Arthur deveria ter atirado pedras na cruz em sua vida passada. Graças a esse crime imperdoável, os problemas perseguiam o Duque como nunca antes. Não bastasse passar horas preso em um labirinto de folhas, aquele pensamento tornava a persegui-lo: adorável. Como era possível uma mera palavra fazê-lo passar o dia com humor mórbido? Certo, era passageiro, ele se dissiparia como a névoa com o tempo. Não fazia sentido, foram somente dois encontros do acaso. Ele estava fazendo tempestade em copo d’água.
— Arthur?
O chamado o trouxe de volta à realidade. Ele não estava em casa para vagar em pensamentos. Naquele instante, o Duque estava sentado numa pequena mesa de madeira. Sobre ela, um tabuleiro de xadrez já ao final de uma partida. Ele costumava a jogar contra seu irmão, mas seu adversário não era William, sua aparência poderia se dizer o oposto: cabelo moreno e curto, olhos da mesma cor.
Naquela sala relativamente pequena, somente a luz da janela iluminava o rosto do seu adversário, assim como a rainha que decretou o final para Arthur.
— Xeque-mate. — Sorrindo vitorioso, Desmond fez questão de derrubar a peça no tabuleiro.
— Por hoje, chega. — Arthur contorceu o rosto em desgosto enquanto o rei de madeira girava sobre o quadriculado do tabuleiro.
Um sorriso torto surgiu no rosto do vencedor.
— Está distraído demais, meu amigo.
— Apenas pensando. — Arthur relaxou sobre a cadeira vinho macia. Se é que poderia relaxar tendo perdido tantas vezes consecutivas. De certa forma, seu orgulho estava ferido quando perguntou: — O que quer dessa vez? Pela vitória.
— Foram três partidas. — Desmond desfilou três dedos no ar.
Arthur deveria socar aquele rosto arrogante. Quais seriam as consequências por dar um novo rosto ao Visconde de Serafia? Ele sofreria as consequências? Bom, Desmond possuía um cargo elevado na marinha... Considerando esse fator, não haveria o mínimo problema.
— Arthur, estou vendo seus pensamentos. Aceite a derrota dignamente. — Desmond pegou a rainha vencedora. Ele girou-a no ar, brincando com a peça e alternando-a entre suas mãos.
Arthur pousou a mão sobre seu pescoço. Um estalo soou quando ele inclinou sua cabeça abruptamente.
— Fale logo.
Não ocultando o brilho nos olhos, Desmond colocou a peça sobre o tabuleiro. Arthur conhecia a animação nas pupilas, aqueles arregalados preocuparam o Duque.
— Ajuda com um certo pirata. — Respondeu sem pestanejar.
A expressão, já não muito amigável de Arthur, fechou-se ainda mais. Como esperado, problema. Determinado, ele disse:
— Não.
Desmond levantou-se abruptamente. O irritante chiado da fricção das pernas do móvel com o chão de madeira ecoou, seguido pelo som apressado dos sapatos do Visconde. Em uma mesa próxima, Desmond encontrou sua felicidade. Após muitos anos ele tinha vencido uma partida contra Arthur, era realmente um evento digno de comemoração. Já seu amigo… ele precisava afogar seu mau-humor no álcool.
— Escute antes de recusar. — Desmond retornou à mesa. Ele segurava dois copos preenchidos com a bebida alaranjada; um foi estendido para Arthur. — Vai pegar ou não?
O Duque não fez cerimônias, apenas aceitou. Quem sabe precisasse fazer isso com algo a mais.
— Peregrine. — Arthur não precisou de mais palavras para ver o rosto do amigo se contorcer em desprezo puro.
Desmond, em um só gole, engoliu a bebida.
— Eu e ele somos uma história antiga. Sabe…
— Poderia ser resolvida se entregasse o que ele deseja. Aquilo não vale nem mesmo um centavo para você. Pare de ser orgulhoso. — Seco, Arthur cortou-o.
— Deus Arthur! — Desmond exclamou. — Está sendo tão sem filtros como William.
Arthur franziu as sobrancelhas. Ele estava? Seu irmão mais novo não fazia questão de gentilezas e voltas. Sim. Ele estava agindo idêntico a William.
— Serei mais polido. Continue. Na verdade, espere. Se citar William novamente…
— Usará seu punho para me dar um novo rosto. Essa é velha vindo de você. — Desmond ergueu o copo vazio para Arthur em um falto cumprimento. — Seja menos previsível.
Novamente, o som do atrito. Desmond sentou-se relaxadamente na cadeira. Suas costas doíam pelo tempo curvadas, seu cérebro cansado pelo jogo e problemas.
— Entregaria as malditas cinzas se soubesse onde estão. Meu falecido pai se livrou daquilo há muito tempo. Ele sinceramente deve ter jogado no oceano ou algo semelhante.
— Então diga a verdade.
— E você pensa que ele me escutou?
Arthur suspirou.
— Não. E pouco me importa. Não quero fazer parte desse jogo, Desmond. Essa partida é diversão. Apostamos coisas simples e sem problemas maiores. Não vou me envolver com seu meio-irmão maluco ou sejá lá a relação conturbada de vocês dois.
— Caso tenha esquecido, lidar com meu meio-irmão maluco é parte do meu e do seu, ao menos antigo, trabalho. Então, por favor! Após isso, juro nunca mais perturbar-lhe em sua toca.
Peregrine não era um problema para Arthur. As atividades ilegais do pirata não o afetavam diretamente. Os assuntos da marinha não eram mais problema seu, até que um terceiro envolveu-o. Ele odiava muitas coisas ultimamente, uma delas ter que se esforçar ao máximo para entender de que canto sombrio de sua mente a palavra “adorável” havia surgido, outra delas: problemas alheios em que praticamente sua consciência o empurrava a eles.
— Não toco mais em armas. — Depois dessa decisão tomada, pensou que teria o mínimo de paz, mas, pela situação atual, era evidente que não.
Desmond riu sem humor. Um marinheiro que não tocava mais em um rifle, isso seria cômico se não fosse trágico. As mãos que mais cedo tocavam as peças sobre o tabuleiro, tanto a de Desmond como a de Arthur podiam estar visualmente limpas, mas, metaforicamente, eram vermelhas e banhadas em sangue fresco. Desmond lidava com isso. As vidas tiradas eram números em sua mente, ele separava-as de tudo. Apenas. Números.
Arthur não tinha esse complexo, os números que o Duque contava eram outros: número de familiares deixados para trás; números de lágrimas derramadas para cada morto; número de palavras que os conhecidos nunca entregariam à seus amados.
— Isso é mais político. Não tocará em nada e te darei um presente que quer há anos. Você se lembra do ataque que William sofreu?
Relaxadamente, Arthur acenou para que o Visconde continuasse. O interesse surgiu em seus pensamentos de forma inevitável. Ninguém tocava em sua família e se livrava das consequências, exceto uma pessoa. Uma única pessoa, até então desconhecida, que tinha safado-se da punição adequada.
A mera menção de Desmond fora mais do que o suficiente para que, sem reclamar, cogitasse aceitar a oferta. Se fosse o que estava pensando, aquele também era seu problema.
— Eu vou pessoalmente lidar com isso em alto-mar. Falarei a única língua que os piratas entendem, pois, aparentemente Hartley Peregrine desaprendeu o inglês claro. O que desejo pedir-lhe é que lide com um certo traidor. — Desmond apontou para o copo vazio. — Será uma história longa. Deseja mais uma, vice-almirante Montague?
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Atualizado até capítulo 48
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