capítulo 15

Capítulo 15 – As Marcas

A madrugada parecia líquida naquela noite — densa, fluida, pesada. A cidade dormia, mas Evelyn estava desperta. Deitada ao lado de Damian, sentia o calor do corpo dele e o peso de seus próprios pensamentos.

Ela se levantou em silêncio, andando descalça pela casa escura. Precisava de ar, de espaço, de si mesma. Passou pelo corredor até a sala de vigilância, onde as telas mostravam imagens do lado de fora — árvores balançando, sombras em movimento, vida acontecendo além da bolha que os cercava.

Sentia-se anestesiada.

Por tudo o que fizera. Por tudo que ainda pretendia fazer.

Quando voltou para o quarto, Damian não estava mais dormindo.

Estava sentado na poltrona ao lado da janela, olhando para o céu sem estrelas, com uma taça de uísque na mão e os olhos perdidos em algum ponto que ela não alcançava.

— Pesadelos? — perguntou Evelyn, se aproximando.

— Não. Memórias. Elas não me deixam quando fecho os olhos.

Ela sentou-se no chão, aos pés dele.

— Do quê?

— De tudo que não pude salvar. Ou pior... de tudo que destruí achando que estava salvando.

Evelyn apoiou a cabeça no joelho dele. Pela primeira vez, Damian parecia menor. Não fisicamente — mas como se o homem indestrutível estivesse, por dentro, em ruínas.

— Você já me contou sobre Isabela... e sobre sua mãe. Mas não contou como as duas histórias se conectam.

Damian bebeu um gole antes de responder.

— As duas eram mulheres que tentaram me amar apesar do que eu era. E falharam.

— Sua mãe falhou?

— Não por culpa dela. Ela tentou fugir da organização quando eu era pequeno. Tentou me tirar do país, recomeçar. Mas foi pega antes. Sabe o que fizeram? Deixaram ela viver. Só pra me forçar a obedecer.

— Uma moeda de troca.

— Ela foi mantida viva por anos, Evelyn. Em locais secretos, longe de mim. Eu recebia gravações, cartas falsas escritas por outras pessoas, só pra me manter sob controle. Me diziam que, se eu falhasse, ela morria. Então... eu nunca falhei.

— E ela?

— Nunca soube que eu obedecia por ela. Nunca soube o que eu estava me tornando.

Damian olhou para o próprio braço. Arregaçou a manga da camisa e mostrou uma cicatriz longa, fina, no antebraço.

— Essa foi a primeira. Eles me marcaram aos dezesseis. “Um aviso”, disseram. Pra eu lembrar que meu corpo não era meu. Que minha dor servia a um propósito.

Evelyn tocou a cicatriz com os dedos. Ele não se moveu.

Depois, ele tirou a camisa. Mostrou outras. Uma no abdômen, próxima às costelas. Outra nas costas, como um chicote. E uma, no peito, bem acima do coração: uma linha irregular, costurada às pressas, antiga.

— Essa... foi de quando tentei fugir. Aos vinte e dois. Descobri onde estavam mantendo minha mãe. Planejei tudo. Invadi a base, levei dois tiros, matei quatro homens. Mas quando cheguei... era tarde. Ela já tinha sido movida. Deixaram uma carta. Um ultimato. Ou eu voltava... ou ela morria.

— Você voltou.

— E me tornei o monstro que eles queriam.

Evelyn estava em silêncio. Os dedos ainda sobre a pele dele. As cicatrizes contavam uma história que ele nunca precisou verbalizar.

— E Isabela?

— Era o contrário da minha mãe. Jovem, rebelde, intensa. Achava que podia me mudar. Que me amava o suficiente pra suportar quem eu era. Mas quando viu tudo... quando entendeu a verdade... quebrei ela. Não com palavras. Com o silêncio. Com o controle. Com os muros que construí entre nós.

— Você não a matou.

— Não. Mas fui o motivo pelo qual ela se destruiu.

— E eu?

Damian a olhou. Por um instante, seus olhos pareceram mais humanos do que nunca.

— Você é diferente.

— Não tente me salvar, Damian. Só não minta pra mim.

Ele assentiu.

— Então vou te mostrar tudo.

Na tarde seguinte, Damian levou Evelyn a um lugar que ela não conhecia. Um galpão antigo, isolado, protegido por portões automáticos e sensores de movimento. Lá dentro, não havia armas. Não havia telas. Apenas caixas, arquivos, cadernos.

E uma poltrona vermelha, no centro da sala.

— Aqui foi onde tudo começou — disse ele.

— Começou o quê?

— O programa. A doutrina. Aqui treinavam os primeiros executores. Aqui me ensinaram a mentir, a amar com propósito, a matar sem sentir.

Evelyn caminhou pelo local. Abriu uma das caixas.

Fotos.

De crianças.

Adolescentes.

Rapazes de uniforme preto, cabelos raspados, olhos frios.

— Você era um deles.

— Eu era o melhor deles.

Ela pegou um caderno. Havia anotações. De Hélio Navarro. O mentor de Damian.

“O menino D. mostrou reação emocional incomum ao ver a imagem da mãe. Recomenda-se reforço de dissociação afetiva.”

— Eles tentaram apagar você — murmurou ela.

— E conseguiram. Por um tempo.

— E agora?

Damian se aproximou.

— Agora… você é o que sobrou.

Ela se virou.

— Eu não quero ser cura, nem prisão. Eu quero ser verdade.

Ele a puxou para perto. O rosto próximo ao dela.

— Então vê. Vê tudo. Me toca, me conhece, me devora. E depois decide se ainda quer ficar.

Ela tocou as cicatrizes dele uma por uma. Como quem lê uma história em braile, tentando entender os capítulos esquecidos.

E então o beijou. Lento. Intenso. Mas dessa vez... foi ela quem dominou. Ela quem guiou.

Porque, pela primeira vez, Damian não estava no controle.

E aquilo, mais do que qualquer bala ou faca, era o que o assustava.

Na madrugada, enquanto dormiam, uma câmera escondida fora do galpão capturava um vulto entre as árvores.

Uma figura encapuzada, de botas pesadas, com um celular nas mãos.

Transmitindo ao vivo para alguém do outro lado da tela.

O homem sorriu.

E digitou:

"O lobo encontrou sua fraqueza. Vamos arrancá-la."

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Comments

Gloria Katia Baffa

Gloria Katia Baffa

Vida dela não pertencia mais antiga vida que deve. No lado dele tudo mudou

2025-04-16

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