Uma escolha injusta

Não tenho muitas lembranças da minha infância. Ao menos lembranças felizes. Dizem que quando vivemos momentos traumáticos nosso cérebro cria barreiras para nos proteger e por isso não lembramos, porém, acho que tive momentos traumáticos demais para meu cérebro dar conta de apagar e optou por apagar os momentos felizes, se é que existiu algum.

Chega ser cômico que uma situação já ruim pode piorar. Eu achava que não podia ser pior que ser um saco de pancadas, até meu irmão me tocar. Aquele pervertido, nojento. Tudo começou um dia enquanto eu tomava banho, quando percebi ele estava parado na porta me olhando. Fiquei sem reação.

Ele então virou as costas e saiu. depois daquele dia passei a trancar a porta do banheiro. Porém não adiantava.

- Você tem dez segundos para destrancar a porta por bem. Um, dois, três, quatro, cinco, seis...

Eu sempre abria no quatro, mas nesse dia em especial eu estava determinado a não abrir.

- Dez.

Esperei ele arrombar a porta ou algo do tipo, porém nada aconteceu. Tive a esperança de que ele tinha desistido e ido embora. Retomei meu banho, me sequei, coloquei a roupa e saí. Tudo tranquilo até eu chegar no meu quarto e encontrar ele sentado na cama segurando o cabo do carregador do computador dobrado em dez voltas. Pensei em correr e ele pareceu ler meus pensamentos.

- Te aconselho a não tentar correr. Entre e aceite o teu castigo.

Sem escolha entrei no quarto.

- me...

- nem começa. Até quantos eu contei? Responda, Fábio!

- Dez. - engoli em seco.

- Sabe o que significa? Está vendo esse cabo? Ele está com dez voltas e serão dez puxadas. Você escolhe: bunda, coxas, costas ou deixa para eu escolher?

A sensação de angústia e impotência tomou conta de mim enquanto as palavras do meu irmão ecoavam no quarto. Aquele momento, que já era carregado de trauma, transformou-se em um pesadelo ainda mais surreal. A escolha entre áreas sensíveis do corpo e a contagem meticulosa adicionavam um componente de terror psicológico à situação.

Diante da escolha dolorosa que me era imposta, engoli em seco e, resignado, murmurei "costas". O medo era palpável, e o cabo do carregador, agora dobrado em dez voltas, prometia ser um instrumento de castigo.

- Tire a camiseta. Vamos!

Obedeci.

- Fica de bruços na cama. E não esqueça de contar cada puxada, afinal eu posso me perder e acabar passando das dez.

A sensação de desespero crescia à medida que eu obedecia às ordens do meu irmão. Deitado de bruços na cama, a espera pelas puxadas do cabo do carregador parecia uma eternidade iminente. Cada fibra do meu ser clamava por escape, mas a ameaça silenciosa pairava sobre mim.

A primeira puxada cortou o ar, acompanhada pelo estampido do cabo atingindo minha pele. A dor se manifestava de forma aguda, como se o próprio castigo fosse uma extensão do sofrimento que já carregava. Contei cada puxada como um mantra de penitência, cada número ecoando no quarto como um testemunho silencioso do meu tormento.

Quando terminou, Renato saiu do quarto. O quarto agora envolto em silêncio, restava apenas a ressonância das puxadas do cabo e a presença sufocante do trauma que se acumulava. Cada ferida marcada nas minhas costas contava uma história de dor e submissão, enquanto eu permanecia ali, estremecendo e suando frio.

A saída de Renato deixou para trás um vácuo de terror, e eu me encontrava em um estado de vulnerabilidade crua. Cada respiração era um lembrete doloroso do que acabara de acontecer, e as marcas físicas agora se alinhavam às cicatrizes emocionais que me acompanhavam desde a infância.

A solidão do quarto era quase ensurdecedora, interrompida apenas pelo som abafado de minha própria respiração entrecortada. O tempo parecia ter perdido seu ritmo, enquanto eu tentava processar o que acabara de ocorrer, preso na teia sombria que minha própria família se tornara.

Devo ter adormecido ou desmaiado, pois quando recobrei a consciência, minha mãe estava passando alguma coisa gelada nas minhas costas. Devia ser alguma pomada ou era só gelo.

Enquanto minha mãe tentava aliviar a dor, as lágrimas brotavam de meus olhos, uma torrente incontrolável de emoções reprimidas. O choro era uma expressão visceral da minha angústia, uma resposta à violência infligida por meu próprio sangue.

Em meio à dor física e emocional, o abraço materno se tornou um farol de consolo na escuridão. As palavras não eram necessárias; o simples toque e a presença da minha mãe ofereciam um refúgio momentâneo da cruel realidade que habitava meu lar.

No entanto, mesmo envolto pelo calor maternal, eu permanecia enredado em um turbilhão de sentimentos confusos.

Minha mãe não é uma pessoa ruim, ela é gentil, carinhosa, companheiro, boa mãe... Para o Renato. Para mim ela é alguém que faz aquilo que é obrigado a fazer. Quando ela cuida dos meus ferimentos não é porque ela me ama ou algo assim, é porque ou meu pai pediu para ela cuidar dos machucados para não dar problema de eu faltar na escola ou passar mal e alguém descobrir ou, quando muito raramente ela sente pena de mim.

Independente do motivo, eu aproveito o máximo que consigo. e tento pensar que ela faz aquilo porque se importa comigo. E quando ela não faz nada para me ajudar, digo para mim mesmo que é porque meu pai não deixa. Sei que é mentira, mas, poxa, eu só quero um pouco de carinho e atenção da minha mãe. Ser verdadeiro ou não da parte dela não faz muita diferença para mim.

Na verdade, faz sim, mas deixa no off.

Capítulos
Capítulos

Atualizado até capítulo 65

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!