Capítulo 10

Virei na cama sentindo um cheiro diferente, parecia incenso.

— Acordou? — disse Íris, que logo sentou na ponta da cama colocando uma bandeja com café ao meu lado. —  Você apagou por mais de dez horas. Não tem dormido direito? Entendo que a morte da Marcela deve ter te afetado, mas precisa se cuidar. Está até mais magra.

— Desculpa, não queria incomodar. —  Sentei enquanto falava.

— Não está incomodando. E eu não tenho o coração tão frio quanto o seu que terminou comigo por mensagem.

— Desculpa.

— Para com esses pedidos de desculpa, isso faz meses, então só come.

— O que é aquilo? — Apontei para uma mesa no canto.

— São meus amuletos, afastam espíritos. Você nunca tinha entrado aqui no quarto de hóspedes, né?

Confirmei, pegando o copo de suco.

Bom, se era eficaz ou não eu logo descobriria, afinal pedi a ela que me deixasse ficar or um tempo.

Fiquei durante um dia e já estava a ponto de enlouquecer tentando achar saídas para os meus problemas, que infelizmente não eram apenas meus.

— Até quando ficará escondida aqui? — Me assustei quando ouvi a voz no canto do quarto.

Aquela mulher estava lá, parada, segurando um dos tais amuletos de Íris.

— O que faz aqui? Como sabia onde estou?

— Acha mesmo que essas pedrinhas são suficientes para manter aquele bando de espíritos que andam te rondando?

— Então como...

—  Eles não te acharam aqui graças a mim. Decidi te dar um tempo livre.

—  O que você sabe? — perguntei, levantando da cama rapidamente.

— Que você e ela estão com medo de um destino do qual é impossível fugir.

— O nosso destino é ela desaparecer e eu ser a causadora disso? E quanto ao jardim?

— É inevitável. Nesse exato momento ele está ficando cada vez mais vivo, exatamente porque você sumiu. Sabe o quanto ela está preocupada por não saber onde você está? Confesso que dei um empurrãozinho ao te deixar fora do radar por algumas horas e isso foi suficiente para fazer os sentimentos borbulharem no íntimo de Charlotte, que já não é mais capaz de manter o feitiço em que esteve presa por todo esse tempo. Você acendeu nela uma chama que há muito tempo estava apagada. Agora não tem mais volta.

— Não quero que tenhamos um destino trágico. Por que tem que ser assim?

— Ainda não é o momento.

— O que você é? Um cupido do mal, por acaso?

Ela riu.

— Eu disse, só mantenho as coisas em ordem, por aqui.

Ela sumiu mais uma vez, me deixando confusa.

Eu queria ir o mais rápido possível até o casarão, temendo que meu sumiço tivesse acelerado as coisas no jardim, mas assim que coloquei os pés para fora da casa de Íris me deparei justamente com Charlotte.

— Como conseguiu desaparece por mais de 24 horas? — perguntou ela assim que me viu.

As coisas que aquela mulher disse ainda estavam em minha mente, me deixando dividida entre o que dizer e o que fazer, então decidi me deixar levar apenas pelo que senti. Me aproximei dela rapidamente e abracei seu corpo, não demorando a senti-la retribuindo.

— Não tem como fugir. — Me afastei para encara-la. — Você ficou preocupada com meu sumiço? Realmente sentiu isso? —  Ela confirmou. — Estou me sentindo tão culpada...

— Ei, pare com isso. Não há como mudar ou fugir.

Confirmei. Então era isso. Eu acabei de descobrir que ela estava começando a sentir algo, mas já com a certeza de que seria nosso fim.

Sem pensar em mais nada, me estiquei para alcançar os lábios dela, onde depositei um beijo rápido, mas quando o fiz não quis mais afastar. Acabei levando as mãos para seu rosto enquanto mantinha minha boca junto a dela, dando início a um beijo que foi correspondido.

Eu podia sentir meu corpo inteiro reagindo ao movimento de seus lábios junto aos meus. Era como se eu estivesse vibrando por dentro e flutuando.

Como em tão pouco tempo eu podia sentir algo assim? Não havia outra explicação senão a de que nós vivemos outras vidas e que aquele sentimento era o resultado de

algo muito maior.

De volta ao casarão eu me sentia estranha, mas com uma pontinha de alegria ao encontrar Laura e os outros que pareciam preocupados.

— Pensamos que você tinha sumido igual seu pai — disse Laura. — E você não vai acreditar!

— O jardim — falei.

— Como sabe?

Seguimos para lá e estava assustadoramente verde, vivo, com pétalas de rosas prestes a desabrochar. Haviam poucas partes onde era possível ver folhas secas.

— Como isso é possível? — perguntou.

— Laura, você nunca quis atravessar sozinha?

— Claro que não! Quero que seja assim como o senhor Luiz e a esposa.

— Mas e se o seu marido... Se ele trouxer outra pessoa?

— Está sabendo de alguma coisa?

— Não, claro que não! — Me apressei a esclarecer. — É só uma possibilidade. Você nunca pensou sobre isso? Talvez indo ainda possa ficar se preparando para voltar com ele, de qualquer jeito.

— Não quero arriscar.

Laura sumiu e eu suspirei, me perguntando o que aconteceria com ela e os outros caso Charlotte e a casa sumissem.

Eu estava me esforçando para não pensar e não me preocupar.

Quando Marcela voltou a aparecer me pediu desculpa, mas eu a obriguei prometer que não faria novamente.

— Estive pensando... — Começou ela e sentei em minha cama enquanto esperava que continuasse. — Se eu for embora talvez seja melhor. Sei que você tem se preocupado muito comigo e os bebês. Sua vida não tá sendo fácil. A do Pedro também não deve tá sendo, por isso não tentei vê-lo, sei que vai me doer muito e vou acabar não conseguindo sair de perto.

— Ma, eu te amo, muito mesmo, mas sei que ficando aqui não vai ser bom para ninguém. Você só vai se machucar mais e mais. Pensa direitinho, tá?

Ela confirmou e saiu logo em seguida.

Suspirei deitando na cama enquanto olhava o teto, até notar a presença de alguém que, ao sentar rapidamente, vi ser Charlotte.

— O que faz aqui? — perguntei, afinal eu quem sempre tinha que ir a procura dela ou precisava chamar.

— Você me beijou, eu senti algo novo, então acredito que estamos em um nível onde posso vir ao seu encontro quando quiser.

— Isso é estranho.

— Estranho o quê? Ter sentido algo? Isso de fato é muito estranho e novo.

— Estranho você vir assim de repente, no meio da noite, sem que eu chame ou pense.

— O que é bem estranho o fato de não ter pensado. No quê estava pensando? — perguntou enquanto sentava na ponta da cama.

— Acha que a Marcela, depois daquilo, está mudando de idéia? — Ela confirmou. — Que bom. Quero que ela e Laura atravessem antes que...

— Tudo desapareça — concluiu.

— Não consigo entender isso. Se você e a casa somem, como fica tudo daqui pra frente?

— Eu sou apenas uma parte disso, Alice — disse. — Tudo o que há aqui faz parte de algo muito maior. Pode parecer que sou a peça principal, mas ainda existe muito mais do que seus olhos podem ver.

— Você quer dizer que existem outros como você? — Ela confirmou. — E por quê você? Por que está aqui e porquê justo agora está chegando seu momento?

— Não ficou claro para você? Estou prestes a cumprir minha missão. Sempre achei que fosse apenas mandar almas para o outro lado, que havia um número certo e quem sabe um dia eu o atingiria, finalmente podendo atravessar. Jamais imaginei que o que me mantinha aqui era... Você.

— Você quer dizer que é como se tivesse passado séculos presa a esse... Trabalho enquanto me esperava para dar um fim a tudo? Por que eu?

— Na hora certa ficaremos sabendo. Agora por que não tenta descansar?

— Estou cansada de ficar ouvindo sobre o momento certo. Eu quero explicações porque não faz sentido. Não é justo!

Deixei meu corpo cair na cama enquanto voltava a olhar o teto do quarto. Descansar era a última coisa que eu conseguiria fazer, quando sabia não ter controle sobre nada.

De todo jeito minha vida precisava seguir, ou melhor, a morte precisava seguir seu curso e eu era a peça que levava aquelas almas até seu destino, por isso não havia  como parar, mesmo se quisesse. Também não tinha clima para ficar pelos cantos com Charlotte, mesmo que eu parasse as vezes para adimira-la enviando as almas para o outro lado.

Não havia uma situação onde pudéssemos encaixar um romance, mesmo que quando nossos olhos se encontrassem soubéssemos o que sentiamos.

Me surpreendia cada vez mais com capacidade dela sentir. Podia ver através do olhar, do sorriso e dos gestos quando eu estava por perto, mas não éramos capazes de usufruir desses sentimentos como deveríamos.

Todos os dias eu via o jardim ganhando vida e pouco a pouco as rosas desabrochando, sem que precisasse fazer nada.

...(...)...

Estava observando o rapaz que atravessava a ponte quando Charlotte virou-se para mim de repente. A princípio pensei que me levaria de volta ao casarão, mas seu olhar me mostrou que se tratava de outra coisa.

Quando Marcela surgiu diante de meus olhos, não acreditei. Havia passado dias me perguntando quando ela tomaria a decisão definitiva.

— Hoje? Agora? — Me aproximei nervosa. Eu sabia ser o certo, mas era difícil acreditar que aquela seria a última vez que veria minha amiga.

— Estou pronta — afirmou.

Ela estendeu as mãos e eu as segurei, o que era possível apenas por eu não estar ali em carne e osso.

— Obrigada por tudo Alice, principalmente por não permitir que eu me perdesse nunca.

Eu não conseguia falar, estava entalado tantos sentimentos que parecia impossível dizer alguma coisa, mesmo assim me esforcei para pronunciar um:

— Eu te amo. — Tentando transparecer o quanto estava feliz por vê-la fazendo aquilo e não a tristeza que sentia.

— Eu também te amo.

Nossa troca de olhares deve ter falado mais do que as poucas palavras que trocamos.

Eu assisti todo o ritual dela com Charlotte, em seguida sua passagem.

Bastou que ela chegasse até aquela luz intensa, para que eu me desse conta de estar de volta a sala de Charlotte, onde pude me permitir sentir e chorar, sendo embalada por ela, com seus braços que me ampararam, como costumava ser.

— Nesses momentos eu gostaria de poder tirar de você toda dor — disse ela, com o queixo apoiado em minha cabeça.

— Sou capaz de suportar. — Sorri fraco. — Principalmente porque você está aqui.

Naquele momento fomos surpreendida por todos da casa aparecendo de repente, o que me fez afastar rapidamente, secando minhas lágrimas.

— O garoto mudo não para de perturbar — disse Laura diante dos outros. — Ele diz que vocês precisam ver isso. Quer dizer, ele escreveu, já que não fala.

Nós seguimos para o jardim onde não havia mais sinal de nada morto e todas as flores desabrocharam.

Mais populares

Comments

Silvia Galdino

Silvia Galdino

meu Deus que medo de continuar e ver elas sumirem

2022-12-27

1

agora que a Alice tá sendo correspondida vai desaparecer todo mundo ? não é justo espero que tudo dê certo

2022-11-23

1

Cleidiane Oliveira

Cleidiane Oliveira

Esse gato mudo sabe muito mais do que os outros imaginar.

2022-11-23

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!