira tivesse sido… refeita.
Quando chegaram à casa, Kelly mal reconheceu o lugar. O jardim à frente estava impecável, flores coloridas, grama verde brilhando sob o sol da tarde, cercas brancas recém-pintadas. Era um cenário de cartão-postal. Pacífico. Bonito. Algo que ela nunca tinha visto antes.
Ao entrar, a sensação de estranheza só aumentou. Os móveis eram completamente diferentes, modernos, caros, harmoniosos. Nada daquela bagunça familiar, dos sofás surrados, das mesas manchadas. Tudo estava… perfeito. Organizado. Impecável.
Só quando entrou em seu quarto é que sentiu algo familiar. As paredes, os pôsteres, a cama, a escrivaninha… tudo igual. Como se aquele cômodo tivesse sido preservado no tempo, um santuário da sua identidade. Foi a primeira vez, desde que acordou, que se sentiu conectada a algo real.
Minutos depois, seus pais a chamaram para o jantar. Antes de começarem a comer, abraçaram-na juntos, dizendo o quanto estavam felizes por tê-la de volta. Sua mãe chorava de emoção. Algo muito estranho, já que sempre foi uma mulher de gelo, de silêncios cortantes, de afeto contido. Seu pai estava sóbrio, algo raro. Ambos pareciam mais unidos, mais carinhosos do que jamais foram.
Kelly observava tudo com atenção cirúrgica. Falava pouco. Comia menos ainda. Sua irmã, Vivian, queria ficar ao lado dela o tempo todo. Segurando sua mão, sorrindo constantemente, fazendo piadas, elogiando seu cabelo, sua roupa, sua força. Coisas que Vivian nunca tinha feito. Jamais.
Tudo parecia estranho. Falso. Como se aquela não fosse sua família de verdade. E, ao mesmo tempo, ela sentia uma conexão inexplicável com eles. Um calor no peito quando sua mãe a abraçava. Um conforto quando seu pai lhe servia comida. Um carinho genuíno no toque de Vivian. Sentiu-se acolhida. Por uma familiaridade estranha. Desconhecida. E, talvez por isso, assustadora.
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Atualizado até capítulo 64
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