Freya...
Era quase metade do dia quando minhas irmãs e eu saímos com a pele, as presas e algumas peças da carne do animal. Antes de sair, me certifiquei de que papai estava bem e ele ainda dormia, para o meu alívio. Também me certifiquei de levar o relógio comigo, pretendia desviar a atenção de minhas irmãs para alguns vestidos e fugir até o antiquário ou joalheria para avaliar o valor da peça, mesmo que eu já tenha uma de ideia de quanto custa apenas de olhar para a peça luxuosa.
Antes de cair nessa depressão terrível, meu pai era um homem influente, um mercador muito conhecido e minhas irmãs e eu crescemos em meio ao luxo e as famílias mais ricas de Sintra. Mas depois que nossa mãe morreu de tuberculose, ele se enfiou na bebida, fez muitas dividas com gente perigosa e eles a cobraram levando tudo que tínhamos, deixando o suficiente apenas para comprar o chalé e viver por alguns poucos meses.
Laila se ressentia com nosso pai, talvez pela fortuna que ele perdeu, ela nunca superará ter que viver como pobre. Talvez pela morte de nossa mãe, que ele nem mesmo nos deixou se despedir antes que levassem seu corpo. Talvez pelo fato dele ter se fechado em seu próprio mundo e ter nos largado a sorte, embora Laila nunca tenha feito nada que ajudasse em nossa situação realmente.
Eu não me ressentia de minhas irmãs por ter que caçar, vender e providenciar comida para dentro de casa, não, eu fazia isso por amor a elas e faria de novo e de novo se fosse necessário. Mas eu odiava ver Laila destilando seu ódio contra nosso pai sempre que Ingrid preparava uma comida para ele, odiava ver ela tentar minar o amor que nossa irmã tinha por nosso pai e esse era o maior motivo para nossas desavenças.
A cidade estava praticamente vazia, poucas pessoas se aventuravam na neve, a maioria vendedores e alguns donos de lojas andavam de um lado a outro buscando clientes antes de se renderem a neve e fechar as portas. Laila logo se distraiu com vestidos que uma costureira exibia em uma grande mesa de madeira escura posta próximo à estrada, ela se encantara com alguns tecidos e chamou Ingrid para opinar.
Laila não confiava em meu bom gosto para roupas, dizia que eu era um pavor para escolher peças descentes, embora eu estivesse bastante satisfeita com minhas leggings marrom escuro e minha camisa verde-musgo. Ingrid geralmente não se metia, mas sempre tentava me indicava vestidos de tecidos nobres da época que ainda tínhamos status. Eu os odiava. Não por serem vestidos e talvez um pouco por conta das cores, mas porquê não eram práticos, tanto nos afazeres da casa quanto na floresta, então, me limitava ao de sempre, mesmo quando Laila torcia o nariz ao me ver chegar em casa ou sair do quarto.
— Enquanto estão aí, vou tentar vender essas coisas. Encontro vocês em meia hora na praça principal.
Elas apenas concordaram sem se dar o trabalho de olhar em minha direção. Eu imaginei que seria difícil despista-las e já estava imaginando as perguntas e olhares curiosos, mas isso não aconteceu e agradeci mentalmente apressando meus passos antes que decidissem se importar.
Parei em uma joalheria que era famosa na região por pagar bem por peças que de fato valiam. O lugar estava vazio quando entrei e agradeci mentalmente por isso também. Caminhei até o senhor com feições cansadas e expressão pouco acolhedora, ele também me examinou conforme me aproximei do balcão e eu podia jurar ter visto um pequeno desdém dançar por seus olhos.
— Bom dia senhor — Tentei ser o mais simpática possível, isso geralmente me garantia bons acordos. O homem não respondeu, o que me fez entender que seria do jeito difícil então. Tirei o relógio do bolso e segurei na sua frente — Pode me dizer se isso vale alguma coisa?
Os olhos do homem se arregalaram como se ele estivesse vendo um fantasma, a expressão dura se tornou surpresa e até espanto. Ele pegou o pequeno relógio dá minha mão é só agora notei haver um símbolo no relógio, uma rosa, e isso me fez relembrar todas as histórias que as amas contavam sobre o outro lado da muralha quando éramos pequenos, ao que aquele símbolo remetia. Prendi a respiração desejando do fundo do meu coração que o homem não soubesse e não me perguntasse onde eu teria conseguido um relógio do Reino de Primavera. O homem analisou o relógio em silêncio, virou e revirou ele em seus dedos calejados antes de me olhar de cima a baixo, como se analisasse a portadora da joia antes de perguntar o que estava bem claro em sua expressão desde que vira a joia.
— Onde conseguiu isso, menina? — Uma pergunta simples e fácil de desviar. Na verdade, era fácil fingir que eu não tinha matado uma pessoa a poucas horas atrás, pior, era fácil fingir que o corpo dele ainda não estava naquela floresta, jogado sobre a grama e sobre a neve esperando por um enterro digno que eu prometi e não fui cumprir.
— Achei perto do bosque — Ele me analisou, obviamente lendo a mentira estampada na minha cara. Minhas irmãs sempre disseram que eu era uma péssima mentirosa e talvez eu seja, porque eu tinha certeza que aquele homem lia isso na minha testa.
— Tem andado por bosques perigosos garota — Ele alertou. Um aviso baixo, relaxado, quase preguiçoso, mas com um tom afiado e misterioso que deixava subentendido o que ele de fato queria dizer com aquilo. O homem escorreu atrás do balcão de mateira com topo de vidro e apanhou um caderno em uma escrivaninha do outro lado abarrotado de papéis e peças, e pedras brilhantes — Essa é uma joia de colecionador, ouro puro entalhado com ametistas, qualquer outro tentaria te enganar, mas eu serei sincero. — Ele pegou o relógio e colocou na minha mão — Isso aqui vale mais que minha loja inteira, mais que qualquer um em Sintra possa pagar, sugiro que tente do outro lado do continente.
Olhei para o relógio em minha mão e o coloquei no bolso rápido demais para ser casual. Olhar para aquelas ametistas me fazia lembrar dos olhos verdes do homem que eu tirei a vida, ou da coisa, seja lá, o que ele for. Respiro fundo passando a língua pelo lábio inferior que estava gelado como uma pedra de gelo e afastei aqueles olhos do meu pensamento voltando minha atenção para o vendedor.
— Obrigada pela sinceridade — Falei o mais suave que pude e virei as costas, mas antes que eu pudesse sair o vendedor disse:
— Menina, seja lá de quem é a joia que encontrou no bosque — Ele parou e me analisou por um breve segundo — Eles viram buscar — As palavras me fizeram enrijecer o corpo e um arrepio desceu pela minha coluna. Não respondi aquilo, apenas abri a porta e saí.
As ruas estavam ainda mais vazias, alguns comércios estavam fechando e apenas os mais persistentes vendedores permaneciam ali chamando clientes. Atravessei a rua e caminheiro até um vendedor de peles que exibia sua mesa cheia das mais variadas cores e tamanhos. Olhei para o homem que já exibia um enorme sorriso ao perceber o que carregava presa as minhas costas, sorri de volta e me aproximei cumprimentando.
— Bom dia...
...★...
Já eram quase três horas quando finalmente voltamos para casa. O dinheiro da pele nos garantiu farinha, grão e leite pelas próximas duas semanas e as presas foi o bastante para comprar os vestidos que Laila e Ingrid tanto queriam, com o pouco que sobrou, consegui comprar para mim um par de luvas forradas e fofinhas e sapatos novos que me seriam úteis nas manhãs geladas em que saiu para caçar. Aproveitei minha ida a cidade para ir a um armeiro falar sobre a madeira ou o aço da lança que matou aquele homem mais cedo.
O armeiro garantiu que a madeira em minha mão era carvalho-vermelho e não de bétula como achei que seria e o aço era comum, logo, acredito que talvez está madeira possa mata-los, ou talvez eu tenha tido sorte. Deixei as bolsas sobre a mesa e sai sem dizer as minhas irmãs aonde iria. Eu tinha uma coisa para resolver. Uma promessa para cumprir. Peguei a pá que Ingrid usava na primavera quando estava cuidando dos jardins e segui direto para a escuridão da floresta.
Meu plano era simples, porém bem elaborado, ir até aquela clareira, enterrar o desconhecido que eu matei e se tudo desse certo eu chegaria em casa antes do jantar e principalmente, antes da tempestade que se aproximava. Conforme entrava na floresta, senti meu estômago se revirar e podia jurar que a qualquer momento eu colocaria para fora o pedaço de bolo que a dona da lojinha na esquina ofereceu para mim e minhas irmãs quando passamos perto.
A floresta estava silenciosa. Mais do que costuma ser, até mesmo durante o inverno, nem mesmo um farfalhar de folhas, embora o vento estivesse forte o bastante para fazer a capa do manto pesado que eu usava voar. Conforme me aproximava da clareira, senti meu coração pesar em meu peito, não luto, mas culpa. Eu nunca havia tirado uma vida antes, não uma que não fosse animal e naquela manhã eu apenas atirei uma flecha naquele homem, apenas porque não consegui ficar quieta diante do que via. Parei de andar subitamente quando me dei conta de que estava exatamente no lugar que tudo aconteceu essa manhã e eu sabia ser ali, apenas pela mancha de sangue que ensopava o chão e manchava de um vermelho vivido a neve e a grama onde o homem estivera naquela manhã. Mas ele não estava mais ali.
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Atualizado até capítulo 39
Comments
corrinha
amando a história acho que
2023-11-12
1
corrinha
acho que essa zinha vai aprontar pra ser rica novamente
2023-11-12
1
corrinha
essa Laila parece ser muito entojada ingrata
2023-11-12
2