O relógio do meu celular marcava 2 da madrugada. Eu estava deitada, encarando o teto, incapaz de encontrar o sono. A escuridão do quarto parecia sufocante, e o silêncio da casa me fazia sentir ainda mais inquieta. Suspirei, me rendendo à insônia. Coloquei um moletom por cima do pijama, calcei meus chinelos e desci as escadas silenciosamente, tentando não fazer barulho.
Enquanto caminhava pelos corredores quase sombrios, notei uma porta que nunca tinha prestado atenção antes. Estava entreaberta, e uma leve fresta de luz da lua iluminava o interior. Empurrei a porta devagar, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Era uma biblioteca. Uma linda e imensa biblioteca.
As prateleiras de madeira escura se estendiam até o teto, organizadas em três níveis, com uma escada de ferro deslizante presa às estantes. O cheiro de livros antigos misturado ao aroma da madeira polida preenchia o ar. Passei os dedos pelas lombadas dos livros, sentindo a textura do couro envelhecido, como se cada livro ali guardasse um pedaço de uma história secreta.
Meus olhos pararam em um título familiar: La Divina Commedia. O mesmo livro que o professor havia mencionado na aula, insistindo que analisássemos suas metáforas e reflexões. Peguei o exemplar, sentindo o peso dele em minhas mãos. O couro da capa estava desgastado, mas o título dourado ainda brilhava sob a luz tênue da lua.
Saí da biblioteca, atravessando o corredor silencioso até o jardim. O ar fresco da madrugada me acolheu, dissipando um pouco da inquietação que me consumia. Fui até o meu lugar preferido: o muro de pedra que dava vista para o mar. Sentei-me, com o livro aberto no colo, e comecei a ler, deixando as palavras de Dante me envolverem.
O som repentino de passos pesados e firmes interrompeu minha concentração. O eco de botas batendo contra o chão de pedra ecoou no silêncio da noite. Virei-me rapidamente, com o coração acelerado, e lá estava ele.
Damian.
Como sempre, parecia saído de algum filme noir, com sua presença intensa e um cigarro entre os dedos. O brilho laranja da ponta iluminava brevemente seu rosto, realçando as sombras sob seus olhos. Ele me olhou de canto, com aquele ar provocador que parecia natural para ele.
— Insônia ou tédio? — perguntou, soltando a fumaça de forma preguiçosa, um sorriso torto se formando no canto da boca.
Revirei os olhos e balancei a mão na frente do meu rosto, tentando afastar o cheiro forte.
— Você realmente precisa andar por aí com essa coisa fedida? — retruquei, franzindo o nariz.
Ele riu baixinho, um som rouco e breve, antes de jogar o cigarro no chão e esmagá-lo com a bota.
— Pronto, princesa. Melhorou?
Não respondi, apenas voltei meu olhar para o livro em minhas mãos. Damian se aproximou, parando ao meu lado, mas mantendo uma distância confortável. Ele inclinou a cabeça, curioso.
— O que você está lendo? — perguntou, a voz mais baixa agora, quase suave contra o som das ondas quebrando ao longe.
— La Divina Commedia — respondi sem tirar os olhos das páginas.
Ele soltou uma risada curta, mas não de deboche, parecia mais um reconhecimento.
— Já li isso mais de cem vezes — disse ele, cruzando os braços e olhando para o horizonte escuro do mar.
Levantei uma sobrancelha, surpresa.
— Cem vezes? Você tem um fascínio estranho por literatura clássica?
Damian deu de ombros, o olhar distante, como se estivesse vendo algo muito além da escuridão.
— Não é fascínio. É identificação.
Fechei o livro devagar, curiosa. O que ele queria dizer com isso?
— Identificação? Com Dante?
Ele virou o rosto para me encarar, e pela primeira vez notei que havia uma sinceridade crua nos olhos dele, uma sombra de algo mais profundo do que suas provocações habituais.
— Sim. Mas não sou o Dante que encontrou o caminho para a luz. Sou uma versão dele que ficou presa no inferno. — A voz dele era baixa, quase um sussurro, carregada de um peso invisível.
As palavras dele ficaram no ar por alguns segundos, ecoando dentro da minha mente. Era raro vê-lo assim, vulnerável, sem a armadura da arrogância e da indiferença.
— O inferno pode ser mais do que um lugar — murmurei, mais para mim mesma do que para ele.
Ele soltou uma risada seca, sem humor.
— O inferno é exatamente isso. Não é um lugar. É um estado. — Ele chutou uma pedrinha que estava no chão, olhando para ela desaparecer na escuridão. — Algumas pessoas vivem nele sem nunca sair.
Queria perguntar mais, queria entender o que havia por trás daquele olhar carregado de dor. Mas algo me dizia que Damian não era do tipo que se abriria facilmente. Ele era um enigma, e cada palavra que deixava escapar era uma peça solta de um quebra-cabeça impossível.
— Você nunca pensou em encontrar o seu caminho para fora? — perguntei, a voz mais suave do que eu esperava.
Ele me olhou novamente, e, por um breve momento, o sarcasmo habitual desapareceu.
— Talvez algumas pessoas simplesmente não estejam destinadas a sair. — A resposta foi um sussurro, quase levado pelo vento.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, digerindo aquelas palavras. Havia uma dor escondida ali, nas entrelinhas da provocação, uma verdade que ele nunca admitiria abertamente.
— O Dante encontrou a luz porque ele tinha uma Beatriz — arrisquei dizer, observando sua reação.
Damian riu de novo, mas dessa vez havia algo quebrado no som.
— Eu não sou o tipo de pessoa que encontra uma Beatriz — murmurou. — E, se encontrasse, ela provavelmente se arrependeria.
As palavras dele ecoaram em mim de um jeito estranho. Havia tanto mais por trás daquela fachada arrogante e rebelde. Tanta dor camuflada em sarcasmo.
— Talvez você só esteja lendo da maneira errada — sugeri, com um leve sorriso, tentando aliviar o peso da conversa. — Talvez a luz não seja uma pessoa. Talvez seja algo que você ainda não descobriu.
Ele me olhou então, realmente me olhou, como se estivesse tentando decifrar o que havia por trás das minhas palavras.
— Você fala como se entendesse — murmurou.
Dei de ombros.
— Talvez eu entenda mais do que você imagina.
O silêncio se instalou entre nós, mas não era desconfortável. Era o tipo de silêncio que dizia mais do que as palavras. Voltei a abrir o livro, mas senti o olhar dele ainda sobre mim.
— E você? — ele perguntou de repente. — O que está procurando nesse livro?
Pensei por um momento antes de responder.
— Talvez uma forma de entender onde eu me encaixo nisso tudo.
Damian assentiu levemente, como se entendesse. Depois se levantou, pegando o cigarro esquecido no chão e jogando-o na lixeira mais próxima.
Antes de se afastar, virou-se para mim uma última vez.
— O problema de tentar se encaixar é que, às vezes, o quebra-cabeça está quebrado.
Fiquei olhando enquanto ele desaparecia na escuridão, o eco das palavras dele dançando em minha mente. Talvez Damian fosse mesmo um Dante perdido. Mas algo em mim dizia que ele ainda podia encontrar a luz. Talvez ele só precisasse de alguém para acender a primeira chama.
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Atualizado até capítulo 75
Comments
Onilda Furlan
agora estamos pegando as peças desse quebra cabeça
2025-03-17
0
nandinha
Continuação por favor 🙏
2025-02-06
1