Capítulo 11

Todos estavam assustados, diante do jardim, principalmente depois do garoto mudo ter deixado claro que aquilo não era coisa boa.

— O quê ele sabe sobre isso aqui? — perguntou Laura. – E porquê ele sabe e nós mão?

— Ele é o mais velho na casa. — respondeu Charlotte. — E apesar de não falar, já ouviu muita coisa por aqui. Por isso é natural que saiba o que significa.

— E o quê significa, afinal?

Eu e Charlotte nos olhamos, só então decidindo que era o momento de contar a todos o que possivelmente ia aconter. Ela então contou tudo. E no final, todos ficaram apavorados, principalmente Laura que temia ser mandada para o outro lado contra a própria vontade.

— Não posso ficar aqui e desaparecer junto a casa. Tenho que esperar meu marido! — dizia ela.

Quando eu estava prestes a falar algo para tentar acalma-la, ela simplesmente desapareceu, assim como todos os outros. No primeiro momento pensei que haviam ido embora por medo do que contamos, mas entendi quando avistei, em meio as rosas, aquela mulher se aproximando.

— Chegou o momento — disse ela me fazendo temer o quê aquilo significava.

— Assim? Agora? — Senti o desespero me consumindo.

— Este é o momento de vocês entenderem o que às trouxe até aqui.

...MEMÓRIAS DE ALICE...

...(Em uma outra vida)...

Tudo começou de maneira sútil, em meio a meu trabalho, fazendo a limpeza dos quartos do casarão. Ela sempre surgia iniciando conversas. E foi assim, entre assuntos aleatórios sobre minha vida miserável como filha de uma serviçal, e ela sobre como era a Europa, que surgiu uma amizade e ligação inexplicável.

Desde o princípio sabíamos que era errado, para os outros, mas para nós parecia muito certo.

Minha mãe não demorou a notar nossa amizade, por isso tentou de todas as formas me convencer a me afastar, mas eu estava cada vez mais tomada por aquele sentimento.

Corríamos pelos corredores como duas meninas brincalhonas, rindo de nós mesmas. Éramos felizes naqueles simples e breve momentos, quando a casa estava parcialmente vazia.

Mas se uma simples amizade era um erro, imagine só o que viria a seguir.

Quando a amizade evoluiu, foi um choque para ambas.

Após seu primeiro toque em minha mão, nós ficamos mais de uma semana sem nos encontrarmos pelos quartos ou corredores, ambas temendo o quê aquilo significava, mesmo que em nosso íntimo já soubéssemos o que realmente estava por trás de cada troca de olhares.

Quando a saudade apertou e falou mais alto, nós tínhamos certeza do que queríamos, por isso não houve mais nada que nos freiasse.

Nos amamos incontáveis vezes, escondidas em todos os lugares possíveis e impossíveis daquele casarão.

Ela me chamava de princesa e eu realmente me sentia uma. Me fazia sentir especial, como jamais me senti antes. E eu a amava como jamais imaginei amar naquela vida.

— Vamos minha princesa, comandará nossa dança hoje — dizia ela estendendo a mão para mim que sorri sem jeito.

— Não me considero tão boa ainda.

— Vem cá, coloque os pés sobre dos meus.

— Acabarei por machuca-la — falei dando um passo atrás, mas fui puxada novamente por ela que uniu nossos corpos, me fazendo rir. — Suas saias não ajudam.

— Nao seja por isso... — Ela afastou-se rapidamente e começou a retirar as próprias roupas. — Vamos, ajude-me!

— Louca! — Rindo, comecei a ajudar a retirar as saias, até que ela ficasse apenas com as roupas de baixo.

Me posicionei com os pés encima dos dela e assim começamos a rodopiar pelo salão, rindo sem parar, até nos chocar contra o sofá e cairmos no chão, gargalhando.

Ela rolou para cima de mim e encarou meus olhos com sua intensidade única.

— Amo-te, de cima a baixo e para todos os lados.

Rimos.

— Amo... — Fui calada por um beijo.

Impulsividade era seu nome do meio e era o que eu mais amava nela.

Foi tudo tão intenso que não nos demos conta de que estávamos baixando a guarda, até o dia em que fomos pegas pelo pai dela.

Eu vi o inferno a partir dali.

Toda minha família estava condenada.

Minha mãe, que trabalhava na cozinha. Meu pai, que também era empregado deles, assim como meus dois irmãos que eram ainda jovens e inocentes. Todos foram condenados a forca e eu seria queimada em praça pública. Eles nos acusaram de roubo, entre outros absurdos, para esconder a verdade por trás.

Nós fomos enjaulados como animais.

Eu só queria morrer antes que meu destino se cumprisse.

Antes da noite em que aconteceria nossa morte, Charlotte foi até mim. Eu implorei de todas as formas que ajudasse meus pais e irmãos, afinal eles não tinha culpa de nada, mas ela disse que só poderia ajudar a mim.

Seu amor era egoísta e naquele momento me rasgou por dentro. Ela me ofereceu cavalo, ouro, tudo necessário para ir embora e, segundo suas palavras; recomeçar minha vida.

Mas que vida?

Mesmo totalmente sem esperanças, aceitei sua ajuda.

Quando a noite caiu, antes de minha família ser levada para a praça, um homem me levou para longe dalí. Na minha cabeça, eu ia voltar e ajudá-los, mas fui levada para o meio da floresta onde fui trancada em uma cabana, segundo ele eram ordens de Charlotte, para que eu ficasse segura até que os capangas parassem de procurar pela redondeza.

Mesmo assim consegui fugir. Cheguei a tempo de ver toda minha família com sacos na cabeça, pendurados na praça em meio a uma plateia que gritava satisfeita.

O ódio me dominou a partir dali. Segui para o casarão onde conhecia todos os cantos escuros, passagens secretas e o principal, onde haviam armas.

No meio da noite, enquanto eles dormiam, dei fim a vida de toda sua família, deixando por último ela, mas ao entrar em seu quarto a encontrei pendurada em uma corda, feita de lençol.

O meu ódio e amor se entrelaçavam e me dominavam de uma maneira avassaladora.

Desesperada, tentei retirá-la daquela posição, na esperança de que ainda estivesse viva, mas ao segurar seu corpo em meus braços, percebi que não havia mais o que ser feito. Chorei durante horas, agarrada a seu corpo sem vida, até decidir fazer a única coisa que me restava.

Cravei em meu peito um punhal, dando um fim a aquela miserável vida.

...PRESENTE...

Eu podia sentir, de forma vivida, a dor daquelas lembranças. Era como se aquilo tudo ivesse acabado de acontecer.

Não sei por quanto tempo chorei até que finalmente pudesse voltar ao meu presente. A minha realidade.

— Apesar de tudo, Charlotte tinha um bom coração, mas foi corrompido pelo ódio pela própria família — disse a mulher. — A verdade, é que você não matou os pais dela, Alice. Charlotte havia os envenenado, logo depois tirou a própria vida. Antes dela atravessar, lhe foram apresentadas duas alternativas: travessar para o outro lado com a certeza de que nunca mais suas vidas voltariam a se cruzar, ou ficar aqui, conduzindo almas, sem lembrar de nada do que aconteceu, até que pudessem se encontrar novamente.

— Você escolheu ficar... — falei olhando Charlotte que até então estava sem esboçar nenhuma emoção.

— Você também escolheu manter suas vidas seguintes atreladas a dela, por isso a servidão, assim como no princípio, quando sua família servia a ela.

— Minha família... Ele morreram....

— Na verdade, Charlotte conseguiu salvar seus irmãos, em troca colocou outras crianças inocentes no lugar deles. Agora em uma linguagem humana, Charlotte já cumpriu sua pena. Mesmo sem lembranças ela se mostrou capaz de amar novamente você. Recuperando tanto as memórias quanto os sentimentos que um dia abriu mão. Cabe a ela decidir novamente se levará ou não tudo isso para o outro lado, ou dará um fim ao destino que entrelaça voces duas..

Meu coração parecia a ponto de falhar, eu não me sentia capaz de lidar com tudo aquilo, mas precisava.

Tudo ainda estava vivido em minha memória, era como se eu ainda pudesse sentir aquele punhal em meu peito. E como se todo o amor que um dia senti, estivesse naquele momento pulsando e fluindo junto com o meu sangue, se espalhando em minhas veias.

— Se houver outra vida... — Toquei a mão de Charlotte que me olhou — Eu não quero esquecer.

— Alice...

— Eu entendo se quiser esquecer tudo isso. Você vai ter a chance de finalmente se desconectar desse passado e quem sabe viver uma boa vida na próxima. Eu também quero ter uma vida comum, mas... O que sinto, não quero perder. Eu não pude viver nada com você agora, nem antes. Sei que pessoas se machucaram por causa desse sentimento, mas foi no passado e nós já pagamos por isso.

— Quem disse que desejo esquecer? — Ela me surpreendeu segurando minha outra mão e apertando ambas. — Quero viver com você um dia esse sentimento, da forma mais doce e pura possível. Vou levar comigo cada lembrança sua.

Minha garganta começou a fechar.

— Então esse é o nosso fim? — perguntei, parando de ignorar a presença daquela mulher.

— Esse é o momento de Charlotte partir. Você não estará mais ligada a servidão, assim como seu pai.

— Meu pai? Onde ele está?

— Está bem. Eu o mantive seguro para que pudesse cumprir seu destino. Quando Charlotte travessar, ele terá os próprios sentimentos de volta.

— E quanto aos outros? — Charlotte perguntou

— Eles ficarão bem. Então, vamos acabar logo com isso? — Ela sorriu.

Meu coração deu um pulo no peito. Apertei as mãos de Charlotte, que ainda segurava as minhas e me puxou para seus braços.

— Eu prometo que não vou te esquecer e vou te encontrar onde quer que esteja — disse ela.

— Eu também não vou te esquecer. — Em meio ao choro e soluços, aos poucos fui parando de sentir os braços dela ao meu redor. — Eu te amo — sussurrei.

Me afastei desesperada e vi seu corpo desaparecendo diante de meus olhos, pude notar seus lábios pronunciando algo que já não fui capaz de ouvir, até que ela sumiu por completo.

— Você e seu pai esquecerão tudo — disse a mulher.

— Mas eu não quero esquecer! — falei em meio as lágrimas.

— Quando chegar seu momento de travessar terá suas memórias de volta e poderá decidir se quer ou não se desfazer delas, mas nessa vida, você está livre.

Ela sumiu, assim como tudo ao meu redor começou a desaparecer e aos poucos também todas as lembranças do que vi e vivi desde aquele dia nublado.

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Comments

Rita Ribeiro

Rita Ribeiro

rapaz do céu

2023-11-30

1

Silvia Galdino

Silvia Galdino

nossa parabéns
alguém me da mais uma caixa de lenço

2022-12-27

1

Ju Sato

Ju Sato

Uau, isso sim é uma revelação chocantemente tristi! Choremos! (Só a autora pra fazer algo triste ser terrivelmente bom )

2022-11-23

3

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