Prólogo

...Quando completei 15 anos, as pessoas ao meu redor me parabenizaram, disseram que era o começo para se tornar uma mulher, e eu deveria aprender a lidar com as dificuldades da vida. No entanto, estava sem ela para me apoiar. Aos 17, me encontrava completamente perdida em meio a tantas opiniões alheias que acabei esquecendo o que era ter uma própria. Ela não estava lá, e precisava mais do que tudo que estivesse. Com 18 anos me sentia exausta demais para tentar ser mais do que já era, ficar em silêncio era mais reconfortante....

Fecho com força o pequeno diário em minha mão quando leio as últimas palavras. Não recordava que havia deixado dentro de minha bolsa. Achá-lo foi uma verdadeira surpresa e até onde eu me lembro essa coisa estava perdida. Antigamente eu costumava escrever o que sentia ou qualquer bobagem que acontecia em relação a mim.

Uma tremenda idiotice.

—Qual o motivo da minha pendência em Artes? Não fazia ideia que essa coisa contava como matéria.

Escuto Patrick reclamar ao meu lado.

Olho para o meu amigo sentado de frente para mim na mesa do refeitório. Ele bufa insatisfeito jogando a lista de nomes em cima da mesa em frustração. Encaro ele fazendo o possível para não rir em uma situação como essa e então jogo meu pequeno caderno de volta para minha mochila.

—Não fique assim, olhe pelo lado bom, pelo menos é Artes, já pensou se fosse álgebra?

—Também fiquei em Álgebra Lina.

Ele pega a lista apontando seu nome em vermelho e eu respiro mordendo os lábios inferiores impedindo que se curvem em um sorriso.

—Você consegue meu camarada, eu sei que consegue.

O loiro deita a cabeça na mesa do refeitório choramingando. O drama dele faz alguns alunos olharem em nossa direção, mas apenas dou de ombros. Os dias do último semestre deste ano já estão contados, felizmente é nosso último ano, e isso já é motivo de alegria o suficiente, mas Patrick está depressivo demais com suas pendências para perceber isso.

—Eu sei que você quer sorrir. Hoje você já estará livre, enquanto eu terei de ficar nesse inferno educacional por dois dias ainda!

—Livre entre aspas você quis dizer, meu pai ainda está pegando no meu pé com a história de me mandar de volta para o Brasil.

Nos levantamosjuntos e pegamos as nossas bandejas caminhando em direção ao balcão onde depositamos os restos de comida e as bandejas ao lado.

Patrick pode ser considerado um típico padrão estadunidense, no entanto, mais afeminado. (Bem mais.) Ele por si só marca presença, não apenas com seu visual moderno; como o corpo não muito atlético, seu cabelo em tons de marrom claro cortado em um mullet mais preenchido e sua ousadia na escolha de vestimentas fora do padrão e o fato da sua personalidade não ter nada haver com seu estilo sombrio, mas a essência energética que ele exala por onde passa.

—Ah não garota, nem começa, você sabe que eu odeio reclamações de rico, tenho nojo desse tipo de coisa gata

—Não é reclamação Patrick, é só que...

—Ei, ei, olhe para mim

Ele para em minha frente fazendo sinalizações como se estivesse discutindo, mascando um chiclete de meia hora, acho que é algum tipo de charme, mas no momento ele está parecendo a Mady de Euphoria balançando suas unhas imensas em minha frente.

—Você está indo para o BRASIL!!! Calor, Carnaval, homens sexys e MUITA praia! Daria tudo para ir com você, mas uma gay também tem suas prioridades, então para de reclamar e usa isso ao seu favor meu docinho.

Abrimos nossos armários que só estão um ao lado do outro após Patrick causar um baita de um alvoroço na diretoria, ainda solto risadas sinceras quando lembro desse dia. Desde que cheguei à New York School, ele tem sido uma âncora, e sinceramente teria coragem de guardá-lo dentro de uma caixinha e levá-lo comigo para todo canto.

—Você é a melhor coisa que me aconteceu Patrick.

—Correção. Eu sou sua única melhor coisa que te aconteceu neste inferno educacional. E nem pense em me trair virando amiga de outro do vale, caso vá para o Brasil ok?

Sorrio o surpreendendo com beijinhos e abraços

—Vou sentir sua falta

—Hum, então quer dizer que já aceitou a viagem?

—Não, mas meu pai vai me obrigar de qualquer jeito.

Ao pegar meus últimos pertences do armário, seguro minha mochila em mãos, já que está pesada demais para colocá-la do jeito habitual, espero já impaciente Partick tentar fechar o armário, ao olhar para o corredor noto um grupo de quatro alunos vindo.

—Ah, ótimo

Suspiro e Patrick logo percebe a quem estou me referindo, diria que por Telepatia.

O quarteto se aproxima de nós enquanto Patrick ainda não fechou a porcaria do armário.

—Achei que a escola já havia sido desinfectada, há muitos insetos asquerosos por aí, não acha Eddie?

Adolescentes americanos e suas provocações fúteis, é nessas horas que sinto falta do Brasil, somos sem dúvida mais eficientes quando o assunto é xingamentos e confusões, mas não estou com energia suficiente para discutir nesse momento. (E mesmo se tivesse, acho que não saberia)

Os quatro que estão à nossa frente, são Alice a imbecil que anda pela escola fingindo que é a Regina George. Eddie, namorado de Alice, capitão do time de basquete e meu ex namorado, que só ganhou esse título pois eu estava na fase de "Só se vive uma vez". Os outros dois são apenas capachos, personagens coadjuvantes, Bryana e Pietro.

Eddie apenas sorri em concordância com o que Alice disse, como um cachorro na sombra do dono.

Céus que nojo, como pude namorar um indivíduo desses?

—Isso é a coisa mais inteligente que você consegue dizer quando me vê Alice?

—Sim, costumo pensar em insetos quando te vejo, será porque?

Patrick sem paciência com o próprio armário se vira para os quatro em nossa frente

—Merda! Vocês não têm mais o que fazer?

—Fica quieto aí bichinha

Eddie se pronuncia e sinto mais nojo ainda, a vergonha que eles passam não é brincadeira. Patrick apenas ri em sarcasmo.

—Me conta Eddie, dentro do armário é escuro? Faz bastante tempo desde que estive lá.

Eddie trava, vejo seu pomo de Adão subir e descer, ele abre a boca para se pronunciar mas Alice interrompe.

—Olha aqui seu viado de merd...

Antes que eu a interrompa, Patrick me entrega as chaves de seu armário.

—Cuidado como fala sua cadela, além de burra tem amnésia? Seu pai vai ficar triste de saber que terá de lidar pela segunda vez com a filha na cadeia.

Assim que meu amigo acaba de falar eu não aguento e solto uma gargalhada alta, Bryana me acompanha e solta um risinho, mas é silenciada pelo olhar fulminante de Alice.

—Como vai a sua mãe Lina? Ainda naquela favela? Ah não, espera, você não faz ideia não é?

Meu rosto ferve. Sinto Patrick se preparando para saltar em cima de Alice, mas eu paro.

—Já chega Alice! —Eddie pragueja, pegando Alice e arrastando para longe de nós.

Assim que eles vão embora Patrick se vira para mim

—Por que me segurou? Eu ia mostrar pra ela que eu sou pior do que aquela rainha cabeçuda. Não viu o jeito que ela falou da sua mãe? —Se impõe indignado com a situação,

Respiro fundo, tentando não transparecer abalo com as palavras de Alice, encaro seu olhos verdes.

—Relaxa, não quero que você tenha problemas por minha causa, Alice quer apenas atenção.

—Liliana, você não pode aceitar tudo. Você tem sangue brasileiro, faça uso dele garota. Ouvi dizer que eles são bons em briga.

Dessa vez é impossível não gargalhar.

Ele me dá um abraço mais apertado, e com isso nos despedimos por mais um tempo até meu motorista chegar.

                    °°°°

Senhor Wilson estaciona o carro em frente minha residência, a exatos oito passos, é sempre no mesmo local, fico assustada com o quão habilidoso ele é. Mas anos sendo o motorista da casa e sendo um homem na casa dos quarenta, faz com que tenham esse resultado, além de ser meu melhor ouvinte, um dos, na verdade.

Quando cheguei aqui, as pessoas que trabalham nesta casa me acolheram de tal forma que nunca imaginei. Quando saí do Brasil logo após a morte de minha mãe, pensei que meus dias seriam solitários, meus amigos e famílias estavam e ainda estão no Brasil, apenas eu e meu pai estamos aqui, o que não conta muito.

Srª Abigail, a que rege a cozinha, uma senhora de cabelos grisalhos deixando aparente sua meia idade, pele morena e por incrível que pareça, bastante conservada é como uma segunda vó, sua comida transmite ternura e uma nostalgia inexplicável, ela fez questão de aprender algumas comidas brasileiras para preparar para mim.

E Francis, quem faz a limpeza da casa junto com Sarah, sua irmã, ambas possuem dois anos de diferença, Francis a mais velha tem 38 e Sarah 36. Me ensinaram os costumes das pessoas daqui antes que eu entrasse para o ensino médio, para que não me sentisse perdida.

—Senhorita? Está tudo bem?

Sr Wilson olha através do espelho dentro do carro, notando minha demora sair do carro.

—A partir do momento em que eu abrir a porta terei que lidar com meu pai.

—Pobre criança... Vamos, eu abro para você e lhe acompanho até a porta, o que acha?

Sorrio de um jeito sutil e ele sai do carro e logo escuto a porta ao meu lado se abrir, seguro em sua mão e saio e caminhamos em direção a porta.

—Não acho que precise lidar com seu pai, pequena.

Ele lança enquanto caminhamos preguiçosamente. Noto que suas mãos estão para trás assim como de costume, acho que velhinhos de descendência japonesa tem o mesmo comportamento quando atingem certa idade, já vi outros fazendo o mesmo.

—Não? —Pergunto

—Não, acho que precisa lidar com você mesma. Seu pai é impulsivo obviamente, mas ele não é a causa das limitações que você gratuitamente se impõe.

Olho em direção a porta de entrada da casa, que parece mais uma mansão grande. O que ele me fala é a verdade, bem, pelo menosa metade dela. Nenhum empregado da casa sabe o que hpuve anos atrás. Então nada muda o fato de eu achar que parte disso é culpa do meu pai. Eu o culpo tanto quanto a mim mesma.

—Não sei como sair disso, na verdade.

—Não há fórmula mágica para tal coisa menina. —Ele faz uma pequena pausa—Uma vez meu falecido pai, um homem sábio, me disse algo, palavras que guardei e carrego até hoje comigo.

—O que?

—Quando não nos permitimos sofrer por nossas perdas, feridas e decepções, estamos condenados a revivê–las. —Ele para por um momento antes de continuar— Agora estou lhe oferecendo elas como um presente de viagem.

Ele ri, e eu o acompanho no mesmo embalo. Talvez eu já tenha visto essa frase em algum livro ou talvez o falecido pai dele tenha lido o mesmo livro que eu.

Paramos em frente a porta da frente, o abraço forte, antecipando a despedida. Adentro a casa, quieta, apenas um lustre ligado em meio ao seu interior rústico, me direciono para a escada subindo direto para meu quarto, quando entro demoro um pouco para notar que há duas malas grandes arrumadas em cima da minha cama, paro na porta.

Eu quero vomitar.

Depois dormir e acordar amanhã como se nada tivesse acontecido.

Ele já está decidido, não há o que fazer. Tranco a porta e me agacho no chão coberto por carpete branco, jogando minha bolsa de lado e desabo. Minhas mãos cobrem meu rosto enquanto solto soluços, fazendo o máximo de silêncio possível. Se ele ouvir, vai ser pior.

Qualquer pessoa me vendo nesse estado diria que estou sendo uma garota mimada de merda, que está apenas sendo rebelde com o próprio pai que apenas quer mandá-la de "férias" para outro país.

Mas essa situação é como um iceberg. Não nego que sou completamente apaixonada pelo Brasil, é minha casa, assim como era para minha mãe, ela amava aquele lugar tanto que transmitiu essa paixão para mim, e não foi preciso muito para me convencer.

O problema não é viajar, não é o Brasil, é a porra do lugar que ele quer me colocar novamente.

Ele quer me enfiar em uma Favela com pessoas que me provavelmente me odeiam, odeiam ele e o que aconteceu anos atrás, por culpa dele e principalmente minha, a mamãe foi morta junto com outros inocentes.

Demorei anos para me recuperar de tudo que aconteceu, ele não ergueu um dedo sequer para me dar apoio. Agora estou sendo obrigada a reviver tudo de novo a troco de nada.

E para piorar terei de rever pessoas que foram importantes para mim, pessoas que tive que cortar laços afetivos apenas por meu pai não gostar.

Ouço batidas na porta e me levanto, limpando o rosto.

—Querida, seu pai quer que você venha sentar à mesa para o jantar.

Srª Abigail fala através da porta, com uma voz doce, provavelmente foi ela quem arrumou minhas malas.

—Já irei descer, em cinco minutos.

Ouço passos se afastando, vou para o banheiro, lavo meu rosto certificando-me de não ter nenhum sinal de alguém que estava chorando minutos atrás. Sigo intacta para a cozinha, se meu pai pensa que irei me render a todas as suas vontades, está enganado, posso até ir para o Brasil, mas irei fazer questão de tirar sua paz mesmo estando a quilômetros de distância e vou fazer o possível para descobrir o porquê caralhos tive de voltar.

—Foram mais de cinco minutos Liliana.

Odeio a sensação de inferioridade que sinto quando chego perto, a coragem de minutos atrás se dissipa rapidamente, não sei se é exatamente medo ou qualquer outra coisa, mas sinto raiva de mim toda vez que quero dizer algo para defender minhas prioridades e não consigo. É como se as palavras fugissem da minha mente e simplesmente não consigo me impor.

Então apenas me sento à mesa e levo algumas garfadas com comida na minha boca. Ele olha para o relógio em seu pulso.

A aparência do homem que está sentado á minha frente não parece um pai com uma filha de dezenove anos. Barba muito bem feita, cabelos negros e lisos penteados sempre para trás. Os olhos esverdeados deixam uma marca de beleza. O corpo atlético, com músculos até de mais para quem tem trinta e oito anos são de fato, surpreendentes. Há sinais de velhice, claro, mas não são tão perceptíveis.

—São exatas 18h00, seu voo sairá daqui á uma hora, após acabar sua refeição, se organize antecipadamente para não ocorrer atrasos.

Curto e direto, sua voz grossa ecoou pelo grande cômodo. Não é um pedido, é uma ordem. Solto meu garfo antes de levá-lo a minha boca, o barulho sai alto mas não o suficiente para fazê-lo olhar em meus olhos.

—Pai por favor.

Protesto com a voz falha, já sentindo meus olhos arderem. Mas ele apenas bebe o líquido que estava ao seu lado, como se não estivesse acontecendo nada.

—Já conversamos sobre isso.

—Mas eu não concordei pai, eu apen...

Ele bate com o copo na mesa fazendo um som alto ecoar por toda a sala de jantar, a mesa treme com o ato e sinceramente não sei como o copo não se estilhaçou em sua mão. E sinto um frio na barriga, a mesma sensação angustiante que me acompanha desde a minha infância, quando ele agia de forma violenta com a mamãe.

—Sabe que odeio quando me contrariam, odeio mais ainda quando quem faz isso é você.

Engulo em seco, desistindo completamente de ter alguma conversa civilizada.

—Lhe fiz a proposta, de que se for para o Brasil, te concederei o aval para fazer a maldita faculdade de fotografia.

Eu quero, mas não pensei que ele usaria isso como chantagem. Sentindo a derrota mais uma vez, apenas aceno em confirmação com a cabeça.

—Boa Viagem.

Lança as palavras e sai do meu ponto de vista subindo a escada. Faço o mesmo indo direto para meu quarto

Mais populares

Comments

Carliane Serra

Carliane Serra

KD as fotos autora

2024-02-28

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!