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Reino De Neve E Estrelas

Capítulo 1

Freya...

Estava frio. Meu corpo estava jogado sobre o chão gélido de mármore preto. Passos ecoavam cada vez mais altos, mas eu não podia me mover — não conseguia —, e a medida que esses passos se tornaram mais próximos, o medo e o terror se tornavam mais tangíveis, mais reais. Saltos vermelhos pararam diante de mim e uma risada viperina ecoou por todo o lugar. Fechei os olhos tentando me livrar daquilo e quando os abri, não estava mais naquele chão. Agora eu estava correndo em meio as árvores mortas, pessoas gritavam ao meu redor e a criatura corria atrás de mim selvagem e implacável, louca por meu sangue, por minha vida. Minhas pernas doíam e eu não conseguia mais força elas a ir mais rápido. Olhei para trás e não vi a criatura que me seguia, embora pudesse ouvir ela cada vez mais próxima. O pânico, o terror e o horror fizeram minhas pernas cederem e quando eu caí, a coisa surgiu na minha frente. Não, a criatura alada a qual tive que matar, mas o grande lobo preto com olhos verdes vividos. Apollo.

...★...

Pulei da cama com a respiração ofegante enquanto meu estômago se revirava e a comida do jantar subia até minha garganta. Corri para o banheiro e vomitei todo o jantar na privada e quando achei que já tinha acabado, vomitei outra vez e mais uma até não sobrar mais nada que eu pudesse colocar para fora. Me sentei no chão gelado e encostei a cabeça na parede de azulejos brancos. Passei as mãos pelos cabelos que colavam na minha testa devido ao suor e me concentrei nas batidas do meu coração tentando controlar minha respiração ofegante e acalmar meu interior que ainda se revirava em busca de algo para pôr para fora.

Após mais calma, olhei para Apollo que dormia tranquilamente, como se nem mesmo tivesse notado que sai da cama. A luz da lua que invadia a janela refletia em seu corpo nu deixando sua pele dourada em um tom pálido de cinza, os cabelos dourados eram um emaranhado sobre o travesseiro branco e seu rosto. A respiração pesada e a exaustão refletidas em seus ombros pesados sobre a cama. Fechei os olhos tentando esquecer as imagens do pesadelo que tirou meu sono essa noite, mas elas pareciam dispostas a me atormentar o resto da noite.

Cinco meses haviam se passado desde os eventos que levaram a queda da bruxa e a libertação de Salandria da maldição que os atormentou por cem anos. Cinco meses desde que eu havia sacrificado minha vida por isso. Cinco meses que eu tentava me adaptar ao meu novo corpo, minha nova mente, minha nova vida. As coisas diferiam agora. Todos nós estávamos tentando lidar com os nossos traumas depois do que aconteceu naquele castelo. Eu não conseguia dormir desde que voltamos para casa, todas às noites sou arrancada de meu sono por algum pesadelo medonho que me faz vomitar até os ossos e passar o resto da noite em claro. Apollo não parece notar quando saiu da cama, embora às vezes seu sono seja agitado, ele geralmente dormia a noite inteira enquanto eu velava na janela do quarto, olhando o céu e a lua lá fora.

Me adaptar ao meu novo corpo estava sendo difícil, principalmente me acostumar com meus novos sentidos. Eu estava mais rápida, mais forte, eu podia ver, ouvir e sentir cheiros a metros de distância e muitas das vezes isso me confundia. A primeira coisa que consegui dominar foi o equilíbrio. Nas primeiras semanas que voltei para casa, cai das escadas tantas vezes que não posso contar. Minhas pernas pareciam mais longas e o chão parecia mais fundo do que antes e constantemente pisava em falso e acabava com a cara no chão. Para a minha sorte, Apollo havia dispensado todos os empregados da casa deixando apenas o essencial, como Analice. Pelo menos assim, poucos testemunharam a humilhação que foi me adaptar ao meu novo equilíbrio. Em questão aos meus outros sentidos, eu ainda estava me acostumando a eles e pouco a pouco ia dominando e aprendendo a controlar cada um.

Andreas me ajudava com isso enquanto Apollo estava completamente obcecado em encontrar aqueles que apoiaram Cassandra durante seu Reinado de terror. Ele mal saia do escritório e estava cada dia mais volátil e irritadiço. Andreas dizia para deixar que ele lidasse com isso, para não me meter ou fazer nada que o provocasse, mas eu estava cada dia mais preocupada que ele nunca se recupere dessa obsessão, ou acabar iniciando uma guerra por esse desejo de vingança insano que ele adquiriu. Andreas levou minhas irmãs para as terras humanas poucas semanas depois que retornamos. Elas não falaram muito sobre o que aconteceu no castelo, apenas me contaram que foram pegas de surpresa por homens de armadura que as amarraram e com magia as levaram até o castelo de Cassandra. Andreas e eu achamos que seria mais seguro para elas voltar às terras humanas, com o humor volátil de Apollo e a ameaça de que os apoiadores de Cassandra pudesse aparecer a qualquer momento em busca de vingança, esse lugar se tornou perigoso demais para elas. Foi difícil para eu deixá-las ir, mas eu não podia arriscar que algo acontecesse com elas. Andreas se encarregou de que a casa fique segura o bastante para que elas não sejam encontradas novamente e eu confiava nele o suficiente para saber que as protegeria.

Loki não fez contato durante esses cinco meses. Não reivindicou o acordo e nem mesmo tivemos qualquer notícia dele. Eu não o ouvia mais, embora sempre sentisse que algo ou alguém me observava nas sombras da casa. O acordo parecia ser outra coisa com a qual Apollo estava obcecado. Ele buscava formas de desfaze-lo sem eu sofrer as consequências da magia. A tatuagem era outra coisa que o irritava e constantemente eu era obrigada a esconde-las com vestidos de mangas longas. Tínhamos vencido Cassandra e sua maldição, mas as sombras do que ela fez a todos nós, ainda pairava sobre nossas vidas sugando todas as nossas tentativas de seguir em frente, não deixando vulnerável e no escuro. Escuro. Eu não gostava do escuro, não mais. A escuridão me fazia lembrar daquela cela e da escuridão vazia da morte.

Eu havia me tornado uma heroína para o povo do Reino da Primavera e para o povo de outros Reinos. Todos os dias recebia baús de ouro, joias, vestidos e centenas de cartas de agradecimentos de todas as partes de Salandria. Eu não conseguia ler nenhum deles, nem mesmo usar nada do que me mandavam. Tudo aquilo era uma lembrança constante de tudo que aconteceu naquele castelo, do terror que fui obrigada a passar, da escolha que fui forçada a fazer e daquilo que eu tive que abrir mão.

Eu não gostava muito de pensar no fato de que eu agora era imortal, que eu não envelheceria e que viveria para sempre. Não gostava de pensar que eu veria minhas irmãs envelhecerem e morrerem — seus filhos e netos também — enquanto eu continuaria com a mesma aparência, congelada para sempre aos 20 anos, sem progredir, sem a oportunidade de ter um futuro, repetindo para sempre os mesmos dias enquanto o resto do mundo mudava e evoluía. Odiava lembrar que abri mão da minha humanidade e me tornei uma criatura que eu nunca desejei ser. Odiava me sentir arrependida do meu sacrifício, porque ao sentir isso, eu também me arrependia de ter salvo a ele e à todos os outros, isso tornava tudo o que eu e os outros passamos inútil.

Levantei depois de algumas horas sentada no chão gelado me recuperando do pesadelo e caminhei até a cama. Apollo ainda dormia tão tranquilamente que tive pena de acorda-lo. Me sentei com cuidado na cama e puxei os lençóis finos para as minhas pernas. Apollo se agitou na cama e virou para eu passando um dos seus pesados braços sobre minha cintura. Toquei seu rosto levemente afastando o cabelo que o cobria e observei a calmaria e a quietude em seu rosto. Ele estava ali. Ele era real e estava vivo. Ele não estava sendo escravizado por uma bruxa cruel, não estava morto ou prestes a me matar como nos meus pesadelos. Ele não era um fantasma frio e inexpressivo. Ele era real, quente, respirando e vivo. Seus lábios se contraíram quando passei os dedos levemente pela sua bochecha e ele sibilou meu nome baixo me pressionando mais perto. Suspirei aliviada com o fato de que aquilo não havia sido em vão. Eu me sacrifiquei por amor a ele, por amor a esse lugar e a essa espécie. Me sacrifiquei para libertá-lo e eu consegui. Apenas isso já me é o suficiente. Tudo o que fiz, foi por amor.

Capítulo 2

Freya...

Apollo não estava na cama quando levantei, também não havia sinal na sala de jantar ou no escritório. Analice disse que ele e o Andreas haviam saído cedo a cavalo que não os vira desde então. Tomei o café da manhã sozinha, ou melhor, na companhia dos dois sentinelas que se tornaram minha sombra. Eu fui contra a ideia absurda de Apollo em colocar sentinelas atrás de mim o tempo todo, mas ele estava decido e ganhou o apoio do irmão — o que me deixou completamente furiosa. Eu odiava ter esses dois atrás de mim, não por eles já que nunca falavam comigo, mas sim pelo fato de me sentir vigiada constantemente. Era angustiante saber que para onde eu fosse, haveriam dois pares de olhos atentos a cada movimento que eu desse. Mas Apollo estava paranoico com a minha segurança. Na primeira semana, quando voltamos ele não dormia, passava a madrugada inteira sentado na poltrona com suas adagadas e espada observando a porta e a janela atentamente. Eu não questionei seus motivos, assim como ele não questionou o porquê de eu acordava gritando por socorro naqueles primeiros dias ou do porquê eu continuei acordando toda a madrugada desde então. Não falávamos sobre os problemas um do outro, apenas sabíamos estar lá e que estávamos lidando da nossa maneira, mas não falávamos sobre ele.

Eu não falava sobre isso; em partes, porque tinha medo de trazer de volta todas aquelas lembranças, todas as coisas que senti durante aqueles dois meses presa no castelo de Cassandra ou sobre o que vi e senti durante minha morte; e em partes porque eu não queria fazer ele reviver quaisquer que sejam os terrores que ele sofreu enquanto eu estava nas terras humanas, ou presa naquela cela. Não queria o fazer lembrar daquela noite com Loki que para mim não era mais que um borrão de imagens, mas que para ele era tão vivida que só de lembrar o fez socar as paredes até suas mãos sangrarem. Por enquanto, o melhor a se fazer, era deixar esse assunto para depois, quando nós dois estivéssemos pronto para enfrentar o que quer quê estamos evitando — mesmo eu acreditando que nunca vou poder superar ou falar sobre isso.

Depois de um café da manhã silencioso, andei pela casa buscando algo para entreter minha mente. Pensei em pintar, mas só de imaginar as tintas em minhas mãos eu já sentia meu corpo estremecer e as lembranças de meu próprio sangue invadem minha mente como um tornado. Fui até a biblioteca, pensei que pelo menos poderia me distrair com um bom livro, mas não consegui passar um segundo sequer naquele lugar — que apesar de enorme — me pareceu tão pequeno e amontoado quanto minha cela no castelo de Cassandra. Sem muitas opções, decidi ir para os estábulos. Fiquei surpresa quando voltei para casa e Moon estava no estábulo a salvo, não achei que fosse vê-la novamente. Mas ela era uma sobrevivente, assim como eu.

Parei na porta dos estábulos quando vi Andreas e Apollo preparando se preparando para partir antes mesmo de entrar em casa. Andreas me avaliou de cima a baixo antes de montar em seu alazão preto e passou a mão pelo pescoço do animal o acalmando. Caminhei na direção dos dois machos muito bem trajados com suas adagas presas a cintura e suas espadas nas costas.

— Não estava na cama — Falei assim que me aproximei de Apollo. Ele beijou minha testa rapidamente e voltou sua atenção ao cavalo marrom — Onde estão indo?

— Temos algumas coisas para resolver na cidade. Talvez voltemos antes do jantar. — Foi Andreas quem respondeu. Olhei para Apollo que parecia concentrado em prender as amarras da cela.

— Posso ir com vocês?

— Não é seguro — Apollo respondeu sem olhar para mim, deu a volta no alazão e voltou sua atenção para as amarras da cela do outro lado.

— Como pode não ser seguro com vocês dois comigo? — Isso não fazia sentido e ele sabia disso, por isso nem sequer me olhou quando perguntei — Apollo...

— Não vamos arriscar. Você fica. — Ele me olhou, sério. Uma expressão que eu nunca vi sendo direcionada a mim. Um comando de um Rei, eu percebi.

— Isso é uma ordem? Devo me curvar como todos os outros? — Andreas me olhou surpreso, mas não mais surpreso que Apollo. Ele balançou a cabeça, como se desistisse de falar algo e se virou para o que fazia na cela.

— Não vamos ter essa discussão outra vez.

— Apollo pelos deuses. Eu não sou mais uma humana frágil e você não pode me manter nessa casa para sempre...

— VOCÊ NÃO VAI — Parei de falar quando ele gritou, as garras pulando para fora das articulações, o que me fez dar um passo para trás e Andreas pular do cavalo indo até o irmão.

— Meu irmão, o que custa deixar que ela venha? Vamos ficar de olho nela o tempo inteiro — Ele falou com a voz suave enquanto tocava o ombro de Apollo. Meus olhos estavam fixos nas garras que brilhavam em suas mãos. Ele respirou fundo se concentrando e as retraindo. Engoli seco com o alívio em meu corpo.

— É arriscado demais e eu não vou dar sorte ao azar — Ele não me olhou quando deu a volta e montou no cavalo saindo antes que qualquer um de nós falasse algo.

Andreas se aproximou e tocou meu ombro, instintivamente me afastei do toque, só agora percebendo que eu estava tremendo. Olhei para o macho a minha frente que apenas me encarou de volta com um olhar triste enquanto sua mão desvia novamente para a lateral do seu corpo. Ele sussurrou um "sinto muito" antes de montar seu cavalo e sair. Eu não respondi a isso, minha mente ainda estava vagando no momento em que aquelas garras se projetaram para fora, como fizeram no dia que estávamos no bosque, como fizeram com antes dele contar Cassandra em pedaços. Encolhi o corpo com aquelas lembranças e controlei a minha tremedeira antes de conseguir dar o primeiro passo em direção a casa.

— Me deixem sozinha — Falei quando as sentinelas me seguiram.

— Temos ordens do Rei para ficar com a senhorita a todo momento — Um deles falou fazendo uma pequena reverência. Suspirei controlando a raiva e voltei a caminhar em direção a casa.

Eles mantiveram uma distância respeitosa, mas continuaram me seguindo até a porta do meu quarto, onde montaram guarda quando entrei e tranquei a porta. Passei o resto do dia jogada na cama repassando cada segundo do que aconteceu essa manhã, tentando entender o que causou aquela reação nele. As empregadas bateram na porta me oferecendo comida, mas me recusei a nem sequer responder. Eu não queria comer, não queria companhia, eu só queria deitar ali e sumir desse mundo por alguns segundos.

Já era noite quando a porta destrancou sozinha, não me virei para saber quem era. Senti seu cheiro quando passou pelos portões da propriedade e imaginei que viria até aqui. Continuei olhando para a parede quando ele sentou a beira da cama e tocou meu braço, meu corpo se encolheu e ele afastou a mão respirando fundo.

— Sinto muito pelo que aconteceu hoje, eu... — Ele pareceu buscar as palavras e eu finalmente olhei para ele. Seu rosto retorcido em um misto de culpa, dor, medo e preocupação. Seus olhos procuraram os meus e se fixaram ali — Eu não queria te assustar. Eu só não consigo controlar... Eu sinto muito — Respirei fundo e me sentei na cama olhando minhas mãos.

— Nunca mais... nunca mais faça aquilo outra vez — Ele concordou imediatamente. Seus olhos transbordando sinceridade acima de todos os outros sentimentos. Devagar eu peguei sua mão.

— Eu te amo demais para te perder — Havia uma dor em sua voz, uma que eu nunca ouvi. Instintivamente eu me aproximei e o abracei. Ele retribuiu exitante, então se aconchegou a mim, afagando meus cabelos.

— Você não vai me perder... — Um ar frio percorreu minha espinha e ele me abraçou mais forte.

— Eu sei...

Capítulo 3

Freya...

Já haviam se passado algumas semanas desde o que aconteceu nos estábulos. Nenhum de nós tocou nesse assunto novamente e eu não pedi mais para ir com eles, mesmo cada dia trancada nessa casa sendo um pior que o outro. Eu estava dando a ele tempo. Eu não ficaria trancada aqui para sempre, mas poderia esperar um pouco antes de voltar a insistir nesse assunto que ele incomoda tanto.

O dia demorou a amanhecer, mas quando o sol nasceu, Apollo já estava de pé e se vestindo. Ele não falou nada sobre o fato de que eu já estar acordada quando levantou, também não se despediu quando saiu do quarto e eu já sabia para aonde iria. Respirei fundo passando a mão pelo rosto e afastando a irritação que aquilo me causou. Como Salandriana, meus sentimentos estavam por toda a parte. Tudo era tão intenso que me sentia sufocada com tantos sentimentos. Quando humana, as coisas que me faziam sentir melhor sempre que estava angustiada era ler ou pintar, mas desde que cheguei aqui, eu não consigo fazer nenhum dos dois. As tintas que Apollo me deu ainda estavam guardadas no armário, intocadas. Achei que um dia fosse ter a oportunidade de pintar aquele campo que fomos — os olhos dele —, mas agora, sinto que isso nunca pode acontecer.

Estava um dia bonito e ficar enfiada nesse quarto não me ajudaria. Para falar a verdade, eu estava cansada de ficar presa em casa. Não havia mais maldição ou ameaças, eu não era mais uma humana frágil, ainda assim, Apollo insistia que a cidade era perigosa. Eu não aguentava mais andar pela casa ou pelo lago, o máximo que posso ir antes que uma das sentinelas me escoltem de volta para casa. Por falar em sentinelas, havia muitas deles por toda a propriedade. Apollo se encarregou de trazer metade dos guardas das fronteiras para a propriedade, além dois que me seguiam para todo o lugar.

Uma batida tímida na porta soou e eu permitir que entrasse. Analice que usava o mesmo vestido cinza de sempre, sorriu para mim com peças de roupas que ela deixou na poltrona antes de entrar no quarto e ligar a água na banheira. Não falamos nada enquanto ela me ajudava a arrumar meu cabelo, mas quando eu estava prestes a sair, ela finalmente falou.

— Essa é minha última semana aqui — Sua voz baixa parecia carregar uma dor que não alcançou seus olhos, me virei na sua direção e ela me olhou com ombros retraídos.

— Porquê?

— A irmã e o cunhado do meu marido foram vítimas de Cassandra e as filhas gêmeas deles não tem ninguém que possa cuidar dela. Vamos nos mudar para o Reino de Verão onde elas moram para ficarmos com elas — Ela explicou. Senti meu peito se apertar ao pensar nela indo embora, mas eu podia entender os motivos.

— Espero que dê tudo certo para vocês lá — Falei caminhando até ela e toquei seu ombro, ela sorriu para mim — Sinto muito pela sua perda e do seu marido.

— Não se desculpe menina. Você salvou a todos nós e vamos ter para sempre uma dívida com você — Engoli seco desviando o olhar dela e me afastei sentindo algo em meu peito queimar.

— Sinto muito...

Antes que ela respondesse eu deixei o quarto para trás caminhando pelos corredores rapidamente. Parei alguns metros a frente com a respiração ofegante e levei uma mão até a barriga controlando o enjoou que me atingiu. Odiava ser vista como uma heroína. Eu não era a heroína altruísta que todos acreditavam. Eu teria escolhido salvar apenas Apollo naquele dia se fosse minha única opção. Eu era egoísta. Não é justo que todos se sintam gratos por uma decisão que eu tomei por conveniência.

Após controlar o pequeno ataque de pânico que começou a me atingir, eu finalmente desci as escadas, tomando um cuidado reforçado com os últimos degraus, onde eu sempre perdia o equilíbrio. Ouvi vozes vindo da sala de jantar e me surpreendi ao encontrar Andreas e Apollo conversando à mesa. Ambos pararam e me olharam quando atravessei as portas de madeira. Apollo se arrumou na cadeira e Andreas enfiou um pedaço generoso de pão na boca ficando subitamente ocupado com algo na manga de seu casaco. Caminhei até a cadeira ao lado de Apollo e observei os dois machos a minha frente estreitando os olhos.

— O que estavam cochichando? — Questionei enquanto me servia com algumas frutas.

O apetite foi a primeira coisa que me acostumei nesse novo corpo. Os sabores eram completamente diferentes dos que eu já havia provado como humana. Na primeira semana depois que voltei, lembro de ter me empanturrado de todo o tipo de comida que Analice pudesse trazer para mim e ainda assim, não me sentia cheia. Se ainda fosse humana, provavelmente teria passado mal com metade das coisas que comi naquele dia.

Os machos a minha frente se olharam e vi quando Andreas deu de ombros para o irmão que exibiu os dentes para ele. Cruzei os dedos diante da mesa observando a discussão silenciosa dos dois e quando finalmente me olharam, ergui a sobrancelha fazendo um gesto para falarem. Apollo pigarreou e Andreas bebeu da taça com voracidade o bastante para não ser casual.

— Andreas e eu vamos até à cidade resolver umas coisas hoje — Apollo deu de ombros, embora sua expressão estivesse tensa — Nada com o que se preocupar, apenas coisas do Reino.

— Posso ir com vocês? Eu...

— Não! — Olhei para Apollo quando ele falou alto em um tom assustado. Até mesmo Andreas olhou para ele incrédulo com sua reação. Minha mente vagou para o dia nos estábulos, mas eu me forcei a não pensar nisso.

— Eu estou cansada de ficar presa aqui com sentinelas me seguindo até a porta do banheiro — Olhei para Apollo com olhos suplicantes — Por favor, me deixe ir com vocês, quero ajudar na reconstrução da cidade, ajudar em qualquer coisa.

— Já falei que é perigoso demais — Ele respondeu irredutível. Olhei para Andreas, mas ele apenas deu de ombros deixando claro que não entraria nessa.

— Apollo, por favor.

Ele não respondeu a minha súplica, apenas desviou o rosto para a janela e isso já foi resposta mais do que o suficiente. Olhei para Andreas que também desviou o olhar para as suas mãos. Bufei jogando o guardanapo na mesa e sai da sala indo direto para o jardim. As sentinelas me seguiram a uma distância considerável e quando cheguei até o coreto, eles pararam a sombra de uma das árvores me observando de longe.

Eu enlouqueceria dentro desta casa, não aguentava mais ficar restrita a esse lago e a droga dos estábulos. Queria sair, conhecer as pessoas dessa cidade, respirar um ar diferente do que esse campo. Eu odiava me sentir tão presa, é como se eu nunca tivesse saído daquela cela. Fechei os olhos tentando controlar a raiva crescente dentro de mim e respirei fundo tentando afastar as lembranças daquele maldito lugar. Passos ecoaram atrás de mim e me virei vendo Andreas se aproximar timidamente. Ele se encostou na entrada do coreto e cruzou os braços olhando o lago. Desviei minha atenção dele para o lago também quando o ouvi falar.

— Precisa dar a ele um tempo...

— Tempo? Já se passaram cinco meses, Andreas. Cinco meses que eu estou presa nessa casa, que eu não dou um passo sem aqueles dois no meu encalço como sombras — Apontei para as sentinelas que desviaram o olhar. Ele suspirou e me virei para ele — Eu preciso sair de casa ou vou acabar ficando louca. Antes eu entendia, tinha a maldição e eu era humana, mas a maldição acabou e eu sou uma de vocês agora. Porque ele precisa tanto me esconder? — Ele me olhou, dor dançaram em seus olhos.

— Nos minutos que se seguiram a sua morte, Apollo gritou tanto que eu achei que ele fosse enlouquecer. Nem mesmo a morte da nossa mãe causou tamanha dor nele — Ele engoliu seco e caminhou até mim, sentando ao meu lado — Não o culpe por ter medo que aquilo aconteça outra vez, não o culpe por tentar evitar aquela dor outra vez. Eu sei que está sendo difícil para você e sei que precisa disso, mas... dê a ele tempo para se ajustar a nova realidade, para entender que não existe mais perigo e que você não irá morrer — Ele falou em tom de súplica, seus olhos refletindo o sentimento e a dor.

— Tempo é tudo o que eu tenho dado a ele. Tempo para a sua obsessão por vingança. Tempo para o seu ódio por essa droga de acordo... — Segurei o braço esquerdo coberto pelo fino tecido do vestido. Andreas desviou o olhar dele com a mesma amargura que Apollo no olhar — Mas... e quanto a mim? Quanto tempo mais vou ter que esperar? Quanto tempo mais vou ficar presa nesse lugar como uma prisioneira? Como se estivesse novamente naquela maldita cela? — Ele me olhou engolindo seco.

— Você não é uma prisioneira aqui — Ele sibilou entre dentes — Ele só... Você não apresentou seus poderes e ele está preocupado de que...

— Poderes? — Ele me olhou e piscou uma vez, como se eu devesse saber do quê ele estava falando — Eu tenho... poderes? — Questionei olhando para ele surpresa.

— Ele não te contou? — Neguei olhando para as minhas mãos, como se fosse ver o poder fluindo nelas — Droga, eu não deveria ter falado nada — Ele se levantou passando as mãos nos cabelos — Eu tenho que ir, antes que eu falei mais alguma besteira e Apollo me mate por isso.

Ele saiu antes que pudesse perguntar mais sobre essa história de poderes. Eu sabia que alguns Salandrianos possuíam poderes e outros não. Os que possuíam eram lordes e ladys de algumas cidades do Reino. Mas não imaginei que eu pudesse ter poderes também. Nos últimos cinco meses eu não apresentei nada de anormal, além claro das mudanças óbvias no meu novo corpo. As circunstâncias do meu renascimento como Salandriana era desconhecida por todos do Reino. Ninguém jamais ouviu falar de uma humana que voltou a vida como uma Salandriana e ninguém sabia explicar como aconteceu. Mas essa história de poderes era algo que nenhum de nós pensou — ou pelo meu eu não pensei — que pudesse ser uma possibilidade. Apollo parecia ter medo disso, por isso me mantinha trancada. Eu descobriria o porquê.

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