Reino De Neve E Estrelas

Reino De Neve E Estrelas

Capítulo 1

Freya...

Estava frio. Meu corpo estava jogado sobre o chão gélido de mármore preto. Passos ecoavam cada vez mais altos, mas eu não podia me mover — não conseguia —, e a medida que esses passos se tornaram mais próximos, o medo e o terror se tornavam mais tangíveis, mais reais. Saltos vermelhos pararam diante de mim e uma risada viperina ecoou por todo o lugar. Fechei os olhos tentando me livrar daquilo e quando os abri, não estava mais naquele chão. Agora eu estava correndo em meio as árvores mortas, pessoas gritavam ao meu redor e a criatura corria atrás de mim selvagem e implacável, louca por meu sangue, por minha vida. Minhas pernas doíam e eu não conseguia mais força elas a ir mais rápido. Olhei para trás e não vi a criatura que me seguia, embora pudesse ouvir ela cada vez mais próxima. O pânico, o terror e o horror fizeram minhas pernas cederem e quando eu caí, a coisa surgiu na minha frente. Não, a criatura alada a qual tive que matar, mas o grande lobo preto com olhos verdes vividos. Apollo.

...★...

Pulei da cama com a respiração ofegante enquanto meu estômago se revirava e a comida do jantar subia até minha garganta. Corri para o banheiro e vomitei todo o jantar na privada e quando achei que já tinha acabado, vomitei outra vez e mais uma até não sobrar mais nada que eu pudesse colocar para fora. Me sentei no chão gelado e encostei a cabeça na parede de azulejos brancos. Passei as mãos pelos cabelos que colavam na minha testa devido ao suor e me concentrei nas batidas do meu coração tentando controlar minha respiração ofegante e acalmar meu interior que ainda se revirava em busca de algo para pôr para fora.

Após mais calma, olhei para Apollo que dormia tranquilamente, como se nem mesmo tivesse notado que sai da cama. A luz da lua que invadia a janela refletia em seu corpo nu deixando sua pele dourada em um tom pálido de cinza, os cabelos dourados eram um emaranhado sobre o travesseiro branco e seu rosto. A respiração pesada e a exaustão refletidas em seus ombros pesados sobre a cama. Fechei os olhos tentando esquecer as imagens do pesadelo que tirou meu sono essa noite, mas elas pareciam dispostas a me atormentar o resto da noite.

Cinco meses haviam se passado desde os eventos que levaram a queda da bruxa e a libertação de Salandria da maldição que os atormentou por cem anos. Cinco meses desde que eu havia sacrificado minha vida por isso. Cinco meses que eu tentava me adaptar ao meu novo corpo, minha nova mente, minha nova vida. As coisas diferiam agora. Todos nós estávamos tentando lidar com os nossos traumas depois do que aconteceu naquele castelo. Eu não conseguia dormir desde que voltamos para casa, todas às noites sou arrancada de meu sono por algum pesadelo medonho que me faz vomitar até os ossos e passar o resto da noite em claro. Apollo não parece notar quando saiu da cama, embora às vezes seu sono seja agitado, ele geralmente dormia a noite inteira enquanto eu velava na janela do quarto, olhando o céu e a lua lá fora.

Me adaptar ao meu novo corpo estava sendo difícil, principalmente me acostumar com meus novos sentidos. Eu estava mais rápida, mais forte, eu podia ver, ouvir e sentir cheiros a metros de distância e muitas das vezes isso me confundia. A primeira coisa que consegui dominar foi o equilíbrio. Nas primeiras semanas que voltei para casa, cai das escadas tantas vezes que não posso contar. Minhas pernas pareciam mais longas e o chão parecia mais fundo do que antes e constantemente pisava em falso e acabava com a cara no chão. Para a minha sorte, Apollo havia dispensado todos os empregados da casa deixando apenas o essencial, como Analice. Pelo menos assim, poucos testemunharam a humilhação que foi me adaptar ao meu novo equilíbrio. Em questão aos meus outros sentidos, eu ainda estava me acostumando a eles e pouco a pouco ia dominando e aprendendo a controlar cada um.

Andreas me ajudava com isso enquanto Apollo estava completamente obcecado em encontrar aqueles que apoiaram Cassandra durante seu Reinado de terror. Ele mal saia do escritório e estava cada dia mais volátil e irritadiço. Andreas dizia para deixar que ele lidasse com isso, para não me meter ou fazer nada que o provocasse, mas eu estava cada dia mais preocupada que ele nunca se recupere dessa obsessão, ou acabar iniciando uma guerra por esse desejo de vingança insano que ele adquiriu. Andreas levou minhas irmãs para as terras humanas poucas semanas depois que retornamos. Elas não falaram muito sobre o que aconteceu no castelo, apenas me contaram que foram pegas de surpresa por homens de armadura que as amarraram e com magia as levaram até o castelo de Cassandra. Andreas e eu achamos que seria mais seguro para elas voltar às terras humanas, com o humor volátil de Apollo e a ameaça de que os apoiadores de Cassandra pudesse aparecer a qualquer momento em busca de vingança, esse lugar se tornou perigoso demais para elas. Foi difícil para eu deixá-las ir, mas eu não podia arriscar que algo acontecesse com elas. Andreas se encarregou de que a casa fique segura o bastante para que elas não sejam encontradas novamente e eu confiava nele o suficiente para saber que as protegeria.

Loki não fez contato durante esses cinco meses. Não reivindicou o acordo e nem mesmo tivemos qualquer notícia dele. Eu não o ouvia mais, embora sempre sentisse que algo ou alguém me observava nas sombras da casa. O acordo parecia ser outra coisa com a qual Apollo estava obcecado. Ele buscava formas de desfaze-lo sem eu sofrer as consequências da magia. A tatuagem era outra coisa que o irritava e constantemente eu era obrigada a esconde-las com vestidos de mangas longas. Tínhamos vencido Cassandra e sua maldição, mas as sombras do que ela fez a todos nós, ainda pairava sobre nossas vidas sugando todas as nossas tentativas de seguir em frente, não deixando vulnerável e no escuro. Escuro. Eu não gostava do escuro, não mais. A escuridão me fazia lembrar daquela cela e da escuridão vazia da morte.

Eu havia me tornado uma heroína para o povo do Reino da Primavera e para o povo de outros Reinos. Todos os dias recebia baús de ouro, joias, vestidos e centenas de cartas de agradecimentos de todas as partes de Salandria. Eu não conseguia ler nenhum deles, nem mesmo usar nada do que me mandavam. Tudo aquilo era uma lembrança constante de tudo que aconteceu naquele castelo, do terror que fui obrigada a passar, da escolha que fui forçada a fazer e daquilo que eu tive que abrir mão.

Eu não gostava muito de pensar no fato de que eu agora era imortal, que eu não envelheceria e que viveria para sempre. Não gostava de pensar que eu veria minhas irmãs envelhecerem e morrerem — seus filhos e netos também — enquanto eu continuaria com a mesma aparência, congelada para sempre aos 20 anos, sem progredir, sem a oportunidade de ter um futuro, repetindo para sempre os mesmos dias enquanto o resto do mundo mudava e evoluía. Odiava lembrar que abri mão da minha humanidade e me tornei uma criatura que eu nunca desejei ser. Odiava me sentir arrependida do meu sacrifício, porque ao sentir isso, eu também me arrependia de ter salvo a ele e à todos os outros, isso tornava tudo o que eu e os outros passamos inútil.

Levantei depois de algumas horas sentada no chão gelado me recuperando do pesadelo e caminhei até a cama. Apollo ainda dormia tão tranquilamente que tive pena de acorda-lo. Me sentei com cuidado na cama e puxei os lençóis finos para as minhas pernas. Apollo se agitou na cama e virou para eu passando um dos seus pesados braços sobre minha cintura. Toquei seu rosto levemente afastando o cabelo que o cobria e observei a calmaria e a quietude em seu rosto. Ele estava ali. Ele era real e estava vivo. Ele não estava sendo escravizado por uma bruxa cruel, não estava morto ou prestes a me matar como nos meus pesadelos. Ele não era um fantasma frio e inexpressivo. Ele era real, quente, respirando e vivo. Seus lábios se contraíram quando passei os dedos levemente pela sua bochecha e ele sibilou meu nome baixo me pressionando mais perto. Suspirei aliviada com o fato de que aquilo não havia sido em vão. Eu me sacrifiquei por amor a ele, por amor a esse lugar e a essa espécie. Me sacrifiquei para libertá-lo e eu consegui. Apenas isso já me é o suficiente. Tudo o que fiz, foi por amor.

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