Capítulo 16 – A Rejeição
As marcas no corpo de Damian estavam gravadas na memória de Evelyn como se fossem dela. Cada linha, cada cicatriz, cada corte antigo agora fazia parte de sua história também. Ela não o via mais como um monstro. Via como um espelho quebrado — e talvez fosse isso que mais a assustava.
Naquela manhã, o sol surgiu tímido atrás das nuvens. O galpão estava silencioso, exceto pelo barulho da respiração dela. Evelyn caminhava pelos corredores vazios, tocando as paredes como quem busca equilíbrio.
Não era sobre Damian. Era sobre ela.
Ela estava mudando.
E não sabia se gostava disso.
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Damian a encontrou sentada no telhado, com a câmera no colo. Estava tentando fotografar, mas os dedos tremiam. O mundo parecia sem foco. Tudo fora de enquadramento.
— Há quanto tempo você não tira uma foto por prazer? — ele perguntou, parando atrás dela.
— Eu não sei mais o que é prazer.
— Quer parar?
— Não sei mais como.
Damian se sentou ao lado dela. O olhar dele era calmo, mas Evelyn notou um cansaço escondido sob os olhos.
— Você está cansada — disse ele.
— E você?
— Sempre estive.
— Quando foi a última vez que dormiu de verdade?
Ele sorriu, amargo.
— Antes de te conhecer.
— Porque eu te mantenho acordado?
— Porque agora eu sonho. E isso é perigoso.
Ela virou o rosto para ele.
— Sonhos não matam.
— Mentira. Eles são os primeiros a morrer. Depois vêm os outros.
O silêncio caiu entre os dois. Evelyn fechou os olhos por um instante. Tentou lembrar da Evelyn de antes. A que sorria sozinha em cafés. A que tirava fotos de detalhes bobos nas ruas. A que achava que o mundo podia ser compreendido por trás de uma lente.
Mas essa Evelyn estava sumindo.
E no lugar dela… havia outra.
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Naquela noite, Evelyn se trancou no banheiro. Olhou-se no espelho.
Os olhos estavam mais escuros. Os ombros mais retos. O rosto... mais frio.
Tentou chorar, mas não conseguiu.
Abriu a água. Deixou cair sobre o corpo. Quente. Forte. Quis se purificar, mas a sujeira não estava na pele. Estava dentro.
Quando saiu, Damian a esperava, encostado no batente da porta do quarto.
— Está tudo bem?
— Não sei.
— Você quer ir embora?
Ela hesitou.
Queria.
Mas não podia.
— Eu não sei mais onde é “ir embora”.
Damian se aproximou.
— Eu percebo. Você está rejeitando o que está se tornando. Mas isso... isso é parte do processo. Não é sobre perder quem você era. É sobre entender quem você pode ser agora.
— Eu não quero ser como você, Damian.
— Então seja como você quiser. Mas não negue o que já mudou.
Ela encostou as mãos no peito dele. O coração batia forte. Vivo.
— Eu não sou feita para matar.
— Ainda não.
— E se nunca for?
— Então eu protejo por você.
Ela se afastou.
— Mas e se eu quiser sair desse mundo? Agora. Hoje.
Damian ficou em silêncio. O rosto dele se fechou, como se cada palavra fosse uma facada.
— Você pode ir. Eu não vou impedir.
— Está mentindo.
— Estou lutando comigo mesmo para não amarrar você aqui.
Ela respirou fundo.
— Então me deixa escolher.
Ele assentiu.
Evelyn virou as costas. Caminhou até a porta da casa.
Abriu.
Olhou o mundo lá fora.
Escuro. Silencioso. Livre.
Mas não conseguiu atravessar a soleira.
As pernas travaram. O coração disparou.
Ela voltou.
— Eu não consigo.
— Porque você já é parte disso — disse Damian. — E não existe “antes” depois que o “depois” começa.
Ela caiu sentada no chão.
— Então me diz… quem eu sou agora?
Ele ajoelhou-se diante dela.
— Minha.
— Isso não é resposta.
— Mas é tudo o que resta.
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Horas depois, Evelyn estava sozinha novamente. Damian dormia — ou fingia dormir. E ela, inquieta, caminhava pela casa.
Acabou no porão, onde os arquivos antigos estavam armazenados.
Pegou uma caixa aleatória. Abriu.
Dentro, imagens de corpos. Dossiês. Relatórios. E, entre eles, uma pasta sem nome.
Ao abrir, encontrou documentos sobre um projeto chamado “Aurora”.
Planilhas. Fotos. Registros de crianças.
E um nome, em vermelho, grifado com caneta:
> “Evelyn Ferreira – observação iniciada em 2017”
Ela congelou.
Dois anos antes de conhecer Damian.
Ela folheou os papéis. Fotos dela. Na rua. Em casa. Com Clara. Em exposições. Em viagens.
Ela já estava sendo vigiada.
Muito antes do beco.
Muito antes do beijo.
Muito antes de tudo.
E entre os papéis... um parecer técnico.
> “Candidata a vínculo emocional com ativo D. Monitorar reações. Medir resposta comportamental. Estímulo gradual.”
Evelyn deixou os papéis caírem.
Aquilo não era amor.
Nunca foi.
Ela era um experimento.
Um teste.
Um alvo.
Correu até o quarto, o coração batendo como um tambor.
Damian abriu os olhos no mesmo instante.
— Evelyn...?
Ela o empurrou com força.
— Você sabia.
Ele levantou-se, tenso.
— Do quê?
— Da pasta. Do projeto. De mim. Antes. Muito antes. Eu era um plano, não era?
— Era uma chance.
— De quê?
— De redenção.
Ela chorava agora. Não lágrimas de dor. Mas de raiva.
— Você me usou.
— Eu me apaixonei.
— Depois. Só depois. Mas antes... você me escolheu como quem escolhe uma arma.
— Eu não sabia que ia sentir isso por você.
— Mas sentiu. E mesmo assim continuou o plano.
Damian abaixou a cabeça.
— Eu tentei parar.
— Mas não conseguiu.
Ela se afastou.
— Então me dá um motivo pra ficar.
Silêncio.
— Um só.
Ele levantou os olhos. Havia dor ali. Arrependimento. Mas também uma sombra que não se dissipava.
— Porque mesmo depois de tudo... você ainda me ama.
Evelyn fechou a porta.
De dentro.
Mas o amor, naquele momento... era a parte que mais doía.
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Atualizado até capítulo 30
Comments
Gloria Katia Baffa
No final de tudo ele se apaixonou por ela. Sem ter coragem de matar ou usar ela.
2025-04-16
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