Capítulo 2: A Casa em Desarmonia

As manhãs em Belo Monte sempre começaram cedo. Os primeiros raios de sol mal tocavam o horizonte e já se ouvia o som do galo anunciando um novo dia. Naquele ambiente rural, a vida seguia um ritmo próprio, ditado pela natureza e pela necessidade de cuidar da fazenda. Era uma rotina que, em teoria, deveria trazer paz, mas dentro das paredes da nossa casa, a atmosfera estava longe de ser tranquila.

Eu costumava acordar antes de minhas irmãs. Anaya, a mais velha depois de mim, tinha um jeito preguiçoso de lidar com a manhã. Já Ayana, a caçula, sempre precisava ser sacudida para sair da cama. Enquanto vestia minhas roupas simples, ouvia minha mãe, Bianca, já ocupada na cozinha. O cheiro de café fresco misturava-se ao som da panela de ferro chiando sobre o fogão a lenha.

Porém, antes que o aroma do café pudesse nos acolher como um abraço caloroso, outro som invadia a casa. O som do vidro da garrafa de cachaça batendo na mesa de madeira da sala. Meu pai, Gustavo, já começava o dia com um trago, mesmo antes de comer. Aquilo se tornara tão habitual que quase passava despercebido, mas não para minha mãe.

– Gustavo, pelo amor de Deus, tome um café primeiro – a voz dela era uma mistura de súplica e frustração.

– O café não resolve meus problemas, Bianca – ele respondia, a voz arrastada, enquanto servia mais um pouco da bebida na caneca.

Essa era a nossa dinâmica familiar nos últimos tempos. O homem que antes liderava a fazenda com mão firme agora parecia um fantasma do que um dia fora. O alcoolismo o consumia, tirando-lhe o vigor e a vontade de lutar pelos nossos sonhos. Enquanto isso, minha mãe tentava, com todas as forças, manter as aparências e, mais importante, nossa família unida.

Eu e minhas irmãs fazíamos o possível para ajudar, mas éramos apenas adolescentes tentando entender um mundo que se tornava cada vez mais sombrio.

– Suraya, ajude Anaya a acordar – minha mãe ordenava, com uma tentativa de normalidade, mesmo quando sua voz ainda tremia de raiva.

Eu entrava no quarto das minhas irmãs e sacudia Anaya com delicadeza. Ela se virava na cama, tentando prolongar a última porção de sono que lhe restava.

– Vamos, Anaya, já está na hora. Você sabe que mamãe não gosta de atraso – eu insistia, minha voz suave, mas firme.

Finalmente, ela abria os olhos, resmungando algo sobre odiar acordar cedo. Ayana, por sua vez, estava encolhida embaixo das cobertas, fingindo que ainda dormia. Aquele era seu truque para evitar as tarefas matinais.

– Ayana, sei que está acordada. Levanta – eu dizia, puxando as cobertas.

Ela soltava um suspiro profundo e, a contragosto, saía da cama, ainda esfregando os olhos. Em instantes, todas estávamos prontas para o café da manhã, um ritual que, mesmo em meio ao caos, minha mãe fazia questão de manter.

Sentadas à mesa, observávamos papai bebendo em silêncio, os olhos fixos na mesa, enquanto mamãe servia a refeição. Ela tentava conversar, trazer algum tipo de normalidade para aquela manhã, mas a tensão no ar era palpável. A qualquer momento, algo poderia disparar outra discussão.

– Você tem que ir ao campo hoje, Gustavo. Os trabalhadores precisam de orientação – ela dizia, tentando um tom neutro, mas eu podia ouvir o desespero nas entrelinhas.

– Eles sabem o que fazer. Eu não preciso ficar lá o tempo todo – ele respondia, com desdém.

– Não é só sobre estar lá. É sobre mostrar que você ainda se importa – ela retrucava, a voz começando a falhar.

Essa era a faísca que faltava. O olhar do papai endureceu, e ele jogou a caneca sobre a mesa com tanta força que a bebida respingou, manchando a toalha branca que minha mãe sempre mantinha impecável.

– Eu me importo? Não me venha com sermões, mulher! Você acha que não sei o que está acontecendo? Acha que não sinto o peso dessa maldita fazenda sobre mim todos os dias? – ele gritou, a voz rouca e carregada de amargura.

Mamãe tentou manter a compostura, mas as lágrimas começaram a se formar em seus olhos. Eu sabia que ela queria responder, queria gritar de volta, mas em vez disso, ela se calou. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.

Eu olhava para Anaya e Ayana, e via o medo em seus olhos. Aquela não era a primeira vez que presenciávamos uma cena como essa, mas cada vez parecia doer mais. Anaya, sempre a mais prática, pegou sua xícara e a levou para a pia, tentando escapar daquele ambiente tenso. Ayana, no entanto, ficou congelada, sem saber como reagir.

– Por que você tem que fazer isso, papai? – a voz dela saiu quase como um sussurro, mas foi o suficiente para desarmar meu pai.

Papai olhou para a Ayana, e por um breve momento, o homem que ele costumava ser voltou à superfície. Ele respirou fundo, fechou os olhos e abaixou a cabeça, como se a vergonha e o arrependimento estivessem prestes a afogá-lo.

– Me desculpe, Ayana – ele murmurou, sua voz agora mais suave, quase quebrada.

Mas desculpas não apagavam as mágoas, e eu sabia que aquele ciclo de brigas e reconciliações temporárias estava longe de terminar. A casa, que deveria ser um refúgio, parecia cada vez mais um campo de batalha. Eu sentia uma dor profunda ao ver meus pais, que um dia se amaram tanto, agora perdidos em um abismo que parecia intransponível.

Depois do café da manhã, era hora de seguir com as tarefas. Minha mãe e minhas irmãs iam para a escola, e eu ficava na fazenda ajudando com o que podia, não havia dinheiro para manter as três na escola. Mas a imagem da discussão daquela manhã permanecia na minha mente. Era difícil focar no trabalho quando a tensão familiar pesava tanto sobre meus ombros.

O dia passava em um ritmo lento e arrastado, como se o sol estivesse hesitante em atravessar o céu. O trabalho no campo era árduo, mas sempre gostei de estar entre as plantações, sentindo a terra sob meus pés. Era o único momento em que eu podia desligar minha mente das preocupações e simplesmente existir.

Porém, não importava o quanto eu tentasse me concentrar no trabalho, a voz de minha mãe ecoava em minha cabeça, cada palavra carregada de dor e frustração. Eu sabia que ela estava sofrendo, e isso me enchia de uma raiva impotente. Queria ajudá-la, queria encontrar uma solução para todos os nossos problemas, mas eu era apenas uma adolescente em uma fazenda que parecia estar desmoronando a cada dia.

Ao meio-dia, as irmãs voltavam da escola. Seus rostos estavam cansados, não apenas pelo estudo, mas pelo ambiente que as esperava em casa. Eu tentava sorrir, tentava trazer um pouco de alegria para elas, mas era difícil quando eu mesma me sentia tão perdida.

– Como foi a escola? – perguntei, tentando parecer animada.

– Normal – Anaya respondeu, com um desinteresse que já se tornara habitual. – Temos mais deveres para fazer, mas quem se importa?

Ayana, sempre mais sensível, olhou para mim com olhos que pareciam entender mais do que deveriam para sua idade.

– Você acha que papai vai melhorar? – ela perguntou, sua voz cheia de esperança, mas também de medo.

Eu queria dizer que sim, queria poder assegurar que tudo ficaria bem, mas as palavras ficaram presas na minha garganta. Em vez disso, apenas a abracei, segurando-a firme, como se isso pudesse afastar o medo que sentíamos.

Os dias continuaram assim, entre a rotina do campo e as brigas em casa. Eu sabia que, a cada discussão, a distância entre meus pais aumentava, e com ela, nossa chance de ter uma vida normal. A bebida, que meu pai usava como escape, estava nos destruindo pouco a pouco, e minha mãe, por mais forte que fosse, estava começando a ceder sob a pressão.

Ao final do dia, quando as estrelas começavam a aparecer no céu, eu me perguntava o que o futuro nos reservava. Belo Monte, que um dia fora um paraíso de paz e prosperidade, agora parecia um lugar de dor e incerteza. E, no fundo, eu temia que, se continuássemos nesse caminho, logo não restaria nada além de ruínas de uma família que um dia foi feliz.

Enquanto a noite envolvia a fazenda em um manto de escuridão, eu não conseguia afastar o pensamento de que, se algo não mudasse logo, aquela seria a última vez que veríamos as estrelas brilhar sobre Belo Monte com esperança.

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Comments

S.Kalks

S.Kalks

pq autora, pq esses nomes? Elas são gêmeas?
Toda vez acho que estou lendo o mesmo nome

2025-03-29

1

Silvaneide de lima barbosa Silvinha

Silvaneide de lima barbosa Silvinha

estou curiosa para saber quem matou o velho

2025-02-22

0

S.Kalks

S.Kalks

A pinga ia?

2025-03-29

0

Ver todos
Capítulos
1 Prólogo
2 Capítulo 1: Vida em Belo Monte
3 Capítulo 2: A Casa em Desarmonia
4 Capítulo 3: Laços de Sangue e Coração
5 Capítulo 4: O Peso da Dívida
6 Capítulo 5: Segredos à Luz do Entardecer
7 Capítulo 6: Sombras Sobre a Mesa
8 Capítulo 7: O Declínio Silencioso
9 Capítulo 8: O Clímax do Conflito
10 Capítulo 9: Sonhos em Meio ao Café Amargo
11 Capítulo 10: A Chegada do Senhor Fonseca Abreu
12 Capítulo 11: O Encontro que Mudou Tudo
13 Capítulo 12: O Erro Fatal - A Aposta Maldita
14 Capítulo 13: O Acordo Sombrio - Porquê eu?
15 Capítulo 14: O Peso da Escolha
16 Capítulo 15: A Última Carta
17 Capítulo 16: O Desespero da Impossibilidade
18 Capítulo 17: Preparativos para o Casamento
19 Capítulo 18: O Casamento
20 Capítulo 19: A Viagem para a Cidade Grande
21 Capítulo 20: Chegada à Cidade Grande
22 Capítulo 21: A Vida Luxuosa e Sufocante na Mansão de Fonseca
23 Capítulo 22: A Dama da Mansão
24 Capítulo 23: O Jantar dos Poderosos
25 Capítulo 24: No Silêncio da Mansão
26 Capítulo 25: O Despertar de um Monstro
27 Capítulo 26: A Revelação do Cativeiro
28 Capítulo 27: A Sombra da Liberdade
29 Capítulo 28: A Virada de uma Vida
30 Capítulo 29: No Limiar de Sentimentos
31 Capítulo 30: Sob o Véu do Desconhecido
32 Capítulo 31: Adeus, Dubai; Olá, Lagoas
33 Capítulo 32: A Casa Nova, O Novo Eu
34 Capítulo 33: As Correntes Invisíveis
35 Capítulo 34: Um Novo Horizonte
36 Capítulo 35: Sob o Peso da Ira e do Desejo
37 Capítulo 36: Um Conto de Fadas na Realidade
38 Capítulo 37: Duas Vidas, Um Amor: Entre a Realidade e o Disfarce
39 Capítulo 38: Entre Dois Mundos: O Agito do Campus e a Realidade do Poder
40 Capítulo 39: Suspiros à Meia-Luz
41 Capítulo 40: O Veneno do Silêncio
42 Capítulo 41: Desespero e Solidão
43 Capítulo 42: O Funeral da Esperança
44 Capítulo 43: Quando Tudo Estava Contra Mim?
45 Capítulo 44: Os Muros da Injustiça
46 Capítulo 45: O Veredito Final
47 Série Sombras de Um Amor Fatal
Capítulos

Atualizado até capítulo 47

1
Prólogo
2
Capítulo 1: Vida em Belo Monte
3
Capítulo 2: A Casa em Desarmonia
4
Capítulo 3: Laços de Sangue e Coração
5
Capítulo 4: O Peso da Dívida
6
Capítulo 5: Segredos à Luz do Entardecer
7
Capítulo 6: Sombras Sobre a Mesa
8
Capítulo 7: O Declínio Silencioso
9
Capítulo 8: O Clímax do Conflito
10
Capítulo 9: Sonhos em Meio ao Café Amargo
11
Capítulo 10: A Chegada do Senhor Fonseca Abreu
12
Capítulo 11: O Encontro que Mudou Tudo
13
Capítulo 12: O Erro Fatal - A Aposta Maldita
14
Capítulo 13: O Acordo Sombrio - Porquê eu?
15
Capítulo 14: O Peso da Escolha
16
Capítulo 15: A Última Carta
17
Capítulo 16: O Desespero da Impossibilidade
18
Capítulo 17: Preparativos para o Casamento
19
Capítulo 18: O Casamento
20
Capítulo 19: A Viagem para a Cidade Grande
21
Capítulo 20: Chegada à Cidade Grande
22
Capítulo 21: A Vida Luxuosa e Sufocante na Mansão de Fonseca
23
Capítulo 22: A Dama da Mansão
24
Capítulo 23: O Jantar dos Poderosos
25
Capítulo 24: No Silêncio da Mansão
26
Capítulo 25: O Despertar de um Monstro
27
Capítulo 26: A Revelação do Cativeiro
28
Capítulo 27: A Sombra da Liberdade
29
Capítulo 28: A Virada de uma Vida
30
Capítulo 29: No Limiar de Sentimentos
31
Capítulo 30: Sob o Véu do Desconhecido
32
Capítulo 31: Adeus, Dubai; Olá, Lagoas
33
Capítulo 32: A Casa Nova, O Novo Eu
34
Capítulo 33: As Correntes Invisíveis
35
Capítulo 34: Um Novo Horizonte
36
Capítulo 35: Sob o Peso da Ira e do Desejo
37
Capítulo 36: Um Conto de Fadas na Realidade
38
Capítulo 37: Duas Vidas, Um Amor: Entre a Realidade e o Disfarce
39
Capítulo 38: Entre Dois Mundos: O Agito do Campus e a Realidade do Poder
40
Capítulo 39: Suspiros à Meia-Luz
41
Capítulo 40: O Veneno do Silêncio
42
Capítulo 41: Desespero e Solidão
43
Capítulo 42: O Funeral da Esperança
44
Capítulo 43: Quando Tudo Estava Contra Mim?
45
Capítulo 44: Os Muros da Injustiça
46
Capítulo 45: O Veredito Final
47
Série Sombras de Um Amor Fatal

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