Após seu noivo retornar para o país de seu clã, os preparativos do casamento se iniciaram sem demora. Deixando seu número de telefone, Khan nem desconfiava que ela sequer sabia o que era aquilo, e que não conseguiria se comunicar com ele. Nunca tinha tido contato com nenhum aparelho. Uma das muitas cortesias que Fayola lhe proporcionou, ao fazê-la viver trancada e distante de qualquer tipo de civilidade.
A Rainha tinha feito questão de ir até ela, lhe “parabenizar” em seu quarto.
— Deve ser grata a aquele rapaz, por desejar ficar com Vossa Alteza mesmo depois de ter conhecimento de seu trágico fim. Caso contrário, seria sempre um estorvo, aumentando as despesas do reino. Por conta disso, o Rei precisou ser generoso em seu dote. Faz ideia do quão humilhante isso é?
Fayola nunca tinha se importado em aprender a língua de sinais, para ela, Aiyê nem mesmo existia. Enquanto lia as palavras dela sendo formadas pelas mãos da tradutora, asco era tudo o que Yê conseguia sentir.
O Rei tinha sido generoso? Quem ela queria enganar? Havia convencido seu pai a cobrar o triplo por seu dote antes mesmo de atingir idade de entender o que isso significava. Na visão da Rainha, ela nada mais era que um gasto constante, e se livrar dela ao menos teria que trazer algum lucro.
Era nojento vê-la fingir se importar com o reino, quando tudo o que desejava era manter a vida luxuosa às custas do trabalho de seu pai.
Não fazia ideia do quanto Khan havia pago por ela, mas tinha certeza de que não fora uma quantia humilhante, como ela afirmava. Do pouco que conversaram, percebera que ele era capaz de qualquer coisa para conseguir o que queria. Não importava quantos zeros teriam na soma final.
— Espero que honre o esforço do seu pai e mantenha esse casamento, porque se o fizer devolvê-la... — Ela aproximou-se ameaçadora. Aiyê virou o rosto. Não para afrontá-la, mas, para continuar a ler o que a tradutora transmitia-lhe. No entanto, a Rainha a obrigou a permanecer a olhar nos seus olhos, segurando o seu rosto pelas bochechas com a mão direita.
Não se atrevida a tocar em sua pele sem uma luva, não queria se infectar com a praga que lhe assolava.
— Farei com que nunca mais veja o brilho do sol, porque é isso que biscates como você merecem! – Foram suas últimas palavras de “felicitações”. Somente depois de Fayola sair e estar sozinha, é que finalmente Yê se sentiu livre para chorar.
Chorou durante a tarde inteira até cair no sono, sendo acordada apenas quando a dama de companhia tocou o sino no corredor, avisando que o jantar seria servido. Não tinha apetite, mas se obrigou a tocar um pouco de cada prato. Precisava se recompor, em poucos dias estaria longe daquele lugar, e não fazia ideia do que enfrentaria dali em diante.
Aiyê não sabia se era realmente possível impedir seu destino, seu pai por anos tentou revertê-lo, mas, seus esforços só resultaram na diminuição do tempo que possuía. Os orixás desejavam que fosse dessa maneira, e ouvindo isso do próprio Óòni (líder espiritual), ele parou de tentar.
Yê sempre se questionou sobre o motivo, do porquê de ser ela a ter tal fim. No entanto, nunca obteve respostas. Uma força maior guiava seu destino, e ela queria acreditar nisso. Jamais imaginou que seria guiada até aquele Descendente. De todos possíveis, tinha que ser justamente um cuja a alma estava encoberta pela escuridão, e que era capaz de queimar qualquer um para ficar vivo.
O Óòni (líder espiritual) havia lhe dito certa vez, que a vida brotava de sua essência, embora seu destino a fizesse pensar o contrário. Por esse motivo, os Ajogun (aqueles que lutam contra a humanidade) se sentiam demasiadamente atraídos por ela. Dessa forma, não era estranho que Khan, que carregava um ser obscuro dentro de si, se sentisse atraído por ela.
Ela irradiava vida, tudo o que as almas condenadas foram proibidas de sentir.
Devido sua condição, ver o que estava no limiar da vida e da morte nunca fora um problema. Mesmo que eles não desejassem ser vistos, ela os via. Seus olhos conseguiam ver além da matéria, mergulhava fundo na alma de qualquer ser existente.
Era uma dádiva, e uma maldição.
Por conta disso a evitavam, temendo chamar para si desgraças incalculáveis. Assim como fugiam dos seus olhos, com medo de descobrir os mistérios por trás do próprio fim. Cada um via algo diferente nela, e estimulados pelo o que viam, sentiam todo o tipo de sentimento. Seu sangue mestiço exalava uma magia poderosa, capaz de enlouquecer até o mais forte homem. Tinha nascido para fascinar e destruir.
Muitos já haviam perecido pelo simples fato de desejar tocá-la, mas diferente do que todos imaginavam, Aiyê não temia morrer. Pelo contrário, a abraçava como parte de si. Ainda que não pudesse ver como ou quando a sua própria chegaria. No entanto, isso não significava que não desejava viver.
Ansiava por ela de forma fervorosa. Queria senti-la em cada parte de seu corpo, sem os efeitos ilusórios de sua essência.
Seu sono veio de forma natural, e por mais que soubesse que teria que decidir muitas coisas nos dias que se seguiriam, descansou sem se deixar levar pelas preocupações. Como de costume, despertou cedo, mas naquele dia, fora surpreendida por sua avó paterna Hadiya, que atravessou a porta dançando.
Lhe tirando um sorriso largo, ela iluminou seu dia como se fosse o próprio sol. Precisaria daquela força para enfrentar tudo, e como se pudesse ler seu coração, ela surgiu.
— “Anime-se minha princesa, logo será a única estrela a brilhar neste reino.”
— “Bàbá àgbà! (vovó)” – Aiyê se levantou da cama. Se ajoelhando de imediato, fez uma reverencia a avó.
— “Levante-se querida, tome seu café da manhã. Vamos fazer oferendas a Yemojá, e pedir orientações aos Babalawos.”
Fazendo o que sua avó mandava, andou até a mesa do quarto e se sentou para degustar dos variados pratos que as damas a haviam trazido.
— “Receio, que os Babalawos não poderão me revelar nada, bàbá àgbà.” – Mencionou, assim que colocou uma colherada do acarajé recheado com oji na boca.
— “Do que está falando, querida?” – A senhora se aproximou, sentando na cadeira a frente de Yê.
— “Não vi nada quando olhei para meu noivo.” – Revelou, recebendo o olhar arregalado de sua avó como resposta.
— “Então, está me dizendo...”
Aiyê confirmou com um aceno de cabeça, antes mesmo de sua avó terminar a frase.
— “Disse isso a mais alguém?”
— “Não senhora.” – Afirmou, colocando mais uma colherada da comida na boca
— “Fez bem. Se nem mesmo Òrúnmìlà-Ifá lhe deixou ver, significa que terá que descobrir o motivo sozinha.”
— “Estou ciente.”
— “E quanto a okàn (alma) dele... Emite uma boa aura?” – A interrogou, curiosa.
Yê confirmou com a cabeça, olhando para o prato. Evitou olhar para a avó. Se ela percebesse que mentia, faria uma grande confusão.
Se perguntava até onde o Rei tivera conhecimento sobre o seu noivo, mas, era provável que não soubesse o que ele carregava consigo. Nem mesmo ela o havia sentido naquela noite, no entanto, a aura não pode se manter escondida dos seus olhos.
Nada mais apropriado, pensou. Um amaldiçoado ligado a outro.
— “Ao menos Zaire fez uma boa escolha...” – Ela afirmou, deixando evidente que o Rei tinha escondido o fato de que não tinha sido proposta, e sim vendida. – “Então, quando irei conhecê-lo?” – Inqueriu.
— “Acredito que, em duas semanas.”
— “O que?! Duas semanas?! Zaire por acaso está louco? Uma cerimônia requer tempo de preparação!” – Exclamou exaltada. Gesticulava de forma rápida.
— “Intuo que, a pressa seja de meu noivo, Bàbá àgbà (vovó).” – Tentou amenizar a situação.
— “Se esse é o caso, vejo porque seu pai o escolheu. É tão impaciente quanto ele.”
Yê sorriu, limpando os cantos da boca com o guardanapo de seda dourado.
– “Terminou? Ótimo, vá se arrumar. Temos muito a fazer hoje!” - A senhora Hadiya gesticulava fazendo caretas, Aiyê achava engraçado ver a avó agindo daquela forma. Porém, no fundo, a entendia.
Em sua concepção, não tinha explicação para a pressa. E não teria, se não fosse a vontade de Fayola em aproveitar a oportunidade de se livrar do “problema que ela era para todos”.
Sua avó já havia preparado tudo para as oferendas. Flores brancas, perfume de alfazema, velas, champanhe, calda de ameixa e pêssego, arroz-doce, manjar, melão e mel. Assim como muitas joias e espelhos. Os pedidos pessoais de cada uma seriam feitos no local.
Dessa forma, ambas vestidas de branco, partiram para o templo de Yemojá.
Não pediria por fertilidade, pois embora soubesse que seu noivo não temia tocá-la, esse não era o real interesse dele em tê-la. Pediria por força, diante o desafio que enfrentaria ao entrar em um clã cujo nunca tinha ouvido falar. Pediria força para encontrar a liberdade, conforme a vida que ainda lhe restava pudesse proporcionar. Havia aceito seu destino, e pediria que continuasse aceitando, independente do que viesse a acontecer. Não desejaria prolongá-lo, nem o encurtar, apenas viver o que ainda podia.
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Atualizado até capítulo 74
Comments
Delha Ribeiro
Amando a sensatez e sabedoria dela
2024-04-03
1
Delha Ribeiro
nojenta já vejo um fim cruel pra ti safada 😡😡😡😡
2024-04-03
1
LadySillver34
garota sábia
2024-03-30
2