Capítulo 07

Eu sempre tentei imaginar como seria explicar toda aquela loucura  que estava acontecendo comigo, para Marcela, mas jamais podia imaginar que de fato o faria e que seria tão cedo, ainda por cima na pior situação possível.

— Me promete que você não vai tentar vê-los — pedi, mas ela não respondeu. — Marcela!

— Eu não vou, ok? Não vou.

— Você entende que não vai ser bom nem pra você nem pra eles?

— Não me importo comigo...

— Marcela!

— Eu não vou, Alice. Só... eu queria estar sentindo algo como felicidade por ter você aqui comigo, mas parece impossível sentir algo bom.

— Você vai ter que se manter firme, minha amiga. Sabe que o certo é você partir. Não é?

— Eu não quero. Não consigo ir sabendo que não vi o rostinho dos meus filhos.

Meu coração estava tão apertado que eu sequer sabia o que dizer para tentar conforta-la.

...(...)...

— E se ela ver eles? — sugeri a Charlotte. — Quem sabe depois ela vai embora...

— Não vai, Alice.

— Como você sabe se nem tentamos?

— Porque é assim para todos. Ela vai ver uma vez e vai querer outra e outra. Logo os bebês estarão cercados de espíritos e ela cada vez mais agarrada ao desejo de permanecer com eles.

— Isso é tão... — Eu queria gritar. — Como vou manter os olhos nela se a qualquer momento pode simplesmente desaparecer?

— Você não pode. Já fez tudo ao seu alcance, contou a verdade, conversou com ela, agora só resta esperar para ver.

Fechei os olhos por um momento, tentando não desmoronar e voltar a chorar. Eu só queria um abraço. Só queria alguém que pudesse tocar em mim e eu pudesse sentir de verdade.

Novamente era como quando eu estava em um lar adotivo. Me sentia sozinha.

Depois que me tornei amiga de Marcela, sempre foi ela quem esteve lá para me amparar.

— Seria demais te pedir... um abraço? — Arrisquei e no mesmo momento me arrependi, diante daquele olhar frio que Charlotte tinha sempre. — Esquece.

Segui até a porta da sala e quando já abria a mesma, ela surgiu, fechando-a no mesmo momento.

— Não me custa absolutamente nada.

Mesmo com aquele tom e olhar frio, Charlotte me puxou para seus braços e me envolveu com um calor que eu jamais imaginei sentir vindo dela.

Por um momento fechei os olhos, me sentindo bem. Finalmente eu estava me sentindo um pouco melhor. Não queria sair dalí.

— Você sente isso? — arrisquei perguntar.

— Gratidão?

— Na verdade... nunca senti o que estou sentindo antes — confessei.

Ela segurou em meus ombros e me afastou.

Naquele momento meu coração deu um verdadeiro salto em meu peito e tudo o que fiz foi sair o mais rápido possível.

...(...)...

— Por que estamos aqui? — perguntou Marcela ao meu lado, enquanto eu comia um cachorro quente na rua.

— Porque você não pode ficar sozinha. E eu precisava comer. Também porque preciso cuidar daquilo... — Gesticulei na direção do homem do outro lado da rua.

— Como você sabe que ele está...

— Tá vendo isso aqui. — Estiquei o braço, onde meus pêlos estavam todos arrepiados. — É frio quando estão por perto e... Sei lá sabe, as vezes acho que tem algum botãozinho aqui dentro que alarma quando me deparo com um... — Parei de falar, lembrando que naquele momento ela era um deles.

— Quando você falava sobre essas coisas eu sempre tinha medo, mas agora olha onde estamos. — Ela abriu os braços dando alguns passos atrás, indo para o meio da rua.

— Marcela... — Eu estava me esforçando para tentar agir naturalmente e não tornar as coisas mais tristes e estranhas. — Vamos levá-lo pra casa.

Joguei o resto do cachorro quente, tentando ignorar os carros que passavam atravessando minha amiga, diante aos meus olhos.

— Por que não chama aquela mulher? Como você mesma disse que faz.

— Porque me deu vontade de conversar com esse cara — falei passando por ela, atravessando a rua.

Quem sabe ouvindo alguém que estava pronto para ir, ajudaria em algo.

— Mesmo que isso signifique falar sozinha no meio da rua? — Me lembrou ela.

— Eu não tinha pensado nisso.

Seguimos caminhando em direção ao casarão que não ficava muito longe dali, ouvindo o homem contar a própria história.

— No começo eu não lembrava, mas depois tudo ficou claro. Meu próprio irmão... — dizia ele.

— Ele te matou a sangue frio? — perguntou Marcela, envolvida pela história.

— Bom, mas agora você está pronto para ir, não é mesmo? —  falei, tentando focar no que interessa.

— Depois de mais de um ano aqui e vê-lo apodrecendo infeliz, sinto que estou pronto sim.

Fiz uma careta, horrorizada. Não era exatamente aquilo que minha amiga precisava ouvir.

Eu fazia de tudo para manter Marcela focada em mim. Nem dormindo direito eu estava. Bom, isso eu já não fazia muito, desde que me mudei, mas o fato era que com os dias, na maioria das vezes, ela nem parecia estar comigo, não interagia. Eu apenas podia vê-la.

— Ela vai ficar bem? Não vai ficar amargurada, não é? — perguntei a Charlotte enquanto observavamos o jardim, onde mais um sinal de verde havia surgido.

— Não pense tanto nisso.

— Como não? Ela era minha única ligação com o mundo lá fora. Agora está aqui, mas todos os dias, a todo momento tenho medo de perdê-la de uma maneira ainda mais trágica.

— Ninguém nunca antes se importou tanto quanto você. Nem mesmo sua avó, que tinha um bom coração e manteve os próprios sentimentos. Ela se manteve firme nas próprias convicções e demonstrava sempre bondade, mas jamais se doou a alguém tanto quanto você tem feito nos últimos dias.

Olhei para ela exatamente no momento em que me encarou.

— Eu nunca vi ou senti algo assim — confessou, me fazendo estremecer por completa. — Mesmo não sendo de sua família...

— Ela é minha família. A única que restou depois que...

— Os tirei de você. — Ela voltou a encarar o jardim.

— Se não pode afirmar como minha família passou a fazer parte dessa maldição, então também não pode dizer que é culpa sua.

— Você não me odeia como seu pai odiou.

— Faria alguma diferença se eu te odiasse? Eu teria que continuar aqui de qualquer forma. E você não se importa com isso mesmo.

— Você parece incomodada sempre que toca nesse assunto.

— Qual?

— Sobre minha incapacidade de sentir. Por que te incomoda tanto?

Ela tocou em um ponto delicado, pois eu não sabia explicar. Ou talvez não queria explicar que algo estava acontecendo.

Seria o momento de admitir que algo realmente estava acontecendo dentro de mim? Talvez não para ela, mas para mim mesma.

Olhei novamente Charlotte que mantinha o olhar distante, como sempre vazio.

Eu sabia o real motivo de desejar ficar em sua presença. Até mesmo o toque da mão dela ainda estava vívido em minha memória. E o abraço que eu ainda podia sentir ao redor de meu corpo, parecia algo do qual eu tinha necessidade de sentir de novo.

— Porque eu queria que você sentisse. — Me atrevi a tocar a mão dela que me olhou rapidamente. — Seria errado se... Eu quisesse compartilhar meus sentimentos com você?

— Eu já os sinto independente...

— Mas você não os distingue tão bem quanto deveria. — Meu coração tinha virado uma verdadeira escola de samba diante de tamanha ousadia de minha parte. — O que eu senti naquele dia... Não foi gratidão.

— E o que foi então?

— Eu não sei explicar, porque também não sou boa com isso. Durante toda minha vida eu nunca me... Apaixonei.

A expressão dela mudou. Seu olhar fixo em mim pareceu desejar penetrar minha pele e alcançar minha alma, me deixando totalmente perdida.

— Paixão? — Senti a mão dela deslizando entre as minhas, se afastando e me fazendo arrepender miseravelmente por ter dito aquilo. — Você está dizendo que o quê está sentindo por mim é paixão? Alice...

— Não falar por favor. Eu sei que parece absurdo. Que nos conhecemos há apenas alguns meses e...

— Os meses não são o problema aqui. Você está esquecendo a parte principal.

— Então você reconhece que é um problema? Porque se você acha que é um problema, quer dizer que pode estar sentindo alguma coisa. Não estou dizendo que está apaixonada por mim. — Me apressei a explicar. — O que quero dizer é que se fosse totalmente indiferente a isso...

— Alice, não torne sua vida aqui algo do qual não irá suportar.

Pisquei algumas vezes, antes de baixar a cabeça olhando minhas próprias mãos.

— Eu larguei meu emprego. Perdi minha amiga. Vejo gente morta o tempo todo. Com certeza estou vivendo um dos piores momentos da minha vida, mas em meio a tudo isso, estar com você me faz sentir coisas que jamais imaginei antes. Talvez eu esteja sendo imatura e emocionada, mas de uma coisa tenho certeza, estou sendo fiel aos meus sentimentos nesse momento. Os mesmos que você preservou ao se recusar a tira-los de mim naquele dia.

Saí rapidamente em direção a casa, tão rápido que não vi o tronco no caminho, que me fez cair. Quando meus olhos focaram no chão, avistei o talo verde que seguia com folhas de cor viva até chegar ao botão de rosa que me fascinou o suficiente para perceber que aquele não era um jardim comum. Não era possível algo que um dia estava tão seco, no outro já estar florescendo.

Mais populares

Comments

meu Deus assim o coração num guenta não

2022-11-21

4

Cleidiane Oliveira

Cleidiane Oliveira

A cara já acabou.

2022-11-21

1

Nataly Lopes

Nataly Lopes

Amandooooo,será que ela já ama a Alice

2022-11-21

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!