Capítulo 03

Eu pensava que só mesmo uma festa com os amigos de Íris para me ajudar a lidar com toda a loucura que aconteceu naquele dia, mas nada parecia me deixar calma e esquecer aquele par de olhos que estavam sempre em minha memória.

Na minha mente, ela surgiria de todos os lados, a qualquer momento.

— Preciso sair, vou tomar um ar. Aqui tem uma nuvem de maconha que está me sufocando — falei o mais próximo possível do ouvido de Íris, que apenas confirmou.

Saí de dentro da casa e chegando no gramado da frente finalmente pude respirar fundo. Me perguntava se devia ou não sentar ali no chão, quando barulhos de tiros vieram de dentro da residência.

Assustada, trouxe a mão ao peito, ouvindo também a gritaria que vinha de lá.

Logo algumas pessoas saiam pela porta da frente e outras pelas janelas, desesperadas. E eu estava praticamente paralisada devido o susto.

— Alice? — Ouvi ao meu lado Matheus, um carinha da roda de amigos de Íris. — O que eu faço?

— Quê? — Meus olhos desceram até sua barriga, onde havia uma imensa quantidade de sangue. — Meu Deus! — Olhei ao redor e as pessoas passavam correndo de um lado para o outro. — Você precisa de uma ambulância agora!

— Alice? — gritou Íris se aproximando.

— Íris, o Matheus...

— Sim, o Paulo matou ele, Alice!

— Ele precisa de uma ambulância. — Olhei na direção de Matheus que ainda estava de pé, ensanguentado, me olhando.

— Já chamaram, mas ele tá estirado no chão da cozinha, os meninos confirmaram que ele não tem pulso. O Paulo fugiu!

— Mas ele... — Novamente olhei de um ao outro e Íris não parecia realmente vê-lo alí, assim como eu.

— Vamos embora, não quero tá aqui quando a polícia chegar!

Íris saiu correndo.

— O que eu faço, Alice? — Matheus perguntou

Eu estava em choque.

— O que tá acontecendo? — Dei dois passos atrás, antes de correr seguindo Íris, mas esbarrei em algumas garotas que saíam e quando virei, lá estava Matheus novamente, ensanguentado.

— O que eu faço?

— Como vou saber? Vai pra luz! Me deixa! — Voltei a correr até chegar na calçada da casa, onde avistei Íris saindo com o carro em alta velocidade. — Aquela desgraçada me deixou aqui.

— Alice? — chamou novamente Matheus.

Passei as mãos pelos cabelos, desesperada.

— Já sei, aquela... Charlotte! Droga, eu não tenho o número dela.

— Me chamou?

Arregalei os olhos quando ela surgiu diante de mim, segurando uma garrafa e uma taça, o que me fez franzir o cenho.

— Como você...

— Temos ligação direta. — Ela encarou Matheus, que olhando melhor, de fato já me parecia estar morto. — Muito bem pequena Alice, está começando a entender seu trabalho.

— Meu trabalho? Você quer dizer que... — Um dos caras que saiam desesperados passou por mim esbarrando.

— Sai do meio maluca! — gritou ele.

— Presta atenção seu babaca, imbecil! — gritei de volta.

— Quer que eu quebre as pernas dele? — perguntou Charlotte.

— Você pode fazer isso?

— Claro que não — respondeu me fazendo revirar os olhos. — Tudo bem. Vamos lá? — disse ela para Matheus. — Quer vir com a gente?

— Eu quero que você tire ele de perto de mim.

Em um piscar de olhos os dois simplesmente desapareceram.

...(...)...

— Ok, recapitulando. Você é tipo um ceifeiro — falei enquanto caminhava pela sala, diante de Charlotte, que sentada na poltrona parecia nem prestar atenção a mim. — É responsável por mandar as almas para seja lá onde for. Digamos que entendi essa parte. Agora, você não me explicou o motivo de meu pai, ou melhor, minha família ser condenada a servidão e porquê eu tenho que ver fantasmas por aí. Por que só agora estou vendo essas coisas?

— Não expliquei porque não sei o motivo de ser exatamente a sua família. — Charlotte circulava a taça com aquela bebida vermelha que balançava de um lado para outro.

— Como não? Você mesma disse que tem quase um século de existência. O minimo que precisa fazer é me explicar toda a história direito!

Ela levantou e caminhou em minha direção. Eu estava em pé, com as mãos na cintura em uma postura que mudou completamente devido sua repentina aproximação.

— Para ser bem sincera, não lhe devo explicações, mas como você é a primeira a chegar até mim de maneira prematura, achei necessário contar ao menos o básico.

Engoli em seco sob aquele olhar.

— T-tudo bem — falei. —  Mudando de assunto. Quem é aquela moça que me recebeu naquele dia?

— A Laura?

— Ela também é sua serva?

— Ela é apenas uma alma presa a um passado trágico — explicou.

— Uma alma... Ela está morta? — perguntei horrorizada.

— Há uns dez anos, eu acho.

— Mas, mas... Você não devia manda-la para o tal outro lado?

— Como eu disse, ela está presa a um passado trágico.

Fiquei pensando sobre aquilo, ainda tentando entender.

— Agora voltando ao que interessa. Tudo o que contei é seu destino e não há como fugir dele, não importa onde vá. Recorrer a mim será inevitável, você viu. A partir do momento em que seu pai desapareceu, cabe a você trazer as almas perdidas até mim.

— Eu realmente vou ficar vendo pessoas mortas? — Era difícil acreditar e mais ainda aceitar. — Sou como uma ponte que trás os mortos até você? Como posso viver assim?

— É aí que entra a parte mais importante. Se aceita um concelho, deve manter distância de todas as pessoas com quem tem algum tipo de ligação. Seja amizade ou relacionamento amoroso.

— Por que?

— Pense bem, você tem ligação com os dois mundos. E nesse mundo existem espiritos dos quais não vai gostar de encontrar, porém é inevitável. Eles não podem te fazer mal, não tão facilmente, mas são cheios de artimanhas e vão querer arrancar de você alguma coisa, sendo assim, podem usar pessoas indefesas próximas a você.

Me peguei pensativa diante de suas palavras.

— Você quer dizer que... — Caminhei pela sala, indo até a janela onde me apoiei, buscando forças para suportar aquele sentimento que crescia em meu peito. — Meu pai não voltou para proteger a mim e minha mãe?

— Não faça isso. — Seu tom era de alerta.

— O quê? — Funguei, sentindo uma lágrima rolar por meu rosto.

— Ficar triste, chorar...

— É inevitável. — Tentei secar a lágrima com as costas da mão. — Até parece que se importa. Você é a causa disso tudo!

— Eu de fato não me importo. Porém, posso sentir tudo o que está sentindo agora —  explicou. — E garanto que é um dos piores sentimentos humanos.

Só então virei para encara-la.

— Você... Sente? Como?

— Sentindo — falou, indo até o aparador no canto da sala, onde encheu novamente a taça. — Explicando melhor, eu sou como uma esponja de sentimentos. Quando uma alma está prestes a fazer a passagem absorvo dela todas as dores, todos os sentimentos que poderiam vir a interferir naquele momento e na outra vida.

— Isso parece ruim.

— Não é o que vocês chamariam de bom, mas é rápido. Logo tudo se desfaz. Quando estou diante de você, uma humana, posso sentir tudo o que sente. Alegria, dor, entre tantos outros. Isso sim é bem pior, porque seres humanos carregam sentimentos constantemente. Eles não dão uma trégua. Por isso me mantenho o mais longe possível. Nesse exato momento você está tão concentrada no que digo, mas ainda sinto sua tristeza. E acredite, seu pai passou longos anos carregando dor dentro de si. Não foi agradável tê-lo por perto, até que finalmente estivesse disposto a se livrar disso.

— Eu-eu sinto muito.

— Por que?

— Porque isso parece horrível. Eu sequer consigo lidar com meus próprios sentimentos, imagina só ter que suportar também o dos outros.

— Bom, pelo menos eu não os tenho.

— Como assim?

— Eu não sou humana, Alice. Então, não tenho sentimentos. Simples.

Parecia simples ouvindo, mas ainda não me parecia nada bom.

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Comments

Silvia Galdino

Silvia Galdino

presa nessa história

2022-12-26

4

ansiosa por mais

2022-11-19

1

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