Espiã.

Em algum lugar, 2011.

Não é bem a virada do ano dos sonhos, ao menos ainda respiro, mesmo que ofegante apesar de não ter feito nenhum esforço físico, porém toda essa atmosfera - incluindo no sentido literal - e os riscos que corro - e também minha família - só me deixam assim.

O velho volta com um papel. Sua expressão é misteriosa, fria, porém pressionando um pouco um lábio contra o outro, talvez com raiva de alguma coisa. Percebo que as letras naquele velho papel foram manuscritas em uma bela caligrafia. É um contrato! Ele fala:

- É só assinar... não faz muita diferença ler ou não - aparentemente estava com pressa e me deu uma caneta de estilo arcaico.

- Onde eu estou e como chego em casa? - perguntei enquanto pegava o papel e a caneta.

Comecei a escrever meu nome bem devagar, para tentar ler algumas coisas, contudo fui surpreendida. O velho enfiou uma tachinha na minha mão. Gritei de dor e susto e ele recolheu o papel, mostrando que estava assinado com meu sangue.

Quando abro os olhos percebo que estou em casa. Teve um hiato de tempo que não faço ideia. Só consigo imaginar que alguém bateu em minha cabeça por trás e me fez apagar ou me deram uma bebida - talvez obrigando a beber - e me fez desmaiar e perder a memória. Deve ter sido uma dessas duas coisas. Ainda penso em uma terceira, algum tipo de veneno na tachinha usada para assinar o contrato. Deixo os pensamentos de lado e procuro meu celular e encontro um aparelho novinho. Há uma ligação em andamento.

- Alô? - atendo, sentindo minha cabeça doer. Provavelmente fui atingida e desmaiei.

- Alô... Era para saber se já tinha acordado. Um dos nossos estará aí - uma voz feminina me deu um recado e desligou antes que eu pudesse fazer qualquer pergunta. Que merda.

Instintivamente levei minha mão para um dos lugares em que sou útil para esse pessoal e fiquei aliviada por estar tudo em ordem com minha amiguinha. Eu levantei-me para ir ao banheiro, todavia a campainha tocou.

- Que educados... - falei em voz alta mesmo sem me importa se ouviriam a minha tradicional ironia enquanto abria a porta.

Um belo rapaz estava lá... não... não consigo sentir atração. De alguma forma consigo sentir a maldade em seu coração e fico com medo ao vê-lo entrando na minha casa sem que eu falasse mais nada.

- Sheila - ele começa me falando um nome e certamente não é o dele.

- É Leila, na verdade - faço uma correção ao perceber que o nome era parecido com o meu.

- Agora é Sheila. Veja - e saca um jornal impresso do seu terno.

Eu olho. E lá estava uma matéria... fica difícil continuar lendo enquanto as lágrimas escorrem do meu rosto, pois lá estava escrito que uma universitária chamada Leila faleceu em um grave acidente de carro... enquanto eu não conseguia mais ler, soluçando de tanto chorar o homem impiedoso fala:

- É para a sua segurança e para a segurança dos seus familiares... você mesma pediu por isso - ele me fala, como se eu soubesse dos detalhes ou mesmo tivesse alguma escolha.

- Quanto tempo de serviço e o que tenho que fazer? - perguntei com ódio já assimilando que agora sou uma espiã.

- Você é uma jornalista - ele abre a mala que trouxe e mostra os documentos da Sheila, que agora sou eu - e entrará no círculo de amizade dos rivais do partido que você trabalha - ele dá alguns detalhes e silencia enquanto acende um cigarro.

- E por quanto tempo terei que trabalhar? - pergunto e reflito naquelas palavras... então ainda trabalho para o Partido Vermelho e Amarelo...

- Isso depende de muitos fatores - comenta após acender o cigarro e dar uma tragada.

O cheiro é ruim, mas reconheço que ao menos é só um cigarro comum. Fico quieta enxugando as lágrimas, buscando forças, e ele continua:

- Você pode morrer em serviço no pior dos casos, pode morrer de forma natural... acidental... de toda forma, se fizer tudo certo, ficará totalmente livre em quatro anos... se falhar... - ele para e volta a fumar.

- Eu morro!? - concluo.

- Pode ser... ou trabalha mais quatro anos, isso não depende de mim, sou só um funcionário - ele dá de ombros. É um psicopata, sem qualquer empatia para comigo.

Só me mantive onde estava ele acenou com a cabeça e saiu. Pensei em perguntar sobre a minha liberdade, se eu poderia ser Leila ou se teria que ser Sheila. Percebi que era uma pergunta boba, ele não sabia a resposta e essa liberdade pode nunca surgir.

Eu fecho a porta. Vou ao espelho e percebo que minha aparência está modificada. Alguém pintou meu cabelo e mudou meu penteado. Volto para o quarto e, quando olho para a janela, percebo que, apesar do quarto ser quase idêntico ao que eu morava em Capitalia, não estou mais lá. Resolvo dar uma olhadinha na mala. Preciso saber quem é a nova eu. Que bizarro. Que pesadelo. QUE INFERNO! MALDITOS. FILHOS DA PUTA.

Após o rápido acesso de raiva... choro um pouco... ainda penso na morte da Leila... na minha família... como eles receberam essa notícia... começo a me sentir vigiada... sinto que posso estar pirando...

Paro tudo e procuro alguma coisa na minha casa nova. Ao menos a geladeira está cheia. Eu fiquei um pouco mais que um dia inteiro sem comer, mas não estou com tanta fome assim, porém me sinto fraca. Como as frutas que mais gosto e volto para olhar a pasta. Preciso conhecer a nova eu. É preciso reconhecer que ainda há alguma esperança, as chances são mínimas, entretanto a verdade é que eu poderia estar morta. Aliás, eu estou, como Leila. Preciso fazer escolhas melhores como Sheila. Acho que isso deve ser entendido como uma rara segunda chance e seria bizarro se houvesse uma terceira. Volto a me olhar no espelho novamente antes de analisar com cautela as informações na mala. Tento me acostumar com minha nova imagem esse penteado curto que não combina comigo - ou com Leila - a cor até tudo bem, sempre fiquei curiosa com uma nova cor de cabelo, porém seja como for eu preciso de alguma forma, não sei como, criar uma memória pessoal da minha nova eu, Sheila.

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