Freya...
Já haviam se passado algumas semanas desde o que aconteceu nos estábulos. Nenhum de nós tocou nesse assunto novamente e eu não pedi mais para ir com eles, mesmo cada dia trancada nessa casa sendo um pior que o outro. Eu estava dando a ele tempo. Eu não ficaria trancada aqui para sempre, mas poderia esperar um pouco antes de voltar a insistir nesse assunto que ele incomoda tanto.
O dia demorou a amanhecer, mas quando o sol nasceu, Apollo já estava de pé e se vestindo. Ele não falou nada sobre o fato de que eu já estar acordada quando levantou, também não se despediu quando saiu do quarto e eu já sabia para aonde iria. Respirei fundo passando a mão pelo rosto e afastando a irritação que aquilo me causou. Como Salandriana, meus sentimentos estavam por toda a parte. Tudo era tão intenso que me sentia sufocada com tantos sentimentos. Quando humana, as coisas que me faziam sentir melhor sempre que estava angustiada era ler ou pintar, mas desde que cheguei aqui, eu não consigo fazer nenhum dos dois. As tintas que Apollo me deu ainda estavam guardadas no armário, intocadas. Achei que um dia fosse ter a oportunidade de pintar aquele campo que fomos — os olhos dele —, mas agora, sinto que isso nunca pode acontecer.
Estava um dia bonito e ficar enfiada nesse quarto não me ajudaria. Para falar a verdade, eu estava cansada de ficar presa em casa. Não havia mais maldição ou ameaças, eu não era mais uma humana frágil, ainda assim, Apollo insistia que a cidade era perigosa. Eu não aguentava mais andar pela casa ou pelo lago, o máximo que posso ir antes que uma das sentinelas me escoltem de volta para casa. Por falar em sentinelas, havia muitas deles por toda a propriedade. Apollo se encarregou de trazer metade dos guardas das fronteiras para a propriedade, além dois que me seguiam para todo o lugar.
Uma batida tímida na porta soou e eu permitir que entrasse. Analice que usava o mesmo vestido cinza de sempre, sorriu para mim com peças de roupas que ela deixou na poltrona antes de entrar no quarto e ligar a água na banheira. Não falamos nada enquanto ela me ajudava a arrumar meu cabelo, mas quando eu estava prestes a sair, ela finalmente falou.
— Essa é minha última semana aqui — Sua voz baixa parecia carregar uma dor que não alcançou seus olhos, me virei na sua direção e ela me olhou com ombros retraídos.
— Porquê?
— A irmã e o cunhado do meu marido foram vítimas de Cassandra e as filhas gêmeas deles não tem ninguém que possa cuidar dela. Vamos nos mudar para o Reino de Verão onde elas moram para ficarmos com elas — Ela explicou. Senti meu peito se apertar ao pensar nela indo embora, mas eu podia entender os motivos.
— Espero que dê tudo certo para vocês lá — Falei caminhando até ela e toquei seu ombro, ela sorriu para mim — Sinto muito pela sua perda e do seu marido.
— Não se desculpe menina. Você salvou a todos nós e vamos ter para sempre uma dívida com você — Engoli seco desviando o olhar dela e me afastei sentindo algo em meu peito queimar.
— Sinto muito...
Antes que ela respondesse eu deixei o quarto para trás caminhando pelos corredores rapidamente. Parei alguns metros a frente com a respiração ofegante e levei uma mão até a barriga controlando o enjoou que me atingiu. Odiava ser vista como uma heroína. Eu não era a heroína altruísta que todos acreditavam. Eu teria escolhido salvar apenas Apollo naquele dia se fosse minha única opção. Eu era egoísta. Não é justo que todos se sintam gratos por uma decisão que eu tomei por conveniência.
Após controlar o pequeno ataque de pânico que começou a me atingir, eu finalmente desci as escadas, tomando um cuidado reforçado com os últimos degraus, onde eu sempre perdia o equilíbrio. Ouvi vozes vindo da sala de jantar e me surpreendi ao encontrar Andreas e Apollo conversando à mesa. Ambos pararam e me olharam quando atravessei as portas de madeira. Apollo se arrumou na cadeira e Andreas enfiou um pedaço generoso de pão na boca ficando subitamente ocupado com algo na manga de seu casaco. Caminhei até a cadeira ao lado de Apollo e observei os dois machos a minha frente estreitando os olhos.
— O que estavam cochichando? — Questionei enquanto me servia com algumas frutas.
O apetite foi a primeira coisa que me acostumei nesse novo corpo. Os sabores eram completamente diferentes dos que eu já havia provado como humana. Na primeira semana depois que voltei, lembro de ter me empanturrado de todo o tipo de comida que Analice pudesse trazer para mim e ainda assim, não me sentia cheia. Se ainda fosse humana, provavelmente teria passado mal com metade das coisas que comi naquele dia.
Os machos a minha frente se olharam e vi quando Andreas deu de ombros para o irmão que exibiu os dentes para ele. Cruzei os dedos diante da mesa observando a discussão silenciosa dos dois e quando finalmente me olharam, ergui a sobrancelha fazendo um gesto para falarem. Apollo pigarreou e Andreas bebeu da taça com voracidade o bastante para não ser casual.
— Andreas e eu vamos até à cidade resolver umas coisas hoje — Apollo deu de ombros, embora sua expressão estivesse tensa — Nada com o que se preocupar, apenas coisas do Reino.
— Posso ir com vocês? Eu...
— Não! — Olhei para Apollo quando ele falou alto em um tom assustado. Até mesmo Andreas olhou para ele incrédulo com sua reação. Minha mente vagou para o dia nos estábulos, mas eu me forcei a não pensar nisso.
— Eu estou cansada de ficar presa aqui com sentinelas me seguindo até a porta do banheiro — Olhei para Apollo com olhos suplicantes — Por favor, me deixe ir com vocês, quero ajudar na reconstrução da cidade, ajudar em qualquer coisa.
— Já falei que é perigoso demais — Ele respondeu irredutível. Olhei para Andreas, mas ele apenas deu de ombros deixando claro que não entraria nessa.
— Apollo, por favor.
Ele não respondeu a minha súplica, apenas desviou o rosto para a janela e isso já foi resposta mais do que o suficiente. Olhei para Andreas que também desviou o olhar para as suas mãos. Bufei jogando o guardanapo na mesa e sai da sala indo direto para o jardim. As sentinelas me seguiram a uma distância considerável e quando cheguei até o coreto, eles pararam a sombra de uma das árvores me observando de longe.
Eu enlouqueceria dentro desta casa, não aguentava mais ficar restrita a esse lago e a droga dos estábulos. Queria sair, conhecer as pessoas dessa cidade, respirar um ar diferente do que esse campo. Eu odiava me sentir tão presa, é como se eu nunca tivesse saído daquela cela. Fechei os olhos tentando controlar a raiva crescente dentro de mim e respirei fundo tentando afastar as lembranças daquele maldito lugar. Passos ecoaram atrás de mim e me virei vendo Andreas se aproximar timidamente. Ele se encostou na entrada do coreto e cruzou os braços olhando o lago. Desviei minha atenção dele para o lago também quando o ouvi falar.
— Precisa dar a ele um tempo...
— Tempo? Já se passaram cinco meses, Andreas. Cinco meses que eu estou presa nessa casa, que eu não dou um passo sem aqueles dois no meu encalço como sombras — Apontei para as sentinelas que desviaram o olhar. Ele suspirou e me virei para ele — Eu preciso sair de casa ou vou acabar ficando louca. Antes eu entendia, tinha a maldição e eu era humana, mas a maldição acabou e eu sou uma de vocês agora. Porque ele precisa tanto me esconder? — Ele me olhou, dor dançaram em seus olhos.
— Nos minutos que se seguiram a sua morte, Apollo gritou tanto que eu achei que ele fosse enlouquecer. Nem mesmo a morte da nossa mãe causou tamanha dor nele — Ele engoliu seco e caminhou até mim, sentando ao meu lado — Não o culpe por ter medo que aquilo aconteça outra vez, não o culpe por tentar evitar aquela dor outra vez. Eu sei que está sendo difícil para você e sei que precisa disso, mas... dê a ele tempo para se ajustar a nova realidade, para entender que não existe mais perigo e que você não irá morrer — Ele falou em tom de súplica, seus olhos refletindo o sentimento e a dor.
— Tempo é tudo o que eu tenho dado a ele. Tempo para a sua obsessão por vingança. Tempo para o seu ódio por essa droga de acordo... — Segurei o braço esquerdo coberto pelo fino tecido do vestido. Andreas desviou o olhar dele com a mesma amargura que Apollo no olhar — Mas... e quanto a mim? Quanto tempo mais vou ter que esperar? Quanto tempo mais vou ficar presa nesse lugar como uma prisioneira? Como se estivesse novamente naquela maldita cela? — Ele me olhou engolindo seco.
— Você não é uma prisioneira aqui — Ele sibilou entre dentes — Ele só... Você não apresentou seus poderes e ele está preocupado de que...
— Poderes? — Ele me olhou e piscou uma vez, como se eu devesse saber do quê ele estava falando — Eu tenho... poderes? — Questionei olhando para ele surpresa.
— Ele não te contou? — Neguei olhando para as minhas mãos, como se fosse ver o poder fluindo nelas — Droga, eu não deveria ter falado nada — Ele se levantou passando as mãos nos cabelos — Eu tenho que ir, antes que eu falei mais alguma besteira e Apollo me mate por isso.
Ele saiu antes que pudesse perguntar mais sobre essa história de poderes. Eu sabia que alguns Salandrianos possuíam poderes e outros não. Os que possuíam eram lordes e ladys de algumas cidades do Reino. Mas não imaginei que eu pudesse ter poderes também. Nos últimos cinco meses eu não apresentei nada de anormal, além claro das mudanças óbvias no meu novo corpo. As circunstâncias do meu renascimento como Salandriana era desconhecida por todos do Reino. Ninguém jamais ouviu falar de uma humana que voltou a vida como uma Salandriana e ninguém sabia explicar como aconteceu. Mas essa história de poderes era algo que nenhum de nós pensou — ou pelo meu eu não pensei — que pudesse ser uma possibilidade. Apollo parecia ter medo disso, por isso me mantinha trancada. Eu descobriria o porquê.
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Atualizado até capítulo 45
Comments
corrinha
e porque em vez da Analice ir embora não trazem as gêmeas pro reino de primavera?
2023-11-18
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