Marcas que não cicatrizam

O vilarejo surgiu no horizonte ao final da tarde, iluminado pelo brilho dourado do pôr do sol. A estrada de terra batida conduzia até um lugar que parecia ter parado no tempo. As casas eram feitas de madeira robusta, algumas com musgo cobrindo os telhados inclinados. Pequenas hortas cercavam as construções, onde trepadeiras subiam por cercas gastas e galinhas ciscavam entre as ervas daninhas.

O ar carregava o cheiro de lenha queimando e algo mais reconfortante — talvez pão recém-assado ou sopa fervendo em caldeirões. As janelas das casas projetavam luzes suaves, mas a presença de pessoas era mínima. Alguns moradores espiavam por entre as cortinas ou esboçavam olhares rápidos antes de desaparecerem em seus lares.

— Parece... acolhedor, — murmurou Lyana, embora houvesse um toque de hesitação em sua voz.

Rhaedrin não respondeu. Seus olhos escanearam o vilarejo como sempre, atento aos detalhes. O silêncio das ruas, os movimentos nervosos dos poucos que passavam. Nada escapava à sua percepção.

— Vamos à taverna, — disse ele, apontando para a maior construção da praça central.

A taverna era simples, mas imponente. Feita de madeira escura, com uma placa pendurada na entrada que balançava suavemente com o vento, o lugar parecia convidativo. No entanto, havia algo na maneira como as vozes no interior pareciam abafadas, como se até ali as pessoas hesitassem em falar livremente.

Ao entrarem, foram recebidos pelo cheiro de carne assada, pão fresco e cerveja. A luz de castiçais iluminava o ambiente, lançando sombras que dançavam nas paredes e no teto de vigas expostas. Havia algumas mesas ocupadas, mas o som das conversas diminuiu assim que Rhaedrin cruzou a porta.

Eles escolheram uma mesa no canto, onde a luz era mais baixa e a vista do salão era ampla. Quando o taverneiro, um homem corpulento com avental manchado, aproximou-se, Rhaedrin pediu duas refeições e um quarto.

— Temos água quente nos fundos, se quiserem um banho também, — ofereceu o homem, sua voz carregando um tom de cansaço, mas com um toque de hospitalidade.

— Ótimo, — respondeu Rhaedrin, deixando algumas moedas sobre a mesa.

Pouco tempo depois, pratos generosos foram colocados diante deles. Pedaços de carne assada, pão fresco e legumes cozidos. Lyana quase suspirou de alívio ao sentir o aroma.

— Isso... é um banquete, — disse ela, sorrindo enquanto começava a comer.

Rhaedrin comia em silêncio, como de costume, mas seus olhos continuavam atentos ao salão. Havia um grupo de homens no canto oposto, três figuras mal-encaradas que falavam baixo, mas com um tom de arrogância.

Quando terminaram a refeição, Rhaedrin olhou para Lyana.

— Vá tomar banho primeiro. Eu fico aqui.

Ela hesitou, mas assentiu. O taverneiro a conduziu aos fundos, onde uma pequena cabana com paredes de madeira rústica abrigava um grande barril de água quente. O vapor subia suavemente, misturando-se ao ar fresco da noite.

Lyana mergulhou na água, fechando os olhos enquanto o calor aliviava os músculos doloridos da caminhada. Por um momento, ela se permitiu relaxar, afastando os pensamentos do perigo constante que parecia segui-los. Mas, inevitavelmente, sua mente voltou a Rhaedrin.

— Tão frio... mas tão justo, — murmurou para si mesma, lembrando-se de como ele havia protegido ela tantas vezes. Um leve sorriso surgiu em seus lábios enquanto a água escorria por seu rosto.

Quando voltou à taverna, encontrou Rhaedrin ainda sentado, com a mesma postura alerta. Ele a olhou por um breve momento, mas não disse nada. Ela sentou-se novamente, observando-o com curiosidade.

— Sua vez, — disse ela, tentando disfarçar o sorriso.

Ele assentiu, levantando-se e indo até o banho. Enquanto esperava, Lyana começou a dedilhar o violão, preenchendo o salão com uma melodia suave. Alguns dos clientes começaram a prestar atenção, relaxando visivelmente.

Rhaedrin voltou pouco depois, com os cabelos úmidos e a aparência ligeiramente menos austera. Lyana percebeu que, mesmo sem sua capa e espada, ele ainda parecia imponente. Quando ele sentou-se, ela não conseguiu evitar um leve rubor ao olhar para ele.

— Está melhor agora? — perguntou ela, fingindo um tom casual.

— Sempre é bom estar limpo, — respondeu ele, mas havia um leve movimento em seus lábios, quase um sorriso.

 

Mais tarde, quando estavam prestes a subir para o quarto, a porta da taverna se abriu com força, e três homens entraram. Eles eram os mesmos que Rhaedrin havia notado antes, mas agora estavam claramente mais ousados. O líder, um homem magro com cicatrizes no rosto, caminhou diretamente até o balcão, batendo uma moeda contra a madeira.

— Ei, taverneiro, temos novos hóspedes aqui? — perguntou ele, olhando diretamente para Rhaedrin e Lyana.

Rhaedrin ergueu os olhos lentamente, mas não se moveu.

— Algum problema? — perguntou ele, a voz calma.

— É claro que há, — respondeu o homem, aproximando-se. — Vocês não pagaram o preço certo. Neste vilarejo, quem decide o preço somos nós.

Lyana ficou tensa, mas Rhaedrin permaneceu imóvel. Ele levantou-se devagar, a cadeira rangendo contra o chão de madeira.

— Já paguei o que era devido. Não tenho negócios com vocês, — disse ele, a voz firme, mas controlada.

O homem riu, puxando uma adaga da cintura.

— Talvez você não entenda como as coisas funcionam por aqui.

Antes que pudesse dizer mais, Rhaedrin deu um passo à frente, segurando o pulso do homem e torcendo-o com força suficiente para fazê-lo soltar a arma. O som da adaga caindo ecoou pela sala. Ele encarou o homem por um momento antes de empurrá-lo de volta.

— Pegue seus amigos e vá embora. Agora.

Os outros dois homens hesitaram, mas o olhar de Rhaedrin era suficiente para fazê-los recuar. Eles saíram rapidamente, arrastando o líder consigo.

O salão ficou em silêncio, e o taverneiro suspirou, aliviado.

— Obrigado... esses homens têm sido um problema há muito tempo, — disse ele.

Rhaedrin assentiu e voltou para a mesa, pegando sua espada antes de se dirigir ao quarto. Lyana o seguiu, mas antes de entrar, olhou para ele.

— Você nunca hesita, não é?

Ele a olhou por um momento antes de responder.

— Não quando o certo é claro.

Ela sorriu levemente, entrando no quarto atrás dele. Enquanto fechava a porta, pensou em como ele parecia carregar o peso de tudo, mas sempre encontrava um jeito de manter tudo sob controle. E, por mais que ele fosse frio, Lyana começava a ver algo mais por trás daquela armadura que ele parecia vestir o tempo todo.

Rhaedrin sentou-se na cama estreita do quarto, retirando a espada de suas costas e colocando-a ao alcance, como sempre fazia. A luz fraca da lamparina iluminava o ambiente simples, projetando sombras que dançavam nas paredes de madeira. Lyana sentou-se na cama oposta, ajustando o violão ao lado. Ela observava Rhaedrin em silêncio, ainda intrigada com a forma como ele lidara com os homens mais cedo.

Ela puxou as pernas para cima da cama, envolvendo-as com os braços, enquanto o olhava com uma expressão pensativa.

— Você é... sempre assim? — perguntou ela, quebrando o silêncio.

— Assim como? — respondeu ele, sem erguer os olhos enquanto revisava o equipamento na bolsa.

— Frio, direto, mas... justo. — Sua voz era hesitante, como se estivesse pisando em terreno desconhecido.

Ele parou o que estava fazendo, levantando os olhos para encontrá-la. O silêncio entre os dois se alongou por um momento antes de ele responder.

— É o que preciso ser. Para sobreviver.

Ela desviou o olhar, pensando em como aquela resposta parecia tão simples, mas escondia algo muito mais profundo.

Enquanto a conversa se dissipava, Lyana notou algo que antes não havia percebido. Quando Rhaedrin retirou o manto para ajustá-lo sobre a espada, uma parte de sua nuca ficou à mostra. Havia uma marca ali, algo gravado em sua pele. Era uma linha sinuosa, quase como uma cicatriz, mas simétrica demais para ser acidental.

— Isso... o que é isso no seu pescoço? — perguntou ela, sentindo a curiosidade crescer.

Rhaedrin hesitou, seus olhos endurecendo levemente. Ele pareceu ponderar se deveria responder, mas finalmente inclinou a cabeça para o lado, deixando a marca mais visível.

— É o símbolo dos Highlanders, — disse ele, a voz baixa. — Todos nós recebemos isso quando somos aceitos.

Lyana franziu o cenho, inclinando-se ligeiramente para ver melhor.

— Mas por quê? Por que precisar de algo assim?

Ele a encarou, como se tentasse decidir até onde poderia ir com aquela explicação. Finalmente, suspirou e falou.

— Não somos apenas caçadores. Somos armas. Essa marca nos liga ao que somos, nos identifica para outros e para nós mesmos. Não é algo que escolhemos, mas algo que carregamos.

Ela o observou com mais atenção, percebendo um tom de cansaço na voz dele. Não físico, mas algo mais profundo.

— Parece mais um fardo do que um símbolo.

— E é, — admitiu ele. — Um Highlander não é livre, Lyana. Não enquanto carrega essa marca.

O quarto ficou em silêncio novamente, a intensidade do momento pairando entre os dois. Lyana olhou para ele, querendo dizer algo que aliviasse aquele peso, mas nenhuma palavra parecia certa.

— Isso dói? — perguntou ela, finalmente, apontando para a marca.

Rhaedrin ergueu uma sobrancelha, surpreso com a pergunta. Ele balançou a cabeça levemente.

— Não mais.

Ela sorriu levemente, um gesto pequeno, mas sincero.

— Bom... porque, apesar de tudo, acho que combina com você.

Ele desviou o olhar, como se não soubesse como reagir. Após um momento, levantou-se, indo até a pequena janela do quarto. Do lado de fora, o vilarejo estava mergulhado em silêncio, as poucas luzes restantes tremeluzindo como estrelas na escuridão.

— É melhor descansarmos. Amanhã, seguimos em frente, — disse ele, mudando de assunto.

Lyana assentiu, mas sua mente ainda estava presa na conversa. Ela via Rhaedrin de uma forma diferente agora. Ele não era apenas um guerreiro implacável, mas alguém que carregava um peso que poucos poderiam compreender. E, de alguma forma, isso o tornava ainda mais fascinante para ela.

Enquanto se deitavam, ela olhou para o teto de madeira, pensando em tudo o que havia aprendido naquele dia. E, pela primeira vez, sentiu que havia mais do que apenas sobrevivência à frente deles. Talvez, só talvez, houvesse algo mais esperando pelo Highlander e pela garota que agora o acompanhava.

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