Kelly começou a enfrentar uma grande crise familiar uma dessas que abalam os alicerces da casa, que fazem o chão tremer e o ar ficar irrespirável. Seus pais tiveram uma briga séria. Durante uma de suas bebedeiras habituais, o pai, num acesso de fúria alcoólica, tentou agredir a mãe. Kelly, instintivamente, interveio e, por ele estar tão bêbado, conseguiu contê-lo, empurrando-o para longe, bloqueando seus braços, impedindo que fizesse algo irreparável.
Depois disso, sua mãe caiu em prantos no chão da sala, soluçando, repetindo entre lágrimas que queria o divórcio, que não aguentava mais, que aquilo tinha que acabar. Desesperada, Kelly ligou para a irmã, Vivian, que estava em uma festa, rindo, bebendo, vivendo como se o mundo fosse eterno. Pediu ajuda, implorou, na verdade. Mas Vivian, com a voz arrastada e o tom de quem não quer ser incomodada, respondeu com desprezo:
— Se vira, Kelly. Eu não volto pra casa hoje.
E desligou.
Sozinha, com o peso do mundo nos ombros, Kelly passou a noite em claro, sentada na escada da sala, ouvindo os roncos do pai no sofá e os soluços abafados da mãe no quarto. Ficou acordada, tensa, os músculos enrijecidos, pronta para qualquer movimento, qualquer som que indicasse que ele acordaria e tentaria machucar a mãe novamente. O medo era físico, quase palpável. Não conseguiu pregar os olhos. Ao amanhecer, por volta das seis horas, exausta, vencida pelo cansaço acumulado, adormeceu ali mesmo, encostada na parede.
Acordou três horas depois, com os berros da mãe rasgando o silêncio da casa. Assustada, deu um pulo da cama, ou melhor, do chão, e correu até a sala. Seus pais estavam novamente em confronto. Dessa vez, o pai parecia sóbrio ou pelo menos mais lúcido, mas a mãe, com os olhos vermelhos e a voz rouca de tanto gritar, o acusava de tê-la machucado na noite anterior. Gritava para que ele saísse de casa e nunca mais voltasse. Ele negava, retrucava com raiva, chamando-a de histérica, de mentirosa, de ingrata.
Kelly não sabia o que fazer. Não tinha mais a adrenalina do dia anterior, aquela força desesperada que a fizera enfrentar o pai bêbado. Agora, os gritos deles a faziam tremer por dentro. Ficou paralisada no vão da porta, as mãos geladas, o coração acelerado, como se estivesse presa num pesadelo do qual não conseguia acordar. Assistia à cena como espectadora involuntária, impotente, dividida entre o medo e a culpa por não saber como intervir.
Após minutos intermináveis de berros, sua mãe, num acesso de fúria e coragem, começou a arrastar as roupas do pai do armário e a jogá-las dentro de malas velhas. Depois, carregou as malas até a porta da frente e as atirou para fora, uma por uma, como se estivesse expulsando não só as roupas, mas todos os anos de dor, de silêncio, de submissão. Ele a insultava, chamava-a de louca, ameaçava voltar, jurava que aquela casa era dele, que tudo ali era dele.
Foi então que Kelly, percebendo a gravidade da situação, conseguiu reagir. Avançou até o meio da sala, colocou-se entre os dois e, com a voz firme, embora trêmula, disse ao pai:
— Se você tentar qualquer coisa física contra ela de novo, eu chamo a polícia. E não estou brincando.
Ficou de prontidão, os punhos cerrados, os olhos fixos nele, pronta para qualquer reação. Isso o irritou ainda mais, ele se virou para ela, cuspiu palavras cheias de ódio, fez ameaças, tentou intimidá-la com o olhar. Kelly estremeceu, mas não recuou. Não abaixou os olhos. Não cedeu. Manteve-se firme, decidida a proteger a mãe, mesmo que isso custasse tudo.
Depois de horas de confusão, gritos, lágrimas e ameaças, o homem finalmente pegou suas malas, xingou todo mundo pela última vez e saiu de casa enfurecido, batendo a porta com tanta força que as paredes tremeram. Antes de desaparecer rua abaixo, gritou:
— Eu volto! Essa casa é minha! Tudo aqui é meu!
E sumiu, sem rumo, sem destino, apenas raiva e álcool correndo nas veias.
A mãe de Kelly, sendo uma pessoa extremamente reservada, quase inacessível emocionalmente, recusou qualquer tentativa de consolo por parte da filha. Kelly tentou abraçá-la, falar com ela, acalmá-la, mas foi em vão. A mãe apenas balançava a cabeça, os olhos secos agora, como se tivesse esgotado todas as lágrimas que tinha. Com medo de que ele voltasse, e sabendo que, bêbado, era imprevisível, decidiu passar a noite na casa de uma irmã, distante dali. Convidou Kelly a ir junto.
— Não.
Respondeu Kelly, firme.
— Eu fico aqui.
Precisava ficar. Precisava proteger a casa. Precisava sentir que ainda tinha algum controle sobre algo. Com a situação momentaneamente controlada, ou pelo menos, silenciosa, Kelly respirou fundo, aliviada, e pegou o celular. Ligou para Charlie.
— Alô?
— Oi! Como foi seu dia? Você disse que passaria o dia dormindo. Não escutou gritos?
Perguntou ela, tentando soar casual, mas com a voz ainda trêmula. Queria saber se ele, sendo vizinho, havia ouvido algo, se alguém além dela testemunhara aquele horror.
— Não.
Respondeu Charlie, distraído.
— Estive o dia todo tocando com a banda. Aproveitamos que meus pais não estavam em casa e fizemos nosso próprio barulho. Mas por que pergunta? Quem brigou?
— Nada, ninguém.
Respondeu Kelly, rápida, quase automática. Preferiu não contar. Nunca falava sobre coisas ruins em casa, temia que isso pudesse piorar a depressão de Charlie, que já vivia à beira do abismo. Guardava tudo para si, como sempre fizera.
Depois de uma breve conversa, superficial, desligou o telefone. Sentiu o peso do silêncio da casa caindo sobre ela. Precisava sair. Precisava respirar. Precisava de ar que não estivesse contaminado por gritos e lágrimas.
Decidiu dar um passeio, não para pensar, mas para não pensar. Queria espairecer caminhando na praia, que ficava a apenas meia hora de sua casa. Desde o dia anterior, sentia uma vontade estranha, quase física, de entrar no mar, como se a água pudesse lavar tudo, apagar tudo, recomeçar tudo.
Pegou um táxi. Ao chegar, percebeu que a praia estava deserta, era um dia frio, nublado, o vento cortava a pele. Perfeito. Impulsivamente, sem pensar, decidiu entrar no mar de roupa, calça jeans, camiseta, tênis e tudo. Não havia levado biquíni, mas isso não importava. Correu pela areia, os pés afundando, o vento batendo no rosto, e adentrou o mar sem hesitar.
As ondas eram fortes, o mar, agitado e ela, destemida, foi se afastando da areia, como se buscasse algo além do horizonte. Sentia uma estranha paz naquela violência das águas, como se, ali, finalmente, pudesse se entregar.
Mesmo sabendo nadar, perdeu o controle. Uma onda maior a derrubou, outra a arrastou, e, de repente, percebeu que estava longe demais. Tentou voltar, mas as correntezas eram fortes demais. Debatia-se, engolia água, os braços cansavam, o peito ardia. Gritou, mas ninguém ouviu.
Os minutos se arrastavam, cada segundo parecia uma eternidade. Pensou na mãe. No pai. Em Charlie. E, no último lampejo de consciência, pensou: “É isso. Vou morrer aqui.” Depois disso, Kelly não viu mais nada.
Quando despertou, estava em um hospital. Luzes brancas, cheiro de antisséptico, o som abafado de máquinas. Por um momento, pensou que estava morta, afinal, não havia ninguém na praia. Quem poderia tê-la salvado? Ao abrir os olhos, viu toda a sua família reunida ao redor da cama: sua mãe, seu pai, sim, seu pai, e sua irmã. Todos gritavam, choravam, abraçavam-se uns aos outros:
— Ela acordou! Finalmente!
— Graças a Deus!
— Kelly! Kelly, você está aqui!
Tentavam falar com ela, mas todos falavam ao mesmo tempo, eufóricos, descontrolados, deixando Kelly ainda mais confusa. Seu corpo estava frio, um frio que vinha de dentro. Sentia-se tonta, desorientada. Sentou-se na cama com esforço, cercada por fios, tubos, monitores, e olhou ao redor, notando cada detalhe daquele quarto apertado, impessoal, cheio de vida artificial. Sua mente estava dispersa, dividida entre a imagem do mar furioso, as ondas, o sal, o desespero e os gritos de alegria da família.
Um médico foi chamado às pressas. Entrou no quarto com passos firmes, avaliou seus sinais vitais, perguntou como ela se sentia.
— Estou bem.
Respondeu Kelly, com a voz rouca, mas firme.
O médico arregalou os olhos, claramente não esperava aquela resposta. Trocou olhares com a enfermeira. A família comemorava, como se “estar bem” fosse um milagre.
Logo depois, exames foram feitos. Kelly continuava espantada com a animação de todos. E mais ainda com o fato de estarem juntos, todos juntos, depois da briga violenta entre seus pais. A situação era tão fora do comum que ela mal conseguia formar frases. Depois de alguns minutos, com a família finalmente mais calma, começaram a conversar, ou tentar:
— Filha, não se assuste.
Disse sua mãe, segurando sua mão com força.
— O médico disse que, milagrosamente, parece que está tudo bem com você.
— Filha, está tudo bem! Estamos aqui te esperando desde o primeiro momento.
Acrescentou seu pai, com os olhos marejados, a voz embargada.
Vivian, por sua vez, não conseguia conter as lágrimas, lágrimas que misturavam emoção, alívio. Kelly, assustada, perguntou:
— Quanto tempo demorou para me salvarem? E por que estão todos aqui reunidos? Pai, você não tinha saído de casa?
Todos a olharam em silêncio que foi mais assustador do que qualquer grito. Kelly sentiu algo estranho, um frio diferente, que não vinha do corpo, mas da alma. Sua mãe engoliu seco e disse, com voz trêmula:
— É provável que você esteja tendo delírios, amor… depois de tanto tempo desacordada. Mas pelo menos… pelo menos você nos reconhece.
Vivian, chorando, quis confirmar:
— Kelly, você sabe quem eu sou?
— Vivian, você está me zoando?
Kelly riu, nervosa.
— Você acha que um hospital é lugar para brincadeiras?
— Mãe! Ela me reconhece! Ela sabe quem nós somos! Não houve perda de memória!
Comemorou Vivian, como se tivesse acabado de vencer uma batalha.
— Por que vocês estão agindo tão estranho?
Kelly falou, ofegante, os olhos arregalados.
— Por que eu teria perda de memória por causa de um afogamento? Eu devo ter ficado pouco tempo na água, não precisa de exagero, estou bem!
Todos ficaram paralisados. Ergueram as sobrancelhas. Trocaram olhares apavorados. Ninguém ousou falar. Kelly sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo, da nuca até os pés. Algo estava definitivamente errado. Profundamente errado. Foi então que seu pai, com a voz pesada, uma voz que ela nunca tinha ouvido antes, disse, lentamente:
— Vamos ter que lembrá-la do que aconteceu.
Sua mãe, com lágrimas silenciosas escorrendo pelo rosto, apenas concordou com a cabeça, como quem confirma uma sentença.
E Kelly, teve medo. Teve medo da verdade.
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Atualizado até capítulo 64
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