Minha Santa Deusa!

Meus dias corriam sempre no mesmo compasso tedioso: trabalho, casa, e da casa para a biblioteca. Eu encontrava refúgio nos livros antigos, especialmente nas histórias da era vitoriana. Amava a atmosfera, a linguagem rebuscada, o perfume imaginário de papéis amarelados. Contudo, quase sempre detestava os finais. Eram apressados, vazios de alma.

Foi então que decidi escrever meus próprios romances. O problema, porém, era sempre o mesmo: não conseguia terminá-los. Faltava-me inspiração. Afinal, como narrar experiências que eu jamais havia vivido?

Tudo mudou no instante em que um maldito ônibus me ceifou da realidade. Quando despertei, não estava no hospital — mas em um templo etéreo, envolto por luz dourada. À minha frente, surgia uma divindade de beleza indescritível: a deusa Luminus.

Com voz melodiosa, ela me ofereceu uma segunda chance: renasceria sob o nome de Eleanor Victoria Kensington. Não revelou nada sobre minha nova identidade, mas prometeu conceder-me uma dádiva inestimável — uma beleza arrebatadora, a mente prodigiosa de uma erudita e o poder de manejar a magícula, essência pura da magia.

Sim, magia existia naquele mundo. E eu teria mana inesgotável. Contudo, havia um detalhe que a deusa esqueceu de mencionar: naquele reino, a magia era privilégio masculino, e apenas os nobres a herdavam. Mulheres, raramente, nasciam com tal dom — e, quando o possuíam, suas habilidades eram restritas à cura, à comunicação com animais, ou ao cultivo de plantações.

O que me intrigou ainda mais foi descobrir que Luminus era uma devota dos romances de época do meu mundo. E, para minha perplexidade, ela revelara ser leitora assídua das minhas próprias histórias — aquelas jamais publicadas. Perguntou-me por que eu nunca dera um final a elas. Não soube responder.

Antes de enviar minha alma, a deusa declarou:

"Seus finais não nasceram porque te faltava viver. Agora, como Eleanor, provarás alegrias, dores e dilemas. Só então compreenderás o peso de um desfecho. Este será o presente que te dou: a inspiração que tanto buscaste."

E assim, mergulhei no abismo da reencarnação.

Reencarnei no corpo de um bebê. Minha primeira lembrança foi amarga: diante de mim, uma jovem de cabelos castanhos ondulados e olhos esverdeados exalava seu último suspiro. Minha mãe. Partiu antes que eu pudesse conhecê-la.

O destino, cruel e inflexível, entregou-me à casa dos Kensington, mas não como filha legítima. Fui marcada desde o berço como a bastarda do Barão Art Kensington, sujeita às zombarias dos irmãos e ao desprezo silencioso da baronesa. Cresci como serva, e não como herdeira.

Ainda assim, Eleanor não se curvou. Minha beleza, rara e inquietante, fazia com que até as filhas da nobreza me observassem com inveja. E nos intervalos do serviço, minha verdadeira paixão florescia: entre as estantes da vasta biblioteca da família, eu lia escondida, absorvendo conhecimento como quem bebe um vinho proibido.

Certa manhã chuvosa, um anúncio caiu sobre a mansão como um trovão: o Arquiduque de Silverlake, homem de poder temido, exigia o cumprimento de um pacto antigo. Anos atrás, em uma viagem, salvara a vida do Barão Art; em troca, este lhe prometera a mão de uma de suas filhas.

O Barão gelou. Perder sua preciosa herdeira seria devastador. Mas a jovem baronesa Emily, em sua astúcia venenosa, sugeriu uma solução:

— “Pai, por que oferecer nossa joia mais reluzente quando tens uma… outra filha?”

A malícia de sua proposta era clara: entregar a bastarda em lugar da legítima.

Chamaram-me ao salão principal. Entrei com postura ereta, mas os olhos baixos, as mãos entrelaçadas nas costas.

— Vossa Excelência o Barão mandou me chamar? — minha voz era calma, embora o coração latejasse.

O salão, com seus candelabros dourados e tapeçarias pesadas, ecoou com a voz fria do Barão:

— Arrume suas coisas. Partirás para Silverlake. Serás esposa do Arquiduque.

Meus lábios se entreabriram, incrédulos.

— Mas, senhor… como poderia uma serva tornar-se esposa de tão ilustre senhor?

O Barão cerrou os punhos.

— Não ouses questionar! Obedece!

Inclinei-me em reverência e recuei. No caminho aos meus aposentos, encontrei Emily, encostada com ar vitorioso.

— Deixe esses trapos, bastarda. Providenciei alguns dos meus vestidos. Não podes apresentar-te diante do Arquiduque com ares de criada. — Seus olhos faiscavam de desprezo. — E lembra-te: erguerás a voz e dirás ser filha do Barão. Não me faças passar vergonha.

Assenti em silêncio, mesmo que cada palavra dela fosse uma lâmina contra minha dignidade.

Horas mais tarde, a velha carruagem Kensington rangia pelas estradas molhadas até o território de Silverlake. Quando, enfim, as colinas abriram-se, avistei o castelo — uma fortaleza de pedra negra erguida sobre o lago prateado, imponente como um titã adormecido.

Ao descer, um homem de postura distinta aproximou-se. Seu cabelo grisalho contrastava com a energia nos olhos azuis.

— Seja bem-vinda, Baronesa Kensington — disse, curvando-se levemente. — Sou Lavosk Durien, servo do Arquiduque.

Inclinei-me educadamente.

— A honra é minha, Senhor Lavosk.

Ele sorriu com modéstia.

— Senhora, não sou mais que um servo. O Arquiduque aguarda. Peço que me siga.

E assim, com o coração oscilando entre temor e fascínio, adentrei os portões da corte de Silverlake, sem imaginar que aquele passo era o verdadeiro início da minha história.

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Ana Regina Fernandes Raposo

Ana Regina Fernandes Raposo

AUTORA ESTOU MUITO FELIZ DE LER MAIS UMA DAS SUAS HISTÓRIAS.

2024-08-20

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