De Volta ao Cotidiano

Renan ajeitou a gola da camisa enquanto saía da casa do pai. O café quente ainda ressoava em seu paladar, e o peso das memórias o acompanhava como uma sombra. Tudo naquela casa parecia congelado no tempo, como se nada houvesse mudado desde que ele partira. E talvez, de certa forma, não tivesse mesmo.

A viagem até Queluzito não era só um retorno físico. Era um mergulho nas lembranças, nas cicatrizes do passado que ele nunca teve coragem de encarar de frente. Agora, andando pelas ruas da cidade, ele sentia cada passo como um reconhecimento de território, mesmo que estivesse disfarçado de um estranho.

Quando chegou ao centro da cidade, Renan estacionou o carro próximo à praça principal, que ainda exibia o mesmo coreto enferrujado, envolto por árvores frondosas. A praça estava viva, com crianças correndo e rindo, enquanto idosos se sentavam nos bancos, observando com olhares calmos. Era uma cena que poderia ter sido retirada de qualquer momento das últimas duas décadas. A vida em Queluzito seguia em um ritmo diferente, mais lento, como uma antiga canção que nunca termina.

Ele caminhou lentamente, as mãos nos bolsos, respirando o ar puro da cidadezinha. Enquanto olhava em volta, passou por algumas lojas que permaneciam iguais. Uma padaria com a mesma fachada azulada, uma farmácia que não mudava há anos, e, claro, o velho Bar do Zé. Renan sorriu ao ver o lugar ainda de pé. Mesmo que estivesse um tanto deteriorado, o bar era parte da alma da cidade. Não havia quem não tivesse passado por ali em algum momento.

Ele decidiu entrar.

O ambiente interno era como uma cápsula do tempo. As mesas de madeira ainda estavam desgastadas pelo uso, e o balcão, mesmo que um pouco mais arranhado e manchado, era exatamente o que ele esperava. Zé, o dono, estava atrás do balcão, agora visivelmente mais velho. Os cabelos brancos denunciavam o tempo, mas o sorriso no rosto era o mesmo.

— Boa tarde — cumprimentou Renan, de maneira discreta, como se fosse apenas mais um visitante.

Zé ergueu os olhos de sua tarefa de limpar um copo, avaliando o estranho que entrava. Ele não fez nenhuma pergunta imediata, como era seu jeito, mas o olhar curioso estava ali. A cidade era pequena, e gente nova sempre chamava atenção.

— Boa tarde, amigo. O que vai ser? — perguntou Zé, agora com a calma de quem já havia visto de tudo.

Renan caminhou até o balcão e se sentou em um dos bancos altos. A madeira rangeu sob seu peso, o que trouxe um certo conforto nostálgico.

— Um café, por favor — pediu, sorrindo.

Enquanto Zé preparava o café, o bar estava em seu ritmo usual. Alguns moradores mais velhos discutiam amenidades em uma das mesas, e duas jovens estavam em um canto, conversando animadamente. A atmosfera ali dentro era aconchegante, um refúgio do calor externo e da vida frenética que Renan havia deixado para trás na cidade grande.

— Aqui está — disse Zé, colocando a xícara de café diante de Renan.

O aroma forte e familiar invadiu suas narinas, e ele não pôde evitar um sorriso. A simplicidade de um café em um bar de uma cidade pequena carregava um certo peso emocional. Era como se, por um breve momento, Renan pudesse esquecer quem era e apenas existir naquele espaço.

— Bom café? — perguntou Zé, quebrando o silêncio com um interesse genuíno, apoiando-se no balcão.

Renan tomou um gole, apreciando o calor que se espalhou por seu corpo.

— Excelente. Exatamente como eu me lembrava.

Zé olhou para ele com um ar pensativo. Não era incomum que os antigos moradores da cidade voltassem de vez em quando, mas algo naquele homem parecia diferente.

— Parece que já passou um tempo por aqui, hein? — arriscou o dono do bar, ainda curioso, mas sem ser invasivo.

Renan deu um pequeno sorriso, apreciando a sutileza na pergunta.

— Faz muitos anos... Vivi aqui quando era garoto. Decidi voltar por um tempo, rever os velhos lugares.

Zé assentiu, satisfeito com a resposta.

— Muita gente faz isso. Voltar. Mas poucos ficam.

Renan sabia que aquilo era verdade. Ele, mais do que ninguém, entendia a necessidade de ir embora, de escapar. Mas, ao mesmo tempo, sentia que voltar, mesmo que sob um nome falso, tinha uma espécie de atração magnética. Havia algo que ele precisava resolver ali, mesmo que não soubesse exatamente o quê.

Enquanto tomava mais um gole de café, a porta do bar se abriu com um som baixo, e uma brisa suave entrou junto com a pessoa que acabara de chegar. Renan, sem pensar muito, lançou um olhar rápido em direção à porta, sem intenção de focar em quem entrava. Mas, quando seus olhos se encontraram com a figura que entrava, o tempo pareceu desacelerar.

Era ela.

Júlia Silva. Seus passos eram calmos, e ela olhava ao redor do bar como quem procurava alguém. Ela estava diferente dos tempos de escola, é claro. Seus traços tinham amadurecido, a postura era mais confiante, mais adulta. Ela usava roupas casuais, mas havia algo no modo como ela caminhava que ainda lembrava a garota determinada que Renan conhecera.

Ele rapidamente desviou o olhar, focando novamente no café, seu coração repentinamente acelerado. A última coisa que queria naquele momento era ser reconhecido. Não estava pronto para aquele encontro.

Júlia caminhou até o balcão, sentando-se a poucos bancos de distância de Renan. Ela pediu um café com uma familiaridade descontraída, como se fosse algo que fazia regularmente. A interação dela com Zé era rápida, sem muitas palavras. Renan continuava focado em sua xícara, tentando parecer o mais invisível possível. Mas a presença dela, tão perto, o incomodava de um jeito que ele não sabia explicar. Era como se ele pudesse sentir as camadas de suas antigas emoções, enterradas sob anos de sucesso e indiferença, começando a emergir.

Ela era uma memória viva, um lembrete do passado que ele tentara enterrar.

Júlia, por sua vez, parecia alheia à tensão silenciosa que Renan sentia. Ela estava distraída, mexendo no celular enquanto tomava o café, sem prestar atenção em nada ao seu redor.

Renan decidiu que era hora de ir. Não era o momento para reviver velhas histórias, não ali, não agora. Ele deixou o dinheiro sobre o balcão e, em um movimento calculado, levantou-se lentamente, evitando ao máximo chamar atenção. Quando passou pela porta, respirou fundo, sentindo o ar fresco lá fora como um alívio.

Dentro do bar, Júlia tomou mais um gole de café, sem perceber o homem que acabara de sair. E assim, sem que ela soubesse, os dois se encontraram pela primeira vez em vinte anos. Renan, porém, sabia que aquele não seria o último encontro.

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