A carruagem prosseguia lentamente por entre as terras cobertas de gelo branco que se estendia por quilômetros e quilômetros de distância. O céu de um tom celestial e vibrante estava livre das nuvens fofas e cinzentas que o bloqueava há quase três meses.
Nas altas montanhas de Bullock, o inverno tinha sido rigoroso e implacável, as árvores desnudas de suas folhas estavam encapadas por um punhado de cristais gelados tornado-as alvas e frias como todo o resto do mundo, contudo um olhar mais atento podia ver pequeninos brotos verdes escapando e desabrochando dando o indício de que em breve a floresta verdejante e viva estaria pulsando novamente no esplendor da primavera.
Esmeralda não veria aquela primavera esplendorosa ao qual estava tão acostumada, a última imagem que teria de sua terra natal seria a de um inverno frio e ermo ao qual tanto detestava desde muito nova.
Seu coração pesava conforme as árvores altas e esqualidas começavam a desaparecer e a serem substituídas por campos desolados e cobertos pelo gelo frio e sem vida. A despedida de sua casa não poderia ser menos triste.
Por mais que tentasse se acalentar com a ideia de finalmente sair do condado ao qual foi trancafiada por muito tempo, ainda era difícil não sentir o peso da separação e especialmente não temer o futuro incerto que a aguardava. Ela sabia que trocava uma gaiola por outra com a única diferença do requinte da última, afinal dessa vez quem a aprisionava era o duque de Kingborn, o seu verdadeiro pai.
"Ao menos nessa transição conhecerei o mundo" pensou consigo mesma enquanto observava pela janela da carruagem terras em que jamais tinha pisado. Lá no fundo, ela sabia que o pensamento era uma tentativa de conter a dor em seu coração desde que descobriu a verdade.
Desde muito nova tinha sido trancafiada dentro da mansão de Bullock. A ideia de que pudesse sair para outros lugares era impensável, a quantidade de criados que os serviam eram mínimos, e tudo para quê? Para sustentar aquela mentira! Mas apesar de todos os males, não conseguia ter raiva ou ódio. Não quando aquelas pessoas a amaram tanto e sempre zelaram por ela, afinal o amor, o verdadeiro amor, não pode ser forjado.
Esmeralda fechou os olhos momentaneamente e sentiu duas lágrimas escaparem de seus olhos semicerrados. Naquele momento, as memórias de sua infância passaram diante de si a fazendo recordar dos gestos carinhosos de sua família, do seu pai... ou melhor, do conde a ensinando a cavalgar, da condessa a aninhando nos braços... Não era algo que fariam se não a amassem, disso ela tinha certeza, mas ainda assim era difícil perdoar anos e anos de mentira.
Assim como tinha sentimentos conflitantes em relação a sua família adotiva, também os tinha com o duque de Kingborn. Esmeralda nunca se considerou uma pessoa ambiciosa, a única coisa que desejava era ser livre para conhecer o mundo, sem regras ou restrições, entretanto ser a filha de um duque, uma posição tão prestigiada, ia completamente contra aos seus desejos. Ela não estava animada para o momento em que encontraria com o seu verdadeiro pai, pois assim que o fizesse estaria assinalando a sua sina.
Com olhos entristecidos, ela observava a paisagem que parecia tão sem vida como ela naquele momento. Como adoraria voltar para casa e ser recebida pelos braços de sua verdadeira família e fingir que nada tinha acontecido! Em alguns momentos viver na mentira era muito mais agradável do que enfrentar a dura realidade. Entretanto ela não detinha poder para mudar os fatos.
Sua mãe não era sua mãe, mas sim a sua tia, e a sua verdadeira mãe estava morta há muito tempo... Mas para ela, a biologia e a genética não lhe importavam, afinal quem a criou com tanto zelo jamais perderia o posto de mãe ou pai. O que mais a machucava em tudo era a mentira contada anos a fio a impedindo de realizar os seus sonhos, por essa razão tinha aceitado sem pensar duas vezes em partir, tudo foi resolvido no calor do momento, mas tempos depois a raiva tinha se dissipado e apenas restou o amargo e frio arrependimento. Como foi tola e orgulhosa!
Naquele momento, a caminho do ducado, o arrependimento bateu forte, mas não poderia voltar, já era tarde demais, Esmeralda não poderia renegar as suas origens e muito menos o seu pai biológico, o duque.
Cassin de Kingborn. O seu "verdadeiro pai". Pensar naquele homem lhe trazia certo desconforto, especialmente por sentir que a culpa era dele por mandar aquela carta estúpida contando toda a verdade e de brinde uma carruagem que estava pronta para levá-la imediatamente. Mas ele ainda era o seu pai e era compreensível que quisesse vê-la, afinal para ele, Esmeralda estava morta desde o nascimento, se não fosse pela parteira que revelou tudo, talvez jamais tivesse descoberto o paradeiro de sua segunda filha.
"Aquela velha maldita tinha de ter aberto a boca", pensou mal humorada ao passo em que um biquinho de irritação se formava em seus lábios, mas logo em seguida se arrependeu do pensamento tão odioso e em seguida soltou um suspiro profundo de tristeza. E pensar que em menos de três horas atrás ela se preparava para a aula de administração de comércio, uma matéria que dificilmente aplicaria já que a partir daquele momento a única coisa que deveria administrar seria a propriedade de seu marido. Esmeralda estremeceu com a ideia de casamento que naquele momento parecia ser inevitável.
Por mais que sua família carregasse o título de conde, o território de Bullock estava muito longe do prestígio que outros condados possuíam. A dimensão da propriedade dos Bullock era pequena e talvez um Baronato tivesse mais terras do que a família de condes.
Os Bullock tinham três gerações, o que era consideravelmente pouco quando se analisava outras famílias da aristocracia, eles apenas receberam o título devido as grandes contribuições do cavaleiro Arnold Valerian Bullock que liderou as esquadrias para tomar o território do norte que estava sendo atacado por piratas e liquidando um exército de dez mil homens usando apenas a sua inteligência.
O até então monarca Gargalan queria presentear o cavaleiro, mas sabendo da inutilidade das terras a sua disposição, considerou que dar um título de alto valor como aquele seria o suficiente para premiar e honrar o principal contribuinte da batalha.
Mas toda essa história, apesar de bela e ser motivo de orgulho, no fim indicava que era um condado com o mesmo prestígio de um Baronato e sem uma grande linhagem por trás, o que significava, por fim, que para Esmeralda a última de suas preocupações seria o casamento por aliança, ao menos até aquele momento quando se descobriu filha de um duque e um muito impaciente, uma vez que impunha sobre ela e os cocheiros que se revezavam uma viagem que testava todos os seus limites.
Devia ser por volta do sétimo dia em que estava enclausurada na luxuosa carruagem. Aos poucos, observou a transição da neve alva para a grama verde e viçosa, as árvores possuíam troncos de um marrom bem escuro e havia uma quantidade considerável de folhas tomando conta dos galhos. O clima era levemente frio, mas já há muito tinha abandonado os casacos de pele e as mantas que a cobriam usando apenas roupas de manga que não fossem tão quentes. Esmeralda tinha consciência de que a mudança radical de paisagem se devia pela proximidade em que estava do ducado que ficava próximo ao mar, o que era de fato uma surpresa, afinal uma viagem daquela distância normalmente levaria cerca de uma quinzena para ser concluída, mas é claro que considerando o modo em que viajavam dia e noite sem tempo para paradas e descanso adequado, o tempo de percurso havia diminuído consideravelmente.
A jovem não estava nem um pouco contente com a maneira que viajavam, estava sendo insuportável ficar trancada e, por mais espaçosa e luxuosa que aquela carruagem fosse, com o passar dos dias se tornou minúscula e sufocante.
Quando pensou que estava prestes a entrar em um colapso de nervoso e claustrofobia, finalmente avistou uma mansão tão majestosa e gloriosa como o nascer do sol.
Era uma construção elegante e etérea. Não se parecia nada com as propriedades convencionais que se assemelhavam a pequenos castelos, pelo contrário, era uma mansão retangular e finamente acabada com uma tinta branca e imaculada apesar do jardim florido que se desdobrava ao seu redor, as janelas eram altas e de um cristal finíssimo que rebatiam os raios solares.
A carruagem diminuiu a velocidade conforme adentrava nos domínios do duque de Kingborn e logo na entrada foram saudados por um arco de mármore branco com rosas entalhadas e no meio uma águia imponente com as asas levantadas como se estivessem prontas para alçar voo e o bico levemente aberto como se dele saísse um grito agudo de aviso para as possíveis presas. Aquele era o símbolo de Kingborn e estampava o brasão da casa.
Por mais mal humorada que estivesse, Esmeralda teve de ceder ao encanto do lugar. Era o sumo do requinte e luxo.
O veículo que a carregava contornou a fonte gigantesca que estava no meio do pátio principal e logo em seguida parou em frente a escadaria que muito provavelmente a levaria para o interior da mansão.
Esmeralda estava encantada com a beleza dos personagens esculpidos na fonte, eram duas mulheres com roupas esvoaçantes que sorriam alegres enquanto carregavam dois vasos que estavam levemente tombados e por onde a água jorrava. Ela estava ansiosa para se aproximar das estatuetas e observar mais de perto os detalhes, contudo foi bruscamente retirada de suas divagações com o cocheiro anunciado que finalmente haviam chegado, logo em seguida a porta foi aberta por um homem muito bem apessoado e vestido elegantemente.
O homem ofereceu a mão para que ela descesse da carruagem, a jovem pegou na mão do homem e começou a descer degrau por degrau, mas suas pernas estavam bambas e ela cedeu, não fosse pelo rapaz talvez tivesse caído no chão. Instantaneamente ela sentiu suas bochechas arderem de vergonha e manteve os olhos baixos por todo o tempo sem saber o que fazer, jamais se deparou com uma situação como aquela.
– A Milady está bem? - o homem a indagou apenas aumentando em Esmeralda um sentimento de constrangimento muito grande. Ela nunca foi destrambelhada a ponto de tropeçar ou cair por qualquer coisa, a culpa era do longo tempo em que ficou presa na carruagem sem se exercitar ou alongar.
– Estou sim, muito obrigada - seu agradecimento soou em um murmúrio desconcertante e o homem apenas se afastou silenciosamente.
Esmeralda se virou para a frente e notou uma pequena plateia a observando, devia haver uma dúzia de empregados pelo menos, todos enfileirados para recebê-la e a frente havia um homem de meia idade com cabelos esparsos e brancos. Ele estava muito bem vestido e se portava com certa pompa. O homem se aproximou e fez uma referência.
– Milady, eu sou Kinsley, o mordomo principal da mansão de Kingborn e estou aqui para recebê-la e guiá-la. Qualquer necessidade que sentir poderá recorrer a mim ou a qualquer um dos empregados, todos nós estaremos dispostos a atender aos seus desejos - após ouvir todo o discurso de boas vindas, Esmeralda se sentiu desconcertada sem saber o que era apropriado a se dizer naquele momento. Após abrir e fechar a boca uma ou duas vezes, as palavras finalmente vieram, embora ela não tivesse certeza se era o certo a se dizer na ocasião.
– Agradeço pela sua gentileza Kinsley e fico muito contente com a recepção, tenha certeza de que me lembrarei de suas instruções futuramente – o mordomo se curvou elegantemente e logo em seguida apresentou uma criada, seu nome era Cora e ela seria responsável por atendê-la durante toda a estadia. Esmeralda não teve muito tempo para analisar a sua mais nova companheira, pois logo em seguida, Kinsley se adiantava novamente para dizer mais algumas palavras.
– Milady, o duque pediu por sua presença assim que chegasse, enquanto o atende gostaria que lhe fosse preparado um banho e uma refeição? – por mais educado que fosse o tom empregado pelo mordomo, não era o suficiente para mascarar a ação deselegante do duque. Esmeralda estava irritada com a falta de tato do homem que lhe impôs uma viagem tortuosa e naquele momento a privava de descanso, mas sabendo que não teria muita voz na questão, ela apenas assentiu brevemente e logo foi guiada para o escritório do duque.
Conforme prosseguia o seu caminho ao lado do mordomo, Esmeralda pôde admirar a sua mais nova casa.
Era de fato bela. O Hall de entrada era grande e possuía uma intercalação de pisos brancos e pretos, como em um jogo de xadrez, ao meio era possível vislumbrar uma mesa redonda que era enfeitada por um vaso de cristal com flores exuberantes que se sobressaiam para fora e logo acima um gigante lustre iluminava o cômodo. Nos lados esquerdo e direito havia arcos de entrada de mármore igualmente adornados com as rosas e a águia entalhada no seu topo, a frente uma escadaria longa que se dividia em outras duas escadas menores por onde foi guiada até chegar no segundo andar do lado direito, onde ficava o escritório do duque.
Parada em frente à porta, seu coração saltou. Finalmente encontraria o homem que dizia ser seu pai. A jovem suspirou profundamente como se pedisse forças e então bateu na madeira suavemente. Em resposta, uma voz gélida deu permissão para que entrasse.
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Atualizado até capítulo 84
Comments
Dark Dynamix
Estou me sentindo tão inspirada depois de ler essa obra-prima.
2023-07-18
2
Delwyn
Adorei cada palavra! ❤️
2023-07-18
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