Capítulo 3| Tá Perdida?

Depois de conhecer a casa me acomodei no quarto que será apenas meu pelo tempo que irei ficar aqui.

Faz parte do segundo andar, onde está dividido por dois quartos e um pequeno espaço para separá-los um do outro, que mais parece uma sala, mas não tem nenhum objeto ocupando o local, esse pequeno cômodo tem uma porta de madeira que se abre para a varanda.

Coloco minhas malas em cima da cama pra que eu tenha melhor noção do que irei pegar, o relógio de ponteiro na parede indica que são exatamente doze e quarenta e cinco, horário do almoço. Minha tia está no andar de baixo preparando a comida, que depois de muita relutância conseguiu me convencer que daria conta.

Abro a mala completamente, as roupas estão muito bem organizadas que tenho pena de bagunçar procurando alguma peça, mas o faço mesmo assim, pois não tenho quem faça por mim, pelo menos não aqui no Brasil.

Procuro por um short e uma blusa revirando toda a mala até encontrar um que me agrade, terei que arrumar ela de qualquer forma no pequeno guarda roupa que minha tia disponibilizou.

Além dele e a cama grande, há um ventilador com suporte, uma penteadeira rosa pequena que contém um espelho, e que aparenta ser nova, aliás, todos os móveis do meu quarto acredito que sejam novos.

—Óh, a comida tá pronta já em! Bora comer antes de ficar fria.

Ela aparece na porta e por breves segundos meus pelos se arrepiam.

—Nossa tia, que susto, Meu Deus.

Vejo ela encostada na porta, sorrindo, percebendo o que fez.

—Ih... Nem ouviu bala voando e já tá assustada garota?

—Bala? Como assim bala?

Ela entra no quarto e se senta na cama me olhando entortando os lábios.

—Quase todo dia.

—Quase todo dia?

—É.

—E você mora aqui?

—Unhum.

Ela fala com maior serenidade enquanto dobra duas das minhas roupas.

—Tia, como assim? Eu achei que... que a senhora havia saído desse lugar por esse motivo.

—Lili meu anjo, isso é passado, eu tô sem grana, já falei isso, e tu disse que entendia.

—E os móveis. Foi você quem comprou todos eles? Mesmo estando sem dinheiro?

Pergunto, mas me arrependo na mesma hora quando vejo seu semblante desconfiado.

—Uns bicos que fiz e consegui a grana. Qual foi em Lilli? Tá me estranhando? Eu não roubei tá, pelo contrário foi suado esse dinheiro hein.

—O quê? Não, tia! Não estava pensando nisso, só achei estranho. Não foi minha intenção ofender.

Nunca havia passado pela minha cabeça ter tal pensamentoem relação a ela, mas não deixa de ser anormal alguém com dificuldades financeiras conseguir comprar uma casa, e móveis novos.

Isso não é da minha conta, não vou passar muito tempo aqui de qualquer forma.

—Hum sei sei.

—Me ajuda a guardar essa roupa?

Peço e a vejo levanta colocando o conjunto no guarda-roupa.

Depois de um tempo, conseguimos terminar de dobrar tudo, descemos para almoçar e ela tenta me convencer a ir ao "pagode do Zé" mas vou fazer o possível pra continuar enfurnada dentro desta casa. E se for para sair, escolherei uma hora da qual não tenha uma alma viva na rua.

Por mais que eu esteja com uma saudade imensa do seu Zé, prefiro escolher ficar segura.

—Hum, a Vete disse que se tu quiser ela passa a noite contigo aqui.

Minha tia leva a colher de arroz até a boca depois de falar.

—Quem é "Vete"?

—Colega minha, ela não vai pro pagode também, aí eu disse pra ela que...

Mas antes que ela termine de falar eu a interrompo.

—A senhora contou pra alguém que eu voltei para o Brasil?

—Contei ué, quê que tem?

Como assim ela contou? Deus, se isso se espalhar

–e vai, pois estamos falando de uma FAVELA– será minha ruína. Não quero que ninguém saiba que estou aqui, não quero que Eles saibam.

—Por favor, me fale que foi apenas para ela que a senhora contou sobre mim.

—A Dona Meire já sabe, tem o Chico, o...

—Tem mais?! Tia!

Olho para ela sem acreditar, pensei que o combinado entre ela e meu pai fosse me deixar excluída da sociedade por esses dias, meu pai não iria querer que eu ficasse em apuros com o pessoal desse lugar, não é?

Ouvimos batidas na porta e acredito que assim como eu, ela também não esperava por visitas, isso está bem nítido em seu rosto.

                                      °°°

—Gente mais cresceu muito. Te peguei no colo não lembra de mim não?

Antes que eu responda ela continua

—E teu pai como tá?

A mulher a minha frente faz a décima quarta pergunta sobre algo relacionado a mim.

—Está vivo, digo... Bem, ele está bem. —Aceno forçadamente.

—Eu lembro que tu era mais queimadinha de sol, agora tá tão branquinha... Teu pai te adoeceu lindinha?

—Ham... —Isso foi o sorriso mais sem graça que já dei. — Cuido da minha pele há anos, sem contar a boa uma alimentação, isso influenciou bastante. Fique tranquila, meu pai não tem nada haver com isso.

Só uma pequena parcela.

Realmente sempre tive o tom de pele parecido com o do meu pai, clara. Mas quando criança passei grande parte aqui na favela visitando e brincando, óbvio que a tendência era me amarelar e avermelhar a minha tonalidade.

Mas ele fez questão de cuidar da minha pele ou melhor, pagar para cuidarem, logo quando chegamos nos Estados Unidos, afirmando que não queria que eu parecesse filha de qualquer um.

No entanto, eu tive conhecimento –anos depois– que essas, foram ações racistas da parte dele. Ele odiava e odeia, a rocinha.

—Já já, tu tá amarelinha de sol de novo.

Ivete, era uma das várias pessoas que minha tia contou sobre meu paradeiro. A mulher sentada á mesa, tem cabelos negros, curtos e cacheados e  quase a mesma idade que minha tia, no entanto a sua pele aparenta ser bem mais bronzeada.

—Vocês são tudinho da mesma raça, se mandaram do Brasil e nem pra mandar recado de lá.

Ela se levanta e vai em direção a pia de louças lavar seu copo sujo de suco. Titia ainda termina sua refeição, pela terceira vez.

—Ah... Eu acabei perdendo completamente o contato com vocês. —Afirmo em meio a um sorriso fraco e sem noção nenhuma de como continuar a conversa.

É a única coisa que sei fazer quando entro em uma conversa com alguém. Sorrir, ou então pedir desculpas.

—Tu faz faculdade linda?

—Vou iniciar na verdade, acho que em março.—Minto, nem eu mesma sei quando essa loucura de viagem vai acabar. Os meus planos são de voltar em fevereiro. Estamos em dezembro e pensar nisso me faz estremecer.

—E vai fazer o que?

—Vou estudar Fotografia. —Declaro lhe mostrando o melhor sorriso. É a primeira vez que afirmo isso em voz alta para alguém, já que a grande parte tem preconceito com cursos que não envolvem o trabalho de escritório ou hospitalar.

—É bom mermo minha filha, ter teu dinheiro, sem depender de homem nenhum. — Aconcelha firme, como se tivesse orgulho de pronunciar as palavras.

—É, é sim. E a senhora? Tem filhos?—Por educação decido continuar o diálogo, afinal eu sou visita aqui.

—Que nada, e Deus me livre de ter. —Gargalha fraco

—Ah, entendo. —Olho para para titia —Vocês se conhecem a quanto tempo?

—Desde que essa doida da tua tia resolveu derramar suco de abacate na minha cabeça quanda gente tava no ensino médio—Fala como se as lembranças estivessem voltando

—E você ajudou ela a tirar o abacate pelo menos? —Pergunto em tom cômico me referindo a minha tia. Mas ambas se olham e riem.

—Ajudô, mas não foi com água não.

—Tiveram um trabalho danado pra desengatar nois, ainda lembro do tanto de cabelo teu que veio na mão.

Ambas sorriem e eu acompanho.

O armazenamento de perguntas acabaram, fico á espera da Tia Dete continuar a conversa para que eu possa ficar em silêncio apenas observando de fora.

—Tava dizendo pra ela Dete, que, se ela, —Ela faz uma pausa para mastigar a comida— se ela quiser, tu fica hoje aqui com ela, na hora do pagode.

—Ih mana não vai rolar, tô indo lá pra barra com a Eusirete, só venho amanhã.

—Não tem problema nenhum eu ficar aqui tia,—Interfiro pra que ela não pense que estou aqui para atrapalhar— a senhora pode ir sem preocupação, não irei sair de qualquer forma.

—Aí ó, a menina consegue ser mais responsável que tu —Ivete gargalha quando minha tia deposita o prato na pia, nem um pouco feliz com a piada.

—Lava aí que tu comeu de graça.

—Não venho mais aqui.

                                    °°°

—Lili se acontecer qualquer coisinha me liga tá bom?

Gesticulo um sim com a cabeça e me despeço trancando a porta em seguida.

—Enfim sozinha. —Bufo olhando para o interior da casa.

Sozinha e sem nada pra fazer.

Subo para o quarto que estou ocupando temporariamente e sinto o celular em meu bolso vibrar. Patrick "Oi doce, como está?" Gargalho ao ver as palavras em português em minha tela, então resolvo ligar para ele.

—Porquê você está falando português? —Pergunto em inglês.

—Estou ajudando você a se a adptar, o que achou? —Diz do outro lado da linha. Gargalho mais ainda da sua intenção, conversamos um pouco até que ele desliga pois precisa entregar os trabalhos da matéria em que ficou de pendência

Assim que abro a câmera para mandar a foto do meu quarto o celular desliga.

Eu não coloquei pra carregar.

—Não, não... mais que merda.

Ando até a penteadeira e o coloco para carregar. Que ótimo, agora mesmo que não há nada para fazer.

E nem colocaram um livrinho se quer na mala, os meus bebês vão ficar desprotegidos sem mim, abandonados na estante.

Me jogo na cama olhando para o teto e tento lembrar o porquê me rendi tão fácil aos comandos do meu pai.

Hoje eu estaria indo para o meu quinti mês nas aulas de box, pela primeira vez na vida eu comecei a sentir interesse por algum esporte que meu pai me obrigou a fazer, além das aulas de tiro ao alvo e defesa pessoal, no entanto, atualmente pratico apenas box e as aulas de tiro. O que me lembra de avisar ao meu treinador que infelizmente vou faltar alguns dias. Sem contar a maldita academia, paguei a mensalidade semana passada e nem irei o resto do mês.

                                     °°°

São nove da noite em ponto, e acho que estou em abstinência. O celular ainda não está nem em 40%. A televisão não tem uma plataforma de streaming, já andei por todos os cômodos da casa e não achei nada que prendesse minha atenção.

O que leva á pensar que talvez eu esteja perdendo uma incrível live de algum membro do Bangtan, se for alguma do Jin eu choro até amanhã em posição fetal. Ouço meu estômago roncar.

—Ok, Lina, acho que está na hora de comer alguma coisinha gostosa.

Me levanto do sofá e vou até a cozinha, olho em todos os armários mas não acho, vou até o fogão, mas a janta é a mesma que o almoço. Frango cozido.

Abro a geladeira a procura de algum tipo de carne, mas não encontro. Ela não havia dito  que fez a compra do mês ou eu imaginei?

Que vontade de uma marmitinha com churrasquinho meu Deus.

Mas não posso ir lá fora. Resista Lina!

Olho para a porta com a feição de dor, sabendo que provavelmente vai dar uma merda muito gigantesca. Não, há riscos demais. Definitivamente eu não irei.

                                   °°°

O barulho da porta se fechando faz meu coração doer, mas a minha barriga está doendo mais.

Ando seguindo a subida um pouco íngreme, onde minha tia disse que havia comércios. A rua não tem ninguém, mas creio que mais para cima, adentrando o morro, haja pessoas na rua.

Eu paro quando penso nessa possibilidade.

—Pensa na carne picada e quentinha Lina. —Balbucio para mim mesma no meio da rua e continuou caminhando com passos lentos.

Antes de sair troquei minha roupa, substitui o chort moletom por um jeans claro apertado, uma meia blusa branca com o símbolo do homem aranha em vermelho, de mangas curtas.

Nos pés descobri que não havia trazido uma havaiana, então apelei para minha papete com tiras fina em branco.

Isso é básico certo? Tratei de escolher algo que não chame atenção, já que a popularização do mercado chinês barato tem feito com que peças nesse estilo tenha se tornado algo normal.

Aqui na favela não pode ser diferente não é?

A medida em que caminho rumo morro acima, começo a ver cabeças, as pessoas estão espalhadas pela calçada. Muitas cabeças.

Olho para os lados e percebo que a rua tem mais duas entradas. No total são três caminhos, o que eu estou segue reto, um que vai para direita e outro para a esquerda.

Escolho o da direita pois tem menos movimento e acho que o bar da Dona Maria fica por aqui. Não tenho certeza, mas é isso ou passar por uma rua lotada de homo sapiens bêbados e ainda virar assunto de fofoca.

Ando rumo ao pequeno beco que no começo é largo e conforme vou andando se torna perqueno.

E para melhorar, como sempre a vida me mostrando o quão sortuda sou, a lâmpada do poste está fraca, tenho que fazer esforço para não cair dentro de um buraco.

Acho que cantar ajuda nessas horas.

—Um elefante incomoda muita gente... Dois elefantes incomodam, incomodam muito mais! Três elefantes...

—Tu tem três dias filho da puta, três dias pra botar grana na minha mão caralho!

Eu paro, os gritos são em algum beco perto da rua em que estou.

Escuto alguém chorar.

Uma criança, é o choro de um garotinho.

A criança fala algo em cima do choro, soluçando, mas não entendo nada.

—Mete o pé caralho, anda! E fala pra aquela puta da tua mãe que eu vou meter bala nela porra!

Ouço alguém correr e suponho que seja o menino.

Como eles tem a coragem de ameaçar uma criança? Se bem que minha tia havia me avisado sobre como as coisas tem estado por aqui, a situação está intercalada entre boa e ruim.

Boa pois não houveram mais invasões policiais e nem de outras "facções" de fora, ou seja, trocas de tiros não acontecem vinte e quatro horas por dia.

E ruim por conta do uso de drogas que não é novidade nenhuma, mas no decorrer dos anos tem afetado grande parte dos moradores, incluindo menores de idade, além de tirar vidas inocentes, seja por overdose ou dívidas.

—Iiiih Montanha, tem carne nova na área porra —Meu coração dispara, isso que dá tentar dar uma de intrometida. Ouço passos atrás de mim— Fiu fiu gatinha

—Tá perdida braquinha?—Risadas e os vejo em meu campo de visão, um é esguio o outro é maior, alto e forte, ambos carregam armas de porte pequeno.

BURRA! BURRA! BURRA!

—Eu... eu não estou não, —Fingo sorrir —Obrigada por perguntar.

Dou um passo á frente, querendo sair o mais rápido desse buraco em que eu me meti. No entanto uma mão enorme me impede apertando meu ombro.

—Tá com pressa em novinha? —O magrelo instiga—Dá onde tu veio e como tu passo pra cá pra dentro?

"Eles controlam quem entra e quem sai" Recordo as palavras da minha tia.

— Vim apenas passar as férias com minha tia, não estou á procura de confusão...—A súplica em meu tom de voz é perceptível com as palavras saindo arrastadas.

Eles me encaram desconfiados, o magrelo de camisa vermelha vem até mim e puxa uma mecha do meu cabelo. Consigo escutar meu coração bater, e sinto calafrios alterando minha respiração.

—Aqui não é parque de diversão boneca, quem te botou aqui —Um pausa, ele ri com escárnio — Te mandô direto pro inferno.

Vejo ele se afastar. É o espaço para eu sair e não penso duas vezes em fazê-lo. Ando apressadamente e nem sequer olho para trás, apenas continuo caminhando.

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