O acampamento improvisado era simples, mas eficiente. Sob o céu estrelado, Rhaedrin ajustava pedaços de madeira para alimentar as chamas do pequeno fogo que iluminava a clareira. Ele havia encontrado o lugar após horas de caminhada, um terreno elevado cercado por árvores, com uma leve brisa que afastava os insetos.
Lyana estava sentada perto do fogo, segurando algo que ele ainda não tinha notado: um violão antigo, desgastado, mas inteiro. As cordas, apesar de finas, pareciam prontas para ecoar melodias esquecidas.
— Onde encontrou isso? — perguntou ele, apontando para o instrumento com um movimento de cabeça.
Ela olhou para ele e sorriu timidamente.
— Era do meu pai. Peguei antes de... antes de perder tudo.
Rhaedrin assentiu lentamente. Não havia mais perguntas a fazer. Ele sabia que histórias como a dela estavam sempre marcadas por tragédias que palavras não conseguiam descrever.
Enquanto ele trabalhava na comida — coelhos que havia caçado com armadilhas improvisadas —, Lyana começou a afinar o violão. O som suave das cordas se misturava com o crepitar do fogo, criando uma melodia que parecia flutuar pelo ar frio da noite.
— Não sabia que sabia tocar, — comentou ele, sem desviar os olhos da panela que equilibrava sobre as chamas.
— Meu pai me ensinou, — respondeu ela, dedilhando uma melodia simples. — Não sou muito boa, mas... é algo que me lembra de quem eu era.
Rhaedrin continuou trabalhando, mas havia uma leve suavidade em sua postura, como se a música tivesse conseguido quebrar uma barreira invisível. Ele cortou pedaços da carne, temperando-os com ervas que havia recolhido no caminho, o aroma rico preenchendo o ar.
— Você cozinha? — perguntou Lyana, o tom levemente surpreso.
— Highlanders fazem o que precisam para sobreviver, — respondeu ele, mexendo a panela com cuidado. — Ninguém está lá para fazer por nós.
Ela sorriu e voltou a tocar. A melodia era mais animada agora, quase como se estivesse tentando preencher o espaço entre eles com algo mais leve.
Quando a comida ficou pronta, ele serviu uma porção para cada um. Usavam pedaços de madeira como pratos improvisados, e o sabor surpreendeu Lyana.
— Isso está... bom, — disse ela, os olhos brilhando de surpresa.
— Comer algo ruim no meio de uma batalha pode ser a diferença entre viver e morrer. É melhor que seja bom, — disse ele, um leve sorriso tocando seus lábios antes de desaparecer.
Enquanto comiam, Lyana continuava tocando, alternando entre músicas simples e acordes dispersos, como se estivesse testando memórias. Rhaedrin a observava por trás de sua postura endurecida, mas havia algo em seus olhos que sugeria um lampejo de nostalgia.
Quando terminaram de comer, ele se recostou em uma árvore, a espada ao alcance da mão. Lyana, por sua vez, ajustou o violão no colo e olhou para ele com uma expressão que misturava curiosidade e hesitação.
— Posso tocar algo? Algo de verdade? — perguntou ela.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Se quiser.
Ela sorriu e começou a tocar uma melodia lenta, melancólica. A música parecia carregar o peso de algo antigo, algo que transcendia palavras. Enquanto os acordes preenchiam o espaço ao redor deles, Rhaedrin fechou os olhos, permitindo-se, pela primeira vez, relaxar completamente.
Quando ela terminou, o silêncio tomou conta novamente, mas era um silêncio diferente. Não era o peso opressor do mundo ao redor, mas algo mais íntimo, mais humano.
— Essa música... — murmurou ele, sem abrir os olhos. — Ela tem um nome?
Lyana hesitou antes de responder.
— Meu pai chamava de ‘Canção do Lar’.
Rhaedrin ficou quieto por um momento, então se levantou, pegando sua espada e colocando-a nas costas.
— Hora de dormir. Amanhã, seguimos cedo.
Ela assentiu, mas não tocou mais naquela noite. Apenas guardou o violão e se recostou em um canto, enquanto o fogo lentamente se apagava.
Rhaedrin manteve-se acordado, observando as sombras ao redor. A música dela ainda ecoava em sua mente, como uma memória que ele não sabia se era dele ou de outra pessoa.
Quando a madrugada finalmente chegou, ele estava pronto para seguir, mas agora, algo dentro dele parecia diferente. E, pela primeira vez em muito tempo, o silêncio não parecia tão solitário.
O fogo reduzia-se a brasas, emitindo um brilho fraco que mal iluminava o acampamento. A noite estava silenciosa, mas o silêncio era denso, como se o próprio ar esperasse algo. Rhaedrin permanecia acordado, encostado em uma árvore, a espada ao alcance da mão. Ele conhecia bem aquele tipo de quietude — era o prelúdio de algo perigoso.
Lyana dormia perto do fogo, o violão repousando ao seu lado como um companheiro leal. Seu rosto, suavizado pelo sono, parecia pertencer a outro tempo, a uma vida menos cruel. Mas Rhaedrin sabia que aquela era uma trégua momentânea.
Então, o som veio. Primeiro, um estalo seco, seguido por passos pesados que quebravam galhos e deslocavam a terra. Ele levantou-se, os olhos fixos na escuridão.
— Lyana, acorde, — disse ele, a voz baixa e firme.
Ela abriu os olhos, piscando para ajustar-se à luz das brasas. Ao ver a expressão de Rhaedrin, sentou-se rapidamente, o corpo tenso.
— O que foi? — perguntou, ainda atordoada.
— Algo está aqui.
Os passos se tornaram mais claros, acompanhados por um rosnado baixo, quase gutural. Da sombra das árvores, uma criatura começou a surgir. Era alta, grotesca, com braços desproporcionais e pele que parecia mal ajustada sobre ossos protuberantes. Seus olhos, amarelos e vazios, fixaram-se em Rhaedrin, e ela soltou um som que parecia um misto de rugido e sibilo.
— Atrás de mim, — ordenou ele, puxando a espada.
A lâmina negra refletiu o brilho suave das brasas, um contraste perfeito com a criatura. Ela não hesitou. Com um salto, investiu contra ele, suas garras levantando pedaços de terra e pedras. Rhaedrin desviou com um movimento preciso, girando a espada para desferir um golpe na lateral da fera.
O impacto fez o monstro recuar, soltando um grito distorcido. O sangue escuro que escorria de seu flanco tingiu o chão, e o cheiro metálico inundou o ar. Mas a criatura não parou. Ela voltou a avançar, cada movimento desajeitado, mas carregado de força bruta.
Lyana observava de onde estava, o coração disparado. Ela queria correr, mas os pés não se moviam. A luta era feroz, um jogo de velocidade e força. Rhaedrin atacava com precisão, mas a fera parecia crescer em fúria a cada golpe.
— Lyana, vá! — gritou ele, desviando de mais um ataque que arranhou o chão onde ele estava segundos antes.
Ela pegou o violão e começou a correr, mas um som diferente chamou sua atenção. Do corpo da criatura, pequenas formas começaram a surgir, sombras rastejantes que pareciam mover-se com uma agilidade cruel.
— Droga, — murmurou Rhaedrin, girando a espada para derrubar uma delas antes que se aproximasse demais.
Lyana viu uma das sombras vir em sua direção e tropeçou, caindo no chão. Antes que ela pudesse gritar, Rhaedrin apareceu, cortando a coisa em dois com um movimento rápido. Ele olhou para ela, os olhos sérios.
— Fique fora do caminho. Não vou perder tempo salvando você de novo.
Ela assentiu, apressando-se para um ponto mais alto, onde pudesse observar sem atrapalhar.
Enquanto isso, a criatura maior avançava novamente. Rhaedrin desviou mais uma vez, mas desta vez o golpe de sua espada foi direto. Ele cravou a lâmina no peito da fera, que soltou um último rugido antes de cair, o corpo dissolvendo-se lentamente em uma fumaça escura que parecia arrastar a própria escuridão consigo.
Rhaedrin recuou, respirando pesado, mas não permitiu que o cansaço o dominasse. Ele limpou a espada e olhou ao redor, certificando-se de que o perigo havia passado.
Lyana desceu do ponto onde estava, os olhos ainda arregalados.
— Você conseguiu, — disse ela, a voz carregada de alívio.
— É o meu trabalho, — respondeu ele, guardando a espada nas costas.
Ela se aproximou, ainda segurando o violão como se fosse uma tábua de salvação.
— E se aparecerem mais?
Ele deu de ombros, começando a caminhar.
— Então, eu lido com elas.
Ela hesitou por um momento antes de segui-lo. A noite parecia ainda mais escura agora, mas enquanto caminhava atrás dele, Lyana sentiu que, apesar de tudo, estava viva. E com ele, sabia que não havia espaço para dúvidas. Apenas para sobreviver.
Rhaedrin caminhava à frente, a postura rígida como sempre, a capa balançando suavemente enquanto ele seguia pela trilha coberta de folhas. A lua, quase cheia, iluminava o caminho, mas a floresta ao redor parecia observar em silêncio. Atrás dele, Lyana apertava o passo, ainda segurando o violão como se temesse que o instrumento desaparecesse de suas mãos.
Ela o observava enquanto andava, tentando entender o homem que havia se tornado seu protetor improvável. Ele era frio, mas não indiferente. Cada movimento, cada palavra parecia calculado, mas havia momentos — como quando ele a salvou da sombra rastejante — em que ela sentia algo mais, uma humanidade escondida sob as camadas de aço.
— Você sempre faz isso? — perguntou ela, quebrando o silêncio.
— Faço o quê? — respondeu ele sem se virar.
— Salva pessoas... enfrenta monstros... segue em frente como se nada tivesse acontecido.
Ele parou, virando-se lentamente. Os olhos cinzentos encontraram os dela, e por um momento, o mundo pareceu parar.
— Não é uma escolha. É o que um Highlander faz.
Ela hesitou antes de perguntar:
— Mas por quê? Por que você faz isso se... parece odiar tanto?
Rhaedrin ficou em silêncio por um instante, como se estivesse ponderando a resposta.
— Porque alguém precisa. E porque não sei fazer outra coisa.
Lyana não sabia o que dizer. Ele voltou a caminhar, e ela seguiu, agora com mais cuidado em suas perguntas.
O sol começava a nascer quando Rhaedrin finalmente parou. Haviam chegado a um pequeno riacho, a água cristalina correndo suavemente sobre as pedras. Ele se abaixou, tirando uma garrafa de couro de dentro do manto para enchê-la. Lyana, exausta, largou o violão ao lado e se ajoelhou na beira da água, mergulhando as mãos no líquido frio.
— Isso é... melhor do que esperava, — disse ela, lavando o rosto.
Rhaedrin sentou-se em uma pedra próxima, observando o horizonte.
— Vamos descansar aqui por um tempo. Mas fique alerta. Nem sempre dá para confiar em lugares tranquilos.
Ela assentiu, mas não podia evitar um suspiro de alívio. Pegou o violão e começou a dedilhar suavemente, um som leve que parecia se misturar com o som da água.
Rhaedrin observava em silêncio. Ele nunca se interessara por música, mas havia algo reconfortante na forma como ela tocava, como se cada acorde dissipasse um pouco do peso que ele carregava.
— Você já tocava antes de tudo isso? — perguntou ele de repente, quebrando o ritmo dos pensamentos dela.
— Desde criança, — respondeu Lyana. — Meu pai me ensinou. Ele dizia que... — Ela parou, a voz falhando por um momento. — Dizia que a música era a única coisa que podia transformar dor em algo bonito.
Rhaedrin não respondeu, mas ela percebeu um leve movimento em seus olhos, como se aquelas palavras tivessem atingido algo dentro dele.
Depois de um tempo, ele se levantou, esticando os braços.
— Vamos comer. Precisamos nos preparar antes de seguir viagem.
Ele começou a tirar de sua bolsa alguns pedaços de carne seca e um pouco de pão, enquanto Lyana observava, curiosa. Ele pegou uma pedra lisa e colocou a carne sobre ela, esquentando-a sobre uma fogueira que havia começado a acender. O cheiro logo encheu o ar, misturando-se com o frescor do riacho.
— Isso parece... bom demais para estar no meio do nada, — comentou Lyana, um leve sorriso surgindo em seu rosto.
— Highlanders aprendem a fazer o melhor com o que têm, — respondeu ele, mexendo na carne para garantir que não queimasse. — Comer algo que te sustente é tão importante quanto saber lutar.
Ela riu baixinho, pegando o pão que ele lhe oferecia.
— Então você é um cozinheiro também? Isso é inesperado.
— Só o necessário para sobreviver, — disse ele, mas ela notou o leve movimento de seus lábios, como se ele quase sorrisse.
Quando terminaram a refeição, Rhaedrin limpou a área rapidamente e começou a arrumar suas coisas. Lyana o observava, impressionada com a precisão de cada movimento, como se ele estivesse sempre preparado para partir a qualquer momento.
— Rhaedrin... — chamou ela, hesitante.
Ele olhou para ela, levantando uma sobrancelha.
— O que foi?
— Obrigada. Por tudo. Eu sei que não sou o que você queria trazer com você, mas... obrigada por não me deixar para trás.
Ele permaneceu em silêncio por um momento antes de responder.
— Só não me atrapalhe, e você será útil o suficiente.
Ela assentiu, mas dessa vez, o tom frio dele não a incomodou. Havia algo nas palavras que parecia menos duro do que antes.
Quando começaram a seguir novamente pela trilha, Lyana segurava o violão com mais força. Por mais difícil que o caminho fosse, ela sentia que, de alguma forma, não estava mais tão sozinha. E, talvez, nem ele.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 20
Comments