A família se reúne e velhos amigos se encontram parte 4

Com os olhos ainda inchados, ouvi Sofia perguntar:

— Ei... A gente realmente morreu, né?

— Ao menos que eu esteja em coma e isso seja um sonho.

— C-como aconteceu? — Essa era uma pergunta difícil, o tópico do assunto em si já era difícil.

Quem gostaria de conversar sobre a própria morte? Quem gostaria de lembrar?

— Um carro capotou. — Foi tudo o que consegui lembrar sobre o acidente, a imagem de um carro vindo para mim. — Não lembro mais do que isso.

— Certo. — Sofia não perguntou mais nada e por alguns instantes a sala ficou em silêncio.

— Você acha que nossos pais estão bem? — Perguntei, eu ainda tinha uma família para me preocupar e para se preocuparem comigo.

Muita coisa estava rodando na minha cabeça e o assunto "como estão as coisas da minha vida passada" foi empurrado para o fundo da minha mente, voltando a superfície apenas agora que estou com Sofia, uma pessoa que era uma parte importante daquela vida.

— Eu não tenho idéia sobre a tia e o tio, mas posso apostar que os meus estão bem. — Ela falou dando de ombros.

Não falei nada sobre seus pais, eles não tinham uma boa relação e eu não tinha o direito de tentar consolar Sofia tentando fazê-la acreditar em vão que eles se importavam.

Porque isso seria ainda mais doloroso.

— E nossos irmãos? Nossos amigos? Nossos trabalhos...? — Era uma vida inteira afinal, quantas perguntas eu tenho, quantos sentimentos estou sentindo agora? Como posso deixar tudo para trás? Eu tinha tudo, dinheiro para sobreviver e as vezes para laser, não muito, mas o suficiente. Amigos, família e estabilidade.

Como posso largar tudo isso?

Meus ombros começaram a tremer novamente e mais lágrimas saíram.

Como posso largar tudo isso..., mas onde está a minha escolha? Eu já estou aqui. O que mais posso fazer?

Roubei a vida de alguém, mesmo que essa pessoa fosse morrer de qualquer forma. A chance de viver de novo, como posso desperdiçar isso? Não estou sozinha também.

Sofia está aqui, na mesma situação que eu. Roubei a vida de Lara, então eu vou assumir a essa vida roubada.

— Sofia... — Estava pronta para contar a minha nova resignação, mas Sofia me interrompeu.

— Não, seria melhor se você me chamasse de Nestor, mesmo quando estivermos sozinhas. — Tivemos os mesmos pensamentos então.

— Tudo bem, o mesmo para mim. — Falei e olhei para ela, em um corpo masculino. — So-Nestor, você é o quê? Tipo um trans de alma?

— Trans de alma? Que merda ta saindo da tua boca?

— Ué, antes era uma garota e agora um garoto. Trans de alma.

Nestor suspirou e me ignorou.

— Não é estranho? Está no corpo de um homem? — Perguntei.

— No início foi, mas já faz um mês, então me acostumei um pouco. Sem falar que também nunca me incomodei com essa coisa de gênero. — Ele passou as mãos nos cabelos enquanto falava. — Não me importo se sou homem, mulher ou o que seja. Então, a única coisa incômoda foi me acostumar com a nova anatomia do meu corpo.

— Entendi, eu vou errar muito o teu nome. Já aviso que mudar a forma como te chamo vai ser difícil.

— E é por isso que é melhor falar sempre, mesmo sozinhas. Vai ser difícil para mim também te chamar de Lara.

— Aaah isso é tão... Nem em um milhão de anos, eu nunca pensei que isso aconteceria comigo. — Falei dando um longo e cansado suspiro.

— Ah! — Nestor exclamou. — Lorran-Lara, eu estava agora mesmo refazendo o rascunho que eu tinha para o segundo livro!

— Segundo livro?

— Nossa sim, eu pretendia fazer com que os acontecimentos fossem um pouco mais intensos... Então, meio que criei uma guerra, um vilão que manipula tudo por trás e morte de personagens...

Meu rosto se contorceu.

— Mas tu! Não tem como mudar isso não?! Você escreveu! Você não é tipo a deusa desse mundo?

— Que deusa! Eu sou um simples lorde. — Ele falou e pegou os papéis que estava rabiscando antes. — Aqui, temos um grande problema em nossas mãos.

— Explique. — Meu humor que estava na lama, foi para o lixo.

— Hum... Primeiro, eu não sei quem é o vilão.

— Não foi você quem criou ele!? — Meus olhos saltaram das órbitas com os absurdos sendo jogados nos meus ouvidos sem dó nem piedade.

— Sim! Mas são rascunhos! Rascunhos! Você sabe que eu sou uma pessoa ociosa! Nem mesmo me dignei a dar nomes para os personagens coadjuvantes que não tinham fala e apenas um peso no passado de algum outro personagem! — Ele falou sacudindo o dedo indicador e apontando para si mesmo. — E veja quem eu acabei possuindo!

— Um vilão é diferente de um secundário! Como você pode não saber quem é ele?!

— Eu ainda estava no processo de criação! — Ele falou por fim. — De qualquer forma, vamos focar. O vilão ainda está sem nome e aparência. Tudo o que sei é personalidade, objetivo, passado e posição.

— Bom, acho que com isso podemos descobrir quem é. — Falei dando uma olhada nos rabiscos no papel nas mãos de Nestor. — Qual a posição dele?

......................

Enquanto Nestor e Lara discutiam sobre os acontecimentos futuros e sobre o grande vilão por trás de tudo, esse mesmo vilão estava em um quarto escuro de paredes negras em algum lugar da capital Jocit.

Estava um silêncio profundo naquele quarto, fazendo com que os ruídos de água borbulhando fossem infinitamente mais altas, assim como os ruídos de dormir de um animal enjaulado.

O animal que dormia era uma espécie estranha, era como um lobo guará com rabo de raposa, mas não era nem um nem outro. A fera mágica estava presa por correntes e parecia torturada.

Na extremidade oposta estava um homem.

Ele olhava fixamente para os materiais jogados na mesa: pinças, agulhas, martelos pequenos, potes com líquidos desconhecidos e muitos papéis com escrituras, gravuras e símbolos.

Os pensamentos do homem voavam longe, estava tomando uma decisão. Cerca de cinco minutos depois ele se decidiu.

Pegou uma seringa e a encheu com o sangue que estava em um pequeno e fino frasco. Era o sangue retirado da fera mágica enjaulada.

Como aquele homem conseguiu capturar uma fera mágica, era algo que não podia ser respondido facilmente. Os truques que um humano poderia fazer para alcançar algo que queria eram intermináveis, criativos e assustadores.

Assustadores ao pondo do desprezo.

Respirando fundo o homem enfiou a agulha em seu próprio braço, não demorou para que sua mão tremesse.

Ele soltou a seringa que caiu no chão fazendo um barulho alto.

Seu corpo sendo atingindo por uma dor intensa enquanto lutava desesperadamente para expulsar o corpo estranho que entrou de repente.

Mesmo diante da dor intensa o homem não gritou, apenas sufocou com os grunhidos da garganta enquanto mordia os próprios lábios os levando a derramar sangue.

Ele convulsionou e sua testa suou. Sentindo frio ele desmaiou.

Mesmo desmaiado, seu corpo ainda lutava e uma febre alta o atingiu.

Ele ficou nesse estado durante três dias e duas noites. Ainda doentio, ele passou mais uma semana.

Na semana seguinte, ele repetiu o processo e os mesmos acontecimentos se repetiram. Então, ele voltou e tentou mais uma vez.

Novamente tudo se repetiu, sem sinal de mudanças. O homem foi forçado a pegar um papel e assinar com uma escrita elegante: "fracasso".

O homem passou para o papel seguinte e se virou para olhar a fera mágica que não estava dormindo, o encarando na escuridão com olhos brilhantes e desafiadores se recusando a se submeter ao homem.

— Vou precisar de você mais uma vez.

O homem falou, sua voz não era fria e nem quente. Nem alta e nem baixa, mas um sorriso sem sentimentos descansava em seu rosto.

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