Nenhum castigo faz Daisy Kim implorar

Vanglorio-me ao ver a cor vermelha dominar a face, sinal de que está envergonhado, enraivecido e, principalmente, com o seu maldito orgulho ferido. Bem, não posso julgá-lo por ser orgulhoso demais. Entendo o quão difícil pode ser admitir o próprio erro e pedir perdão. Quantas vezes tive que me desculpar, sendo que sequer tinha feito alguma coisa!?

Exatamente como o asiático, senti o calor em minhas bochechas, o coração apertado e queimando de dentro pra fora, movido pela vontade de tacar o foda-se; a mente repleta de palavrões que nunca seriam pronunciados em voz alta, pelo menos, não deveriam. Embora eu tenha xingado àqueles que me constrangeram, confesso que estou gostando de constranger esse babaca arrogante, quem realmente errou. Gosto de assistir a seu peito estufado, as veias à mostra e o maxilar travado, cerrando os dentes. Assustá-lo faz com que meu ego aumente e, inexplicavelmente, traz uma sensação de poder. Para a minha sorte, dessa vez, não estão me intimidando. Na verdade, suas tentativas são todas falhas.

A escuridão em seus olhos soando tão vaga e inexpressiva quanto de um drogado, e deduzo que, com a quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas, o coreano não se lembrará de nada que aconteceu hoje. Uma pena, pois eu queria que lembrasse de mim. Imagino se o mesmo frio que percorria as minhas entranhas está percorrendo os ossos dele agora, refém de um medo súbito, que deixa suas pernas igualmente trêmulas. Mas, não.  Ele não treme, nem nada do tipo, apenas aparenta estar apreensivo. Lógico, não quer se explicar para a polícia ou um tribunal, ninguém nunca quer.

Olho o corredor caindo aos pedaços, que embrulha o estômago; as paredes podres e o chão sujo fedem a quilômetros de distância.  Nas escadas, pilhas de lixo cobrem quase todo o piso. Diante do cheiro, eu torço o nariz, visivelmente incomodada. Não funcionando, resolvi tampá-lo com a mão esquerda enquanto a outra tocava a campainha encardida do apartamento de número 12.

Demora uns minutos até que escuto passos se aproximando, preguiçosos e lentos. A porta finalmente abriu, revelando uma senhora de cabelos brancos, vestido azul florido e pantufas brancas, rasgadas de tão velhas. As íris nebulosas e cinzentas fixas em mim, surpresas pela minha repentina aparição.

ㅡ Vovó.ㅡ Sussurro, o apelido com um gosto estranho em minha boca, e engoli a seco, sem saber se procurá-la foi mesmo o certo.

ㅡ Daisy.ㅡ Meu nome saiu distante, dito por uma estranha para outra.

Nós duas não sabemos como reagir, desconfortadas pela tensão iminente que se estende desde o acontecido com papai. Eu pisquei uma, duas, três vezes. Espero minha avó abrir um sorriso contagioso, vir apressada me abraçar enquanto diz o quão saudosa ficou de sua netinha. Contudo, nada acontece. Ela não mexe sequer um músculo, estática, feito estivesse paralisada.

ㅡ Posso entrar? ㅡ  Enfim, perguntei, vencida pelo cansaço e dolorida pelas bolhas nos pés, devido à caminhada longa.

A mulher ㅡ provavelmente, casa dos setenta anos.ㅡ murmurou algo incompreensível, afastando o corpo e deixando a entrada livre. Agradecida, adentro a sala, cujo cômodo é do tamanho do meu banheiro. Quadros ㅡ a maioria sobre o catolicismo.ㅡ enfeitam o local; as molduras douradas protegendo o veludo e os vidros que compõem-nos.  Sobre os armários e mesa de centro, pequenas estátuas de anjos refletem a luz solar, deixadas ao lado de um relógio antigo. Escuto o tic tac soar como uma canção de ninar, abafado pelo som das preces de Santa Maria, que passa na rádio religiosa.

A cozinha, apesar de minúscula, encontra-se mais organizada do que as minhas caixas coloridas, onde guardo os discos de vinil. Os móveis simples, mas elegantes, igual à louça no escorredor.

Por livre espontânea vontade e sem nenhum convite, escolhi descansar em um sofá preto, encostado na parede oposta à da televisão, que funciona com o uso de antenas. Logo, a coreana repousa sobre a mesa de jantar, fazendo menção em pegar o maço e o isqueiro para acendê-lo. Pensei em protestar contra, enjoada só de lembrar do odor horrível. Contudo, decidi não interferir.

ㅡ Por quê veio aqui? ㅡ É a primeira coisa que diz, colocando um cigarro na boca.

ㅡ Precisamos de ajuda.ㅡ Sou direta, com o olhar fixo em um ponto qualquer.

ㅡ Você ou sua mãe? ㅡ Dessa vez, sinto suas órbitas astutas avaliarem as minhas expressões, sorrindo sarcástica.

ㅡ Nós duas.ㅡ Engulo a seco, nervosa.

 Os lábios enrugados e finos fazem um bico de desgosto e meus dedos apertam a manga do moletom amarelo que uso. Prendo a respiração, esperançosa. Não, desesperada.

ㅡ Por favor…ㅡ Imploro, percebendo que negaria qualquer pedido que envolvesse minha mãe.ㅡ Ele vai matá-la.ㅡ Soltei, as lágrimas caindo ao lembrar dos frequentes gritos agudos.

ㅡ Sinto muito.

O tom agudo se mistura ao grave, o rosto enrugado agora é um borrão, que dá forma a uma figura masculina, e observo o cenário desaparecer aos poucos, junto dos meus fragmentos de memórias, às quais tenho dúvidas se elas realmente aconteceram ou se são somente invenções da minha mente, fértil e doente demais para separar a realidade da fantasia.

ㅡ Uhum, falta prática.ㅡ Arrumei a postura, voltando a zombar do homem à minha frente, focada em segurar o riso. ㅡ Mas, vou me contentar com pouco hoje.

Ele parece resmungar baixinho, principalmente quando enfatizo a última palavra, e mesmo que eu não tenha intenção nenhuma em revê-lo, deixo-o pensar o contrário, pois gosto de acompanhar suas feições; apavorá-lo, nem que, minimamente.

Satisfeita, retornei para o apartamento, onde a falta de ar parece ainda mais intensa do que antes. Escancarada na porta, sinto as pernas e as mãos trêmulas, o coração apertado. O desespero arrebenta todas as barreiras assim que minha garganta fecha, ficando impossível manter a calma e pensar no quê fazer. De repente, um medo avassalador me domina, trazendo a morte para muito perto.

Viajo, no intuito de esquecer que não possuo ninguém para chamar. A casa enorme, estupefata pelo vazio que o branco causa e pela solidão, escondida atrás de vinhos caros, garrafas d'água, limões e redes sociais, onde finjo ter uma conversa decente entre estranhos, que chamo de família, me sufoca. Tudo agora parece sufocante, desde o silêncio até os gritos internos.

Novamente, estou pulando em um trampolim, sem controle nenhum das minhas ações. O voo infinito acorda as borboletas que moram dentro do estômago, e desejo aterrissar, manter meus pés longe de qualquer avião para sempre. Porém, os segundos viram minutos; os minutos, horas, e uma vida, a eternidade.

Eu pareço agonizar sem fim, cogito a opção de Deus estar me castigando. Pelo quê? Não faço ideia. Talvez, porque sou covarde e mentirosa ou, talvez,  por tê-lo abandonado; esquecido completamente de sua existência. Não, não esqueci dele. Na verdade, apenas deixei de acreditar. Então, talvez, só talvez, tenha sido por tudo isso. Um castigo, em que viver eternamente torna-se uma tortura a cada dia. 

Às vezes, mal consigo resistir a dor e eu até imploraria para que ela passasse logo. Contudo, Daisy Kim não implora.

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Atualizado até capítulo 41

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