Capítulo 6| Samuel

Pego o celular que estava carregando todo esse tempo e abro o chat de mensagens.

Dez mensagens de Patrick

Três da Senhora Abigail

Uma de meu pai

Ignoro as outras mensagens e abro apenas a do meu pai. E como eu já esperava, nada de português, aparentemente ele tem uma repulsa pela língua brasileira, a qual pertence a minha mãe quando viva. Meu pai não é brasileiro, é de origem italiana mas não fala seu idioma constantemente.

A mensagem informa que ele já depositou o dinheiro, no entanto quer que eu vá pessoalmente retirá-lo, acho que ele não confia tanto assim em minha tia.

Não posso negar que fiquei, de certa forma, decepcionada, pois o meu próprio pai não perguntou como estou, ou se cheguei bem, coisas desse tipo, coisas que pais de verdade se importariam em saber sobre seus filhos. Mas pelo menos ele fez o depósito, vou pegar uma quantia e comprar roupas para João.

Confirmo que li sua mensagem, em seguida leio as de Patrick.

"Cadê você!?"

"Raptaram você?"

"Digite P se estiver em perigo"

"Linaaaaa"

"Eu estou com abstinência de você"

Sorrio com o desespero. Mas é claro desaparareci do nada. Continuamos conversando e ele me conta como vão as coisas onde está, ele e Eddie tem se aproximado bastante, o que me deixa entrigada já que nunca imaginei os dois proximos. Mas Patrick estava com receio por Eddie ser o meu "ex" e fiz questão de dizer nunca o considerei como namorado, o máximo que rolou foi um beijo.

Deixo o celular de lado correndo para um banho, ao sair faço minha rotina de cuidados com a minha pele, como sempre por último o protetor solar.

Visto um chort branco de alfaiataria, simplesmente magnífico a forma como ele modela minha cintura e quadril, o comprimento um pouco mais ousado que o normal, mas nem tanto, já que o calor não permite algo de maior comprimento.

Busco por uma blusa pequena lilás de crochê, não exatamente uma blusa, pois ela um pouco mais curta, deixando quatro dedos da pele da minha barriga de fora, Patrick me presenteou com ela assim que aprendeu a fazer crochê com a sua vó.

Ponho um colar de prata, com um pingente de um pequeno coração onde contém uma foto antiga da minha mãe ao meu lado, o pingente é delicado e fino. Coloco brincos de prata pó fiar sem qualquer coisa em minha orelha a faz entupir e dói para recuperar o furo.

–Eles não irão me assaltar certo? Qualquer um pensaria que isso é falso

Digo em frente ao espelho. Finalizo colocando desodorante, hidratante corporal e penteando meu cabelo. Pego minha pequena câmera fotográfica e penduro em meu pescoço.

Desço as escadas sorrindo pois vou poder fazer compras com uma criança, sempre quis fazer isso desde o dia em que fui ao shopping com Patrick e seu irmão caçula, se eu pudesse ter a aportunidade de ter um ou uma, meus dias na no exterior não teriam sido solitários.

Ao chegar no andar térreo percebo que João não está na sala, ouço barulhos de conversa vindo da cozinha.

—E teus irmão garoto? Tu tinha dois -Minha tia pergunta

—Era só um tia. Foi bala perdida dos cara de farda -A voz carioca rouca do menino sai baixa

Apareço para eles e ambos seguram uma xícara de café com uma mão e na outra um pão.

—Tava era morando no banheiro Lili? Por isso que tá transparente que nem água -Bernadete indaga em tom cômico

—Estava respondendo algumas mensagens e nem vi o tempo passar -Me sento á mesa e coloco o minha habitual refeição matinal.

—Teu bucho segura isso tia?

Me espanto ao perceber que ele está voluntariamente falando comigo e lhe mostro um sorriso

—Segura. Segura até as dez horas, o horário da outra refeição.

—Saquei, tu come poco mas é toda hora, por isso é bonita assim.

Gargalho

—É, exatamente João.

—E vem cá come come da estrela, pra onde tu tá indo arrumada assim ? -Indaga minha tia

—Eu irei comprar umas roupas para o João e retirar o dinheiro do banco. Aliás, -faço uma pausa pois bebo um pouco do suco - preciso que a senhora vá com a gente tia, até por questões "democráticas" dessa prisão.

—Prisão pra tu que quer ficar dentro, porque pra mim não é.

Levo o pedaço á boca e bebo suco em seguida.

—É melhor não arriscar -lembro do que houve noite passada —E eu preciso que você seja nossa guia hoje. —Olho para João sorrindo.

—Ô tia pode repitir aí? O bagulho tá bom

Eu acabo sorrindo inocentemente da criança estendendo a xícara de café.

[...]

Saímos de casa às nove em ponto, tivemos que tomar algumas precauções antes, uma delas foi tentar passar o mais despercebidos o possível. No início achei que não iria funcionar, mas um guarda-chuva resolve muitas coisas, inclusive esconder rostos.

O João ficou relutante no começo, pois estava apenas com minha camisa, obviamente passamos em uma das barracas em perto da favela e compramos um conjunto de camisa e bermuda, logo após saímos.

No início o plano era Shopping e Banco, mas acabei convencendo minha tia a passar em alguns pontos turísticos conosco, não podia perder a chance de fotografar os detalhes do Rio.

No meio de nosso passeio vi o João sorrir pela primeira vez quando tirei uma foto com ele em uma cabine de fotos do Shopping, ele me contou que sua casa não havia retratos seus, mas que agora teria. Acompanhei ele em várias lojas, ele nunca pedia, apenas ficava a espera da minha palavra, compramos além de roupa, calçados, e uma mine câmera fotográfica para ele usar.

Foi a tarde mais divertida que tive desde que cheguei, e é reconfortante saber que capturei cada momento. Uma das mágicas que a fotografia pode fazer.

O relógio marca quinze e trinta e estou sentada em uma cabaninha de praia com minha tia, enquanto vemos João brincar com outras crianças de vôlei. Fizemos uma compra completa do mês e pedimos pra que um dos entregadores do mercado deixassem em casa.

—Tá na hora de ir Lili, diz pra ele vim.

Aceno com a mão para o garoto que vem correndo ao me encontro, aviso que já estamos saindo e ele se despede de seus amigos.

A minha tia disse que era melhor voltarmos de ônibus, assim eu aprendia como chegar até ela sem ficar perdida, mas achei sem importância pois é apenas pegar um táxi.

Ao chegarmos perto da entrada avisto vários homens armados, não embaixo, mas em cima das casas. Me ferrei.

—E agora tia? Não tem como usarmos o guarda-chuva.

—Não afudega garota, é só não ficar marcando eles que da pra passar direitinho.

Fico um tempo pensando o que poderia significar a palavra "afudega" ou qual o sinônimo dela, mas não faço a mínima ideia. Então apenas ignoro.

Começamos a caminhar, ao chegar no portão, não faço questão de olhar para ninguém, mas sou tão paranoica que posso jura que sinto olhares queimando em minhas costas, seguro firme a pequena mão de João.

Por sorte nenhum deles fez piadas desnecessárias, nem nada parecido, apenas passamos por lá normalmente.

Ao chegarmos em casa, dei um tempo para o menino se organizar pois irei levar ele para sua casa. Soube por minha tia que ele tem uma madrinha que ajudava a mãe dele.

Acho que alguém mentiu sobre estar sozinho, mas não posso confiar cem por cento nisso, pedi pra que ele deixasse as roupas e tudo que comprei aqui, e iriamos até a casa da mulher, para ter certeza que será bem recebido, ou que não voltará pra rua novamente.

—E então, vamos? —Pergunto a ele pegando a minha própria chave da porta, agora existem duas.

João não responde nada, apenas caminha comigo pela rua, a mesma que subi ontem. Hoje é sexta-feira e há uma movimentação diferente nas ruas, mesmo que seja quieto nessa parte, ainda assim tem mais cabeças que o normal.

—Tu é estrela de cinema tia? Papo reto—João pergunta

—Não, acho que se fosse eu não estaria aqui -Sorrio para ele— Por que? Eu pareço uma?

—Tão olhando pra tu direto

Viro meu rosto para observar as pessoas e já estou sendo observada, não consigo decifrar se estão me julgando ou apenas sendo curiosos. Qual é o problema desse lugar? Espero que não saibam quem sou, isso seria um problema. Na verdade, já é um problema ter saído daquela casa.

—Vamos rápido, é perigoso aqui. -Apresso os passos

—Fica suça tia, eu te guardo -A criança ao meu lado enche o busto, como se fosse um herói. Sorrio dele.

—Ah, claro com toda certeza...

—Coé menó tá tirando comigo tia?

—O que? Não, nunca, seria até desrespeitoso da minha parte —Finjo levar a sério o assunto.

João me guia entre os becos da favela, não consegui memorizar todo o caminho, mas se ele sabe como chegar até lá, sabe como voltar.

—Qual foi neguinho? Disse que não queria tu andando nesses beco caralho!

Alguém fala atrás de nós. Eu lembro dessa voz, o cara de camisa vermelha. Eu fico estatística, João faz menção de correr mas seguro seu braço.

—É pior se você correr, vamos resolver isso de forma passiva. —Falo baixo apenas para ele escutar, o garoto ascente com a cabeça e nos viramos.

Ele e outros dois homens caminham em nossa direção armados, não tenho certeza, mas acredito que o do meio carrega uma AK-47, ou alguma parecida, pendurada em seu pescoço, os outros estão com armas menores.

O de vermelho sorri ao olhar em minha direção, o seu olhar desce e sobre várias vezes pelo me corpo. Sinto meu estômago revirar.

—Caraí o dia hoje tá naqueles pique pai —O rapaz de camisa preta, moreno que está do lado esquerdo fala e sorri ao me olhar.

—Vamo levar mamitinha pa casa menó —Os três riem.

Acho que vou vomitar.

—Não tô com o bagulho Marcio, papo re... —João começa a falar, mas antes que o garoto termine, o marginal do meio em um movimento rápido o pega fortemente pelo braço o tirando de mim.

Mas seguro firme sua mão e o trago de volta colocando ele atrás de mim.

—Ele é apenas uma criança, não há razão para descontar nele. —Me pronuncio segurando o garoto, que agora se encolhe atrás de mim me segurando com as duas mãos.

Eles me encaram com um sorriso sínico, como se não estivesse nem aí.

—Tu tá achando que tu é quem, em porra? Quer tomar bala caralho? —Vocifera o de vermelho.

Engulo sem seco, me afastando deles.

—Eu vou pagar...—A minha respiração está quase descontrolada, estou fazendo o possível para simplesmente não sair correndo. Mas se eu correr vão atirar, e se eu ficar não sei o que são capazes de fazer. — Adívida dele, e vocês o deixaram em paz.

O de vermelho me encara sério, enquanto os outros dois riem.

—Rico é tudo fudido, né não cavera? —Marcio, o homem do meio que acredito ser o que esta no comando, ri debochando e caminha em minha direção, ele segura sua arma com uma mão e a aponta para mim, descendo o objeto até meu seio esquerdo e preciona forte contra ele. Faço uma careta de dor, mas a verdade é que quero chorar. —Pega visão filha da puta, tu não vai durar muito aqui. —Ele aperta novamente— E antes de te mandar pra cova eu te como.

Ele se afasta, e passo a mão no local dolorido. Os meus olhos ardem, e sem que eu queira um líquido quente escorre pela minha bochecha.

—Bota eles no carro e manda pro chefe. —Quando ouço a sua ordem tenho plena certeza que me coloquei em uma enrascada feia

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Por todo o caminho segurei a mão do pequeno, que tremia de forma descontrolada. O garoto sussurrou varias vezes a palavra "desculpa" mesmo eu afirmando que ficaria tudo bem.

Claro que no fundo eu não tinha tanta certeza. A favela tem suas próprias leis, e eu não sabia ao certo se estava as infringindo ou não.

O homem que estava dirigindo nos mandou descer e caminhar por dentro da viela estreita que levaria para não sei onde exatamente. Mas João tomou a frente me guiando. Em cima das casas havia meninos armados, creio que na faixa etária de 15 a 16 anos e umas duas crianças, no entanto, essas não seguravam armas.

Mais a frente no beco havia homens e mulheres fumando algo que não recendia cigarro. Tento ignorar os assobios e apresso o passo. Esse lugar é horrível, fede a lixo, álcool e alguma coisa morta. Sem contar a sensação ruim que tenho ao ver as pessoas jogadas na rua daquela maneira.

Entramos ao que parece ser uma casa comum como todas as outras, desgastada e mediana, mas muito bem vigiada, os dois homens conversando na porta nos param, mas o motorista que nos trouxe até aqui abriu passagem.

Subimos em uma escada estreita na casa, o motorista bate a porta.

—Entra —A voz do lado de dentro ordena.

Entramos e o homem está virado para parede contando notas de dinheiro. O lugar tem pouca iluminação, teias de aranha no teto, as paredes pintadas de branco, mas manchadas com sujeira e rabiscos do tempo. A pequena mesa de madeira que me lembra a mesa de um professor em sala de aula ainda está nova, há uma calculadora, uma balança e três celulares em cima da mesa e bem no canto uma arma de porte pequeno.

—O chefe tá?

O homem jovem de corpo atlético, pele morena e com as costas completamente fechada em tatuagem se vira para nós.

E acredito que a sua reação seja a mesma que a minha, a face pintada em surpresa. Como o Samuel veio parar aqui?

—Lili? — Meu nome sai pela metade.

—Tu conhece ela vice? —o motorista pergunta

—Mete o pé. —Aponta com o queixo pra saída. —E leva o menó contigo.

O garoto aperta minha mão em relutância, mas dou-lhe novamente um sorriso.

—Me espere lá fora, tudo bem?

Ele não concorda, mas sai mesmo assim. Samuel guarda a arma dentro de uma gaveta, e por alguns segundos apenas me encara. Enquanto eu não faço a mínima ideia do que dizer. Ele se senta na poltrona. A desconfiança toma conta do seu rosto.

—Oi... —Digo quebrando o silêncio constrangedor e ele sorri.

- Mudou pra caralho hein? —Um sorriso brincalhão.

— É, acho que sim. Você também, mudou... —Ele indica a cadeira ao meu lado, eu a puxo e sento, sentido o alívio em minhas pernas.

— E tu tá fazendo o que aqui hein garota? — Fala de forma casual e amigável, nem parece que passamos quase dois minutos calados.

—Ah, sobre isso... O garoto está devendo uma...

—Não, né isso. —Ele gesticula com a mão. — Na favela, tá fazendo o que aqui. —Encaro ele

—Isso já é um pouco mais complicado de explicar. —Digo pensando em o quão difícil seria detalhar para ele, que meu pai me chantageou.

—Complicado vai ficar quando o chefe saber de tu aqui.

—Chefe? — Pergunto sem entender.

—Tá aqui desde quando garota?

—Uns... Três dias, eu acho. Mas por qual motivo ficaria complicado? E o que você faz aqui? Porque ele o chamou de vice?

—Era nois seis Lili, tá lembrada? —Gesticulo em concordância com a cabeça— Depois do confronto, os bagulho ficaram difícil aqui na comunidade. Foi o jeito entrar no esquema.

Não preciso de tradutor para entender o que o Samuel disse. Quando fui embora pesquisava em canais de YouTube, Telejornais do Rio, uma forma de ficar sempre informada. Dia após dia durante dois meses houveram confrontos entre policiais e participantes do crime.

No total, cem mortes em dois meses incluindo crianças e adultos inocentes que se foram por balas perdidas. Até que meu pai descobriu o que andava vendo e acabou confiscando meu aparelho telefone, depois disso não tive notícias por cinco anos.

—Eu sei. —Digo em tom baixo.

—O Henrique foi o primeiro de nois três, depois o Gabriel e depois eu.

Encaro ele entendendo o que está querendo dizer, o que eu devia ter imaginado. Henrrique não queria ficar na favela quando mais novo, me disse inúmeras vezes que iria estudar cursar direito, tirar a mãe e a irmã de um lugar onde não provém oportunidade. Mas ele nunca teve a oportunidade. Eles, nunca tiveram chance alguma aqui de dentro

—Então... -Engulo em seco — Quer dizer, que o Henrique faz parte disso também?

Samuel se inclina em minha direção e enquanto eu estou perplexa, ele age naturalmente é óbvio que dentre nós dois eu sou a única que está visivelmente atacada com essas informações.

—O Henrique comanda essa porra toda, Liliana.

O ar pesa ao meu redor e meu rosto vai ao chão. Eu estou no território comandado pelo homem cujo a vida eu arruinei no passado.

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