O sol da manhã atravessava as frestas das cortinas do quarto destruído, lançando feixes de luz sobre os destroços. Arüna dormia profundamente, exausto após a noite tumultuada, com os lençóis enredados ao seu redor. Seu rosto estava relaxado, mas marcas de lágrimas ainda eram visíveis em sua pele pálida.
Kaur estava parado na entrada, observando o caos à sua frente. Seu olhar percorria o quarto devastado — o espelho quebrado, roupas espalhadas, móveis danificados. Ele cruzou os braços, a expressão impenetrável.
— Como se destruir ajudasse em algo... — murmurou para si mesmo.
Ele deu alguns passos para dentro, parando ao lado da cama. Arüna se remexeu, mas não acordou. Kaur olhou para ele por um momento, seus olhos analisando o rosto sereno. Depois de um longo suspiro, ele se virou e saiu, chamando um criado para limpar o quarto.
Arüna acordou com o som de passos no quarto ao lado. Ele abriu os olhos lentamente, a luz do sol entrando pelas janelas recém-limpas. O quarto estava em ordem novamente, como se a tempestade da noite anterior nunca tivesse acontecido. Ainda assim, a dor persistia em seu corpo e em sua alma.
Sentou-se na cama, os cabelos desgrenhados e a mente pesada. Foi quando ouviu uma batida na porta. Antes que pudesse responder, a porta se abriu, e Kaur entrou sem cerimônia.
— Vista-se. Vamos sair em breve. — Kaur disse, direto, enquanto puxava uma cadeira e se sentava perto da mesa, onde um café da manhã simples que havia sido servido.
Arüna franziu o cenho, mas não respondeu. Levantou-se devagar, vestindo um manto pesado enquanto Kaur servia café para si mesmo.
— Para onde estamos indo? — Arüna perguntou, finalmente, enquanto se sentava à mesa, evitando o olhar de Kaur.
— Para uma vila ao sul. O inverno foi severo, e precisamos levar mantimentos. — Kaur respondeu, tomando um gole de café. — Não é um pedido. Você vai comigo.
Arüna apertou os lábios, irritado com o tom de comando, mas decidiu não discutir.
— Por que eu? Não seria mais eficiente levar seus soldados?
Kaur o encarou por um momento antes de responder, seus olhos avaliando Arüna.
— Porque é importante que as pessoas te vejam. Elas precisam acreditar que este casamento é mais do que um tratado político. Que você faz parte disso, como eu.
Arüna sentiu a bile subir à garganta, mas manteve a expressão neutra. Ele sabia que discutir seria inútil.
— Então, eu sou apenas mais uma peça no seu jogo. — Murmurou, amargo.
Kaur não respondeu imediatamente. Em vez disso, terminou seu café, colocando a xícara sobre a mesa com cuidado.
— Se é assim que você quer ver, Arüna, que seja. Mas hoje você vai ver algo que talvez mude essa perspectiva. Espero que cuide desse povo agora como se fosse o povo do qual você nasceu.
Horas depois, durante o caminho, o silêncio era cortante. A carruagem balançava suavemente enquanto seguia pelas estradas cobertas de neve. Arüna olhava pela janela, o silêncio entre eles tão pesado quanto o ar frio do inverno.
Foi Kaur quem quebrou o silêncio.
— A sua irmã. Ela se importava com essas vilas. — Ele começou, sem olhar para Arüna.
Arüna congelou, sentindo o coração apertar.
— Não fale dela. — Respondeu, sua voz carregada de tensão.
Kaur ignorou o aviso.
— Eu a vi uma vez, em uma situação parecida. Era primavera, e uma enchente havia devastado uma vila ao norte. Ela organizou os recursos, liderou as pessoas... mesmo sem saber que eu estava observando.
Arüna virou o rosto para ele, o olhar cheio de incredulidade e raiva.
— Você não tem o direito de falar dela. Você a matou.
Kaur finalmente encontrou o olhar de Arüna, seu rosto inexpressivo.
— Matei. Ela mereceu. — Admitiu, sua voz firme, mas sem emoção. — E ainda assim, reconheço a força que ela tinha. Não vou mentir sobre isso.
Arüna desviou o olhar, as mãos tremendo de raiva.
— Por que está me dizendo isso? — Perguntou, a voz baixa.
— Porque, por mais que você me odeie, há algo em você que me lembra dela. Algo que o torna mais útil do que imagina. — Kaur respondeu, voltando a olhar pela janela.
O silêncio voltou, mas agora estava carregado de algo mais: uma tensão que parecia prestes a explodir.
Mais tarde, na vila do sul
Arüna desceu da carruagem com o rosto oculto pelo capuz pesado. O vento frio cortava como lâminas, e a neve cobria o solo como um manto branco. Ele olhou ao redor, vendo os moradores da vila se aproximarem, hesitantes, mas cheios de expectativa.
Kaur já estava fora, supervisionando os soldados que descarregavam os mantimentos — sacos de grãos, cobertores, remédios. Sua postura era rígida, e ele falava com eficiência, organizando o trabalho sem perder tempo.
— Distribuam primeiro para as famílias com crianças pequenas. Certifiquem-se de que ninguém saia sem pelo menos um cobertor. — Sua voz cortava o ar gelado como um comando absoluto.
Arüna o observava à distância, tentando conciliar o homem diante dele com o monstro que o havia destruído na noite anterior. Kaur não era gentil; ele não sorria, nem oferecia palavras de conforto. Mas ele agia. E suas ações falavam mais alto do que qualquer coisa que ele pudesse dizer
— Lorde Kaur, temos o suficiente para todos, mas precisaremos racionar o próximo carregamento se o inverno se prolongar. — Um soldado informou.
— Então racionaremos. O importante agora é que ninguém morra de frio ou fome. — Kaur respondeu sem hesitar.
Enquanto caminhavam pela vila, Arüna viu Kaur se aproximar de uma criança que estava descalça, seus pés vermelhos pelo frio. Sem dizer nada, ele tirou seu próprio casaco e o colocou sobre os ombros do menino. A mãe da criança tentou agradecer, mas Kaur apenas acenou com a cabeça e seguiu em frente.
Arüna franziu a testa. Era estranho vê-lo assim. Não havia arrogância em seus gestos, apenas uma determinação silenciosa.
— Ele não é o que parece, não é? — Uma voz suave ao seu lado o fez se virar. Era uma mulher idosa, uma moradora da vila. — Lorde Kaur é duro, mas justo. Salvou minha família quando estávamos à beira da fome no último inverno.
Arüna não respondeu, mas as palavras da mulher ecoaram em sua mente enquanto ele continuava a observar.
Ao entardecer, depois de horas de trabalho, a distribuição havia terminado, a vila estava mais tranquila, e os soldados começaram a recolher as carroças vazias. Arüna estava sentado em um banco de madeira próximo a uma fogueira, aquecendo as mãos. Kaur se aproximou, tirando as luvas de couro e estendendo as mãos para o calor do fogo.
— O que achou? — perguntou, sem olhar para Arüna.
— Do quê?
— Do que viu hoje. — Kaur finalmente virou o rosto para ele, seu olhar intenso como sempre.
Arüna hesitou. Queria desprezá-lo, mas não podia negar o que havia testemunhado.
— Você se importa com eles. — Disse, por fim, sua voz baixa.
— Não é uma questão de me importar. É meu dever. Se eu não cuidar do meu povo, ninguém o fará. — Kaur respondeu, a frieza em suas palavras contrastando com suas ações do dia.
Arüna o encarou, tentando entender o enigma que era KauR. Um homem capaz de crueldades inimagináveis, mas que sacrificava seu conforto pelo bem de outros.
— E quanto a mim? — Arüna perguntou, a voz carregada de uma amargura contida.
Kaur o olhou, seus olhos sombrios como a noite.
— Você é meu. Isso nunca vai mudar.
Ele se afastou, deixando Arüna sozinho com seus pensamentos. O vento gelado voltou a soprar, mas Arüna quase não sentiu. Dentro de si, as chamas da dúvida e da raiva queimavam com intensidade renovada.
"Ele pode cuidar de um vilarejo inteiro... mas destruiu minha vida sem remorso algum. Como alguém pode ser assim?"
Arüna sabia que a batalha entre eles não era apenas externa. Era uma luta silenciosa, feita de olhares, palavras e ações. E ele precisava estar preparado. Kaur era um enigma um tanto óbvio.
continua...
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Atualizado até capítulo 64
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