—Sabia! —Retiro do congelador o recipiente que minha tia usou para colocar o mousse de maracujá. —Sobrou muito mais do que pensei.
Gabriel está sentado no sofá, escolhendo algum filme para vermos. Ele disse que ficará até que minha tia volte e eu, obviamente, comprei a ideia, muito feliz por sinal.
Agora que João não estará mais aqui, passarei metade do tempo sozinha em casa e depois do que aconteceu, uma companhia vai me fazer bem.
—Tem o Auto da Compadecida!— Aumenta a voz da sala. —Mó tempão que eu não assisto esse bagulho.
Pego duas colheres e coloco dentro do pote de plástico onde está o mousse. Iremos comer direto dele, caso contrário restará mais louça para lavar.
—Caramba! Eu já tinha esquecido dessa relíquia.
Sorrio enquanto me sento no sofá junto com ele. Ainda estou com o mesmo vestido, apenas tirei o tênis e prendi o cabelo. Tecido de algodão contribui para que eu fique confortável.
Coloco o mousse em cima do meu colo e entrego a colher para ele, que em seguida prova a sobremesa.
—Hum, bagulho tá mó bom hein.
Ele me olha e sorri.
Eu não sei o motivo, mas acabo sorrindo também.
—Tá sorrindo porque? Tá ruim?
Pergunto entre risos.
—Não, né isso não. —Ele para de falar para levar outra colher à boca, ainda me olhando de um jeito estranho e sorrindo. Mesmo com as luzes apagadas e apenas a TV clareando o ambiente, é perceptível o brilho da felicidade em Gabriel. —Bora deixar de papo e cuidar com o filme.
Dou de ombros e o som da televisão soa pela sala.
...----------------...
Eram quase duas da madrugada quando Gabriel saiu pela porta. Mesmo eu insistindo pra que ficasse e dormisse, pois poderia ser perigoso uma hora daquelas na favela. Até eu lembrar que ele é, tecnicamente, o perigo.
Depois de darmos altas gargalhadas com o clássico nacional, assistimos Lisbela e o prisioneiro. Que nos tirou mais risadas ainda. Minha tia chegou na metade do segundo, mas recusou a oferta de se juntar a nós e comer pipoca que o próprio Gabriel havia preparado.
Estou com a sensação insistente de que ela está escondendo algo. Ao mesmo tempo que acredito que seja o trabalho dela, do qual nem ao menos sei do que se trata, o motivo de não estar tão disposta esses dias.
É meio dia e ela acabou de sair, dessa vez não disse para onde iria e não fiz questão de perguntar. Pela manhã, voltou bem cedo, mas nisso, eu tenho uma certa parcela de culpa.
Eu não sei cozinhar.
Então ela volta do trabalho para fazer a comida, sempre que pode. Perguntei se ela poderia me ensinar algum dia, após contar minha infeliz história com a gastronomia e ela disse apenas um; "Qualquer dia desses aí, nois vê"
Meu pai odiava que eu chegasse perto da cozinha.
No sentido mais literal possível.
Parece que ele era alérgico em me ver junto às cozinheiras no cômodo. Ele ameaçou despedir qualquer um que permitisse a filha dele ajudar em serviços diários.
E para não correr o risco de desobedecê-lo, ele fez questão de lotar os meus dias com malditas atividades extracurriculares. Aulas de italiano, francês, além de academia e esportes como um tipo de atividade física.
Ele me mantinha longe da casa que deveria ser nosso lar.
Eu não morava em minha casa, eu a visitava.
Pauso o tutorial da lasanha no YouTube e movo os dedos pelo celular até o aplicativo de conversa. Mandei há alguns segundos para Bia, uma mensagem perguntando se estava bem.
O celular vibrar e na barra de notificação vejo seu contato.
"Tô bm ss muler."
"Tem tempo q eu já tava doida pra dar uma surra nqla ridícula."
Franzo as minhas sobrancelhas para a tela do celular.
O que diabos é "nqla"? As outras abreviações são menos difíceis de entender, mas essa é impossível. Suponho que a forma como eles abreviam as palavras aqui no Brasil, é diferente de como é no país onde eu estava.
Pancadas estridentes no portão me fazem pular do sofá.
O som continua e parece que estão querendo arrombar a casa de minha tia. Levanto de onde estou e começo a caminhar em direção a porta.
Quem será?
Minha tia não pode ser, pois ela tem chave.
Bia? Acabei de falar com ela, teria me avisado se viesse.
Aproximo as mãos do portão e como não tem aquele apetrecho que permite olhar quem está do lado de fora, procuro por alguma brecha.
As batidas voltam a soar novamente.
—Abre que eu tô ligado que tu tá aí vagabunda! Ou tu abre essa porra, ou eu arrombo na bala.
Eu fico imóvel.
Eu conheço essa voz.
O que ele quer aqui?
Medo percorre por toda a minha pele, eriçando meus pelos, tencionando os meus músculos e gelando todo o meu corpo. As pancadas voltam com tudo e sinto o portão tremer.
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Atualizado até capítulo 94
Comments
Nicce Vieira
e ele aí meu pai
2024-08-09
1
Pamfagundesss
agora que percebi a abreviação KKKKKKKK
2024-07-15
3
Edilaine Leticia
estou gostando
2024-05-18
2