O Café e as Recordações

O aroma do café fresco inundava a pequena cozinha. As paredes, manchadas pelo tempo, pareciam respirar junto com cada gole que Renan dava. Ele estava sentado à mesa de madeira antiga, o mesmo móvel que reconhecia da infância, agora cheio de marcas e cicatrizes do uso diário. O tempo havia sido implacável com aquela casa, assim como com seu pai.

O homem mais velho mexia distraidamente a colher dentro da xícara, enquanto seus olhos, de vez em quando, repousavam sobre Renan. Havia algo em seu olhar que o deixava inquieto. Não desconfiança, mas uma curiosidade contida. Afinal, Lucas Ferreira — a identidade que Renan adotara — era um completo estranho ali.

— O café está bom? — perguntou o pai, sua voz rouca e cansada.

Renan ergueu os olhos da xícara, forçando um sorriso leve. Ele já não se lembrava da última vez que havia tomado café naquela cozinha, e a sensação era quase surreal. Por um segundo, ele se perguntou como teria sido sua vida se nunca tivesse partido.

— Está ótimo, sim, obrigado — respondeu, mantendo seu tom contido.

O velho assentiu, satisfeito com a resposta, e voltou a olhar pela janela. O silêncio entre os dois não era desconfortável, mas pesado. Eram décadas de distância e ausência que ecoavam naquele espaço, embora Renan soubesse que seu pai ainda não tinha ideia de quem estava sentado à sua mesa.

— Faz tempo que passou por aqui, né? — perguntou o pai, sem tirar os olhos da janela, como se estivesse apenas pensando alto.

Renan ficou tenso por um segundo. Ele precisava ser cauteloso com suas respostas.

— Sim, faz muitos anos. Eu... cresci na região, mas acabei indo embora muito cedo. Agora estou só de passagem.

Era a verdade, em parte. Ele havia crescido ali, mas não como Lucas. Como Renan, o filho pobre e desajeitado que nunca mais dera notícias. Aquele que seus irmãos, irmãs e pai certamente consideravam uma memória distante, alguém que provavelmente havia esquecido suas raízes.

— A vida aqui não muda muito — comentou o pai, agora com um tom mais pensativo. — Os jovens vão embora, como você. Muitos deles nunca voltam. Os que ficam... bem, levam a vida como podem.

Renan ouviu as palavras com mais atenção do que esperava. Ele sempre se perguntara como teria sido se tivesse ficado. Teria ele se conformado com a vida dura no campo? Talvez. Mas sua ambição sempre fora maior que a cidade, maior que aquela vida.

— E o senhor? Vive aqui sozinho? — perguntou Renan, mesmo sabendo a resposta. Ele precisava manter as aparências.

O velho balançou a cabeça, com um suspiro profundo.

— Não, não... Tenho meus filhos. Eles ainda estão por aí, moram perto. Mas a idade pega, sabe? A gente acaba ficando sozinho, de um jeito ou de outro. Eles têm as vidas deles. Não dá para prender os jovens.

Renan sentiu uma pontada no peito. Sabia que seu pai estava se referindo também a ele, o filho ausente. O filho que partiu sem olhar para trás. Ele tentou disfarçar o incômodo, tomando mais um gole de café.

— Mas... e você? — o pai perguntou, mudando o foco. — O que faz da vida? Parece ser um homem viajado.

Renan respirou fundo, mantendo sua história de fachada firme em sua mente.

— Trabalho para uma empresa de carros. Vendo peças, na maior parte do tempo. Acabo viajando muito a trabalho, e depois de tantos anos, achei que seria bom tirar umas férias. Decidi voltar para ver a região onde cresci.

Era uma mentira conveniente. Nada que chamasse muita atenção, e simples o suficiente para não levantar suspeitas.

O pai de Renan assentiu, satisfeito com a resposta.

— Boa vida, essa. Viajar por aí, sem ter raízes. Deve ser mais fácil assim.

Renan não pôde deixar de sentir a ironia nas palavras de seu pai. Ele, de fato, nunca mais fincara raízes desde que saiu de Queluzito. A ideia de liberdade e distanciamento sempre o atraiu, mas agora, sentado àquela mesa, algo parecia diferente. Ele não sentia o mesmo prazer no anonimato que o protegera durante tanto tempo.

Os sons da casa eram reconfortantes. O tique-taque de um velho relógio na parede, o chiado do vento passando pelas janelas mal vedadas. Renan quase conseguia se ver, anos antes, correndo pelos corredores, suado e cansado depois de ajudar o pai na lavoura. Era uma vida dura, mas, de alguma forma, ainda o marcava.

De repente, o pai se levantou da mesa, caminhando até uma pequena estante de madeira encostada à parede. Ele remexeu em uma gaveta e, depois de alguns segundos, voltou com um objeto nas mãos.

— Tem uma coisa aqui que achei há pouco tempo. Pensei que fosse do meu filho, o mais novo, mas parece que era de outro alguém. Acho que era seu, não? — disse o velho, estendendo uma pequena caneta de metal para Renan.

Renan sentiu o coração parar por um segundo. Era uma caneta velha, enferrujada nas pontas, mas ele se lembrava perfeitamente dela. Fora um presente que sua mãe lhe dera antes de morrer. Ele a havia perdido dias antes de deixar a cidade, e nunca mais pensara nela.

— Não sei se é minha... — murmurou Renan, pegando a caneta com cuidado, tentando manter sua voz estável.

Ele sentiu o peso da caneta em sua mão, e junto com ela, o peso de seu passado. Era um objeto simples, insignificante para qualquer um que não conhecesse sua história. Mas, para ele, representava muito mais do que isso. Era uma lembrança de quem ele era, de onde veio, e do que havia deixado para trás.

— Parece que o tempo faz a gente encontrar coisas que nem sabíamos que estavam perdidas — disse seu pai, voltando a sentar-se.

Renan ficou em silêncio por um momento, segurando a caneta com firmeza. Ele sabia que aquele reencontro não seria fácil, mas não esperava que pequenas coisas do passado tivessem um impacto tão forte. A verdade sobre sua identidade estava cada vez mais difícil de esconder, mas ele não estava pronto para revelá-la.

Ainda não.

— O senhor está certo — respondeu Renan, guardando a caneta no bolso do casaco. — Às vezes, o passado volta de maneiras inesperadas.

O pai apenas sorriu, satisfeito com a resposta. Para ele, Renan era apenas um homem de passagem, alguém que compartilhava um pouco da história daquele lugar.

Renan, por outro lado, sabia que aquele era apenas o começo. O começo de algo muito maior do que ele havia planejado.

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Comments

Marfisa Torres Ferreira

Marfisa Torres Ferreira

estou adorando a história, muito boa

2024-09-25

1

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