As manhãs em Belo Monte sempre começaram cedo. Os primeiros raios de sol mal tocavam o horizonte e já se ouvia o som do galo anunciando um novo dia. Naquele ambiente rural, a vida seguia um ritmo próprio, ditado pela natureza e pela necessidade de cuidar da fazenda. Era uma rotina que, em teoria, deveria trazer paz, mas dentro das paredes da nossa casa, a atmosfera estava longe de ser tranquila.
Eu costumava acordar antes de minhas irmãs. Anaya, a mais velha depois de mim, tinha um jeito preguiçoso de lidar com a manhã. Já Ayana, a caçula, sempre precisava ser sacudida para sair da cama. Enquanto vestia minhas roupas simples, ouvia minha mãe, Bianca, já ocupada na cozinha. O cheiro de café fresco misturava-se ao som da panela de ferro chiando sobre o fogão a lenha.
Porém, antes que o aroma do café pudesse nos acolher como um abraço caloroso, outro som invadia a casa. O som do vidro da garrafa de cachaça batendo na mesa de madeira da sala. Meu pai, Gustavo, já começava o dia com um trago, mesmo antes de comer. Aquilo se tornara tão habitual que quase passava despercebido, mas não para minha mãe.
– Gustavo, pelo amor de Deus, tome um café primeiro – a voz dela era uma mistura de súplica e frustração.
– O café não resolve meus problemas, Bianca – ele respondia, a voz arrastada, enquanto servia mais um pouco da bebida na caneca.
Essa era a nossa dinâmica familiar nos últimos tempos. O homem que antes liderava a fazenda com mão firme agora parecia um fantasma do que um dia fora. O alcoolismo o consumia, tirando-lhe o vigor e a vontade de lutar pelos nossos sonhos. Enquanto isso, minha mãe tentava, com todas as forças, manter as aparências e, mais importante, nossa família unida.
Eu e minhas irmãs fazíamos o possível para ajudar, mas éramos apenas adolescentes tentando entender um mundo que se tornava cada vez mais sombrio.
– Suraya, ajude Anaya a acordar – minha mãe ordenava, com uma tentativa de normalidade, mesmo quando sua voz ainda tremia de raiva.
Eu entrava no quarto das minhas irmãs e sacudia Anaya com delicadeza. Ela se virava na cama, tentando prolongar a última porção de sono que lhe restava.
– Vamos, Anaya, já está na hora. Você sabe que mamãe não gosta de atraso – eu insistia, minha voz suave, mas firme.
Finalmente, ela abria os olhos, resmungando algo sobre odiar acordar cedo. Ayana, por sua vez, estava encolhida embaixo das cobertas, fingindo que ainda dormia. Aquele era seu truque para evitar as tarefas matinais.
– Ayana, sei que está acordada. Levanta – eu dizia, puxando as cobertas.
Ela soltava um suspiro profundo e, a contragosto, saía da cama, ainda esfregando os olhos. Em instantes, todas estávamos prontas para o café da manhã, um ritual que, mesmo em meio ao caos, minha mãe fazia questão de manter.
Sentadas à mesa, observávamos papai bebendo em silêncio, os olhos fixos na mesa, enquanto mamãe servia a refeição. Ela tentava conversar, trazer algum tipo de normalidade para aquela manhã, mas a tensão no ar era palpável. A qualquer momento, algo poderia disparar outra discussão.
– Você tem que ir ao campo hoje, Gustavo. Os trabalhadores precisam de orientação – ela dizia, tentando um tom neutro, mas eu podia ouvir o desespero nas entrelinhas.
– Eles sabem o que fazer. Eu não preciso ficar lá o tempo todo – ele respondia, com desdém.
– Não é só sobre estar lá. É sobre mostrar que você ainda se importa – ela retrucava, a voz começando a falhar.
Essa era a faísca que faltava. O olhar do papai endureceu, e ele jogou a caneca sobre a mesa com tanta força que a bebida respingou, manchando a toalha branca que minha mãe sempre mantinha impecável.
– Eu me importo? Não me venha com sermões, mulher! Você acha que não sei o que está acontecendo? Acha que não sinto o peso dessa maldita fazenda sobre mim todos os dias? – ele gritou, a voz rouca e carregada de amargura.
Mamãe tentou manter a compostura, mas as lágrimas começaram a se formar em seus olhos. Eu sabia que ela queria responder, queria gritar de volta, mas em vez disso, ela se calou. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.
Eu olhava para Anaya e Ayana, e via o medo em seus olhos. Aquela não era a primeira vez que presenciávamos uma cena como essa, mas cada vez parecia doer mais. Anaya, sempre a mais prática, pegou sua xícara e a levou para a pia, tentando escapar daquele ambiente tenso. Ayana, no entanto, ficou congelada, sem saber como reagir.
– Por que você tem que fazer isso, papai? – a voz dela saiu quase como um sussurro, mas foi o suficiente para desarmar meu pai.
Papai olhou para a Ayana, e por um breve momento, o homem que ele costumava ser voltou à superfície. Ele respirou fundo, fechou os olhos e abaixou a cabeça, como se a vergonha e o arrependimento estivessem prestes a afogá-lo.
– Me desculpe, Ayana – ele murmurou, sua voz agora mais suave, quase quebrada.
Mas desculpas não apagavam as mágoas, e eu sabia que aquele ciclo de brigas e reconciliações temporárias estava longe de terminar. A casa, que deveria ser um refúgio, parecia cada vez mais um campo de batalha. Eu sentia uma dor profunda ao ver meus pais, que um dia se amaram tanto, agora perdidos em um abismo que parecia intransponível.
Depois do café da manhã, era hora de seguir com as tarefas. Minha mãe e minhas irmãs iam para a escola, e eu ficava na fazenda ajudando com o que podia, não havia dinheiro para manter as três na escola. Mas a imagem da discussão daquela manhã permanecia na minha mente. Era difícil focar no trabalho quando a tensão familiar pesava tanto sobre meus ombros.
O dia passava em um ritmo lento e arrastado, como se o sol estivesse hesitante em atravessar o céu. O trabalho no campo era árduo, mas sempre gostei de estar entre as plantações, sentindo a terra sob meus pés. Era o único momento em que eu podia desligar minha mente das preocupações e simplesmente existir.
Porém, não importava o quanto eu tentasse me concentrar no trabalho, a voz de minha mãe ecoava em minha cabeça, cada palavra carregada de dor e frustração. Eu sabia que ela estava sofrendo, e isso me enchia de uma raiva impotente. Queria ajudá-la, queria encontrar uma solução para todos os nossos problemas, mas eu era apenas uma adolescente em uma fazenda que parecia estar desmoronando a cada dia.
Ao meio-dia, as irmãs voltavam da escola. Seus rostos estavam cansados, não apenas pelo estudo, mas pelo ambiente que as esperava em casa. Eu tentava sorrir, tentava trazer um pouco de alegria para elas, mas era difícil quando eu mesma me sentia tão perdida.
– Como foi a escola? – perguntei, tentando parecer animada.
– Normal – Anaya respondeu, com um desinteresse que já se tornara habitual. – Temos mais deveres para fazer, mas quem se importa?
Ayana, sempre mais sensível, olhou para mim com olhos que pareciam entender mais do que deveriam para sua idade.
– Você acha que papai vai melhorar? – ela perguntou, sua voz cheia de esperança, mas também de medo.
Eu queria dizer que sim, queria poder assegurar que tudo ficaria bem, mas as palavras ficaram presas na minha garganta. Em vez disso, apenas a abracei, segurando-a firme, como se isso pudesse afastar o medo que sentíamos.
Os dias continuaram assim, entre a rotina do campo e as brigas em casa. Eu sabia que, a cada discussão, a distância entre meus pais aumentava, e com ela, nossa chance de ter uma vida normal. A bebida, que meu pai usava como escape, estava nos destruindo pouco a pouco, e minha mãe, por mais forte que fosse, estava começando a ceder sob a pressão.
Ao final do dia, quando as estrelas começavam a aparecer no céu, eu me perguntava o que o futuro nos reservava. Belo Monte, que um dia fora um paraíso de paz e prosperidade, agora parecia um lugar de dor e incerteza. E, no fundo, eu temia que, se continuássemos nesse caminho, logo não restaria nada além de ruínas de uma família que um dia foi feliz.
Enquanto a noite envolvia a fazenda em um manto de escuridão, eu não conseguia afastar o pensamento de que, se algo não mudasse logo, aquela seria a última vez que veríamos as estrelas brilhar sobre Belo Monte com esperança.
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Atualizado até capítulo 47
Comments
S.Kalks
pq autora, pq esses nomes? Elas são gêmeas?
Toda vez acho que estou lendo o mesmo nome
2025-03-29
1
Silvaneide de lima barbosa Silvinha
estou curiosa para saber quem matou o velho
2025-02-22
0
S.Kalks
A pinga ia?
2025-03-29
0