02

O último raio de sol desaparece entre as árvores, indicando que chegou o momento de agir. Deixo os gêmeos terminando de arrumar a cozinha após o jantar, por insistência deles, e corro para o santuário no porão da casa.

Faz uns bons anos desde que vim até esse lugar pela última vez. O porão permaneceu intocado desde então, e muitos dos meus objetos mágicos estão empoeirados. Uma emoção se apodera de mim. A mistura de nostalgia e ansiedade.

Respiro fundo, inalando o ar úmido mas ainda repleto de magia do santuário. Acendo algumas velas e incensos antes de começar a fazer uma pequena faxina pelo local, e em pouco tempo o ambiente parece outra vez com um local perfeito para realizar poderosas magias.

Troco minhas roupas cotidianas por uma túnica de linho branca, bordada com runas e sigilos mágicos, e amarro em volta da cintura um cordão repleto de contas metálicas com runas gravadas.

Quando termino meus preparativos e ritos, a sala está mergulhada em uma leve névoa com cheiro de ervas e eu já consigo sentir minha consciência se alterando levemente enquanto cantarolo uma antiga melodia que aprendi com Gullveig.

Meu corpo se movimenta pelo lugar em uma dança ritualística na qual mal tenho consciência dos meus movimentos, e não demora muito até que a visão venha até mim.

Em um piscar de olhos, eu estou em pé no meio da escuridão, cercada pelos rugidos e rosnados furiosos de uma fera. Eu corro aos tropeços na direção do som, caindo sobre meus joelhos depois de alguns passos. Ergo o olhar enquanto recupero o fôlego, sentindo uma energia opressora me envolver completamente.

Um par de orbes cor de sangue brilhantes surgem acima de mim, não muito longe. Determinada a não me deixar ser dominada pelo ódio que me cerca, aproximo minhas mãos e crio uma pequena esfera de luz branca, que ilumina levemente ao meu redor.

Levo alguns instantes para me adaptar a nova iluminação, e acabo paralisada quando percebo que as orbes vermelhas são na verdade os olhos de um grande lobo. Escuto o som pesado de sua respiração acelerada e ele rosna, expondo suas enormes presas, do tamanho de adagas, á minha pequena luz.

— Vá embora!! - uma voz grave, rouca e profunda ecoa de todos os lados, fazendo a escuridão ao meu redor e a esfera nas minhas mãos tremerem.

Pelo modo como o lobo dá um tranco na minha direção, parecendo ter sido puxado ou segurado por alguma coisa, acabo concluindo que a voz pertence a ele. Ainda assim, preciso reunir toda a minha coragem e concentração para não quebrar o transe e retornar ao santuário.

— Estou procurando Fenrir, o senhor dos lobos... - minha voz soa trêmula e não consigo nem olhar diretamente para ele, tamanha é a pressão de sua energia no ambiente.

— E quem é você que me procura? - ele para de rosnar, apenas me encarando com seus olhos furiosos, como se eu não fosse mais do que um inseto irritante.

— Heletria, a Emissária de Lupa... - aumento a luminosidade da esfera, para que ele possa me ver melhor e mostro a marca em meu pescoço, dando inconscientemente um passo em sua direção.

— Então é você...

O lobo fecha os olhos e um minuto de silêncio se segue, durante o qual a energia do ambiente muda e eu penso que vou sufocar. É então que eu vejo algo que não esperava ver. De repente, não estou mais diante de um lobo gigantesco, mas sim de um homem ferido.

Não fosse pelo mesmo olhar cheio de ódio, eu acharia que estava diante de outra criatura. Eu quase engasgo diante da visão do homem majestoso que me encara, caminhando nu em minha direção, com uma postura orgulhosa e energia selvagem.

Sua pele é escura como barras de chocolate, seu corpo musculoso e os cabelos longos e selvagens caem em tranças negras ao seu redor, presas com contas de runas prateadas nas pontas. Seus punhos estão envoltos por fitas brancas que desaparecem nas sombras, a chamada Gleipnir. Em seu peito, pernas e braços eu vejo inúmeras cicatrizes. Magnífico, e ao mesmo tempo intimidante e poderoso.

— O que quer comigo, Emissária de Lupa? - Ele para de frente para mim, a apenas alguns centímetros de distância. Suas iris vermelhas me encarando como se calculassem qual a melhor forma de me matar. Mesmo na ausência total de vestimentas, ele não parece nem um pouco constrangido diante do meu olhar.

— Eu estou entrando em contato a pedido de dois jovens lobos. Skoll e Hati... - ao mencionar os nomes, ele congela, parecendo chocado, o que me leva a explicar. - Eu sei que os nomes são familiares, mas não acho que sejam eles... A questão é que as alcatéias estão sofrendo por conta dos Lobos Negros, e precisam que você volte para liderá-los e retomar o que é seu.

O homem me olha com escárnio e desdém, abrindo um sorriso cruel para mim, com suas presas brilhando mesmo em sua forma "humana". Ele avança sobre mim, sendo contido a poucos centímetros do meu rosto pelas fitas em seus pulsos e tornozelos. Ele encara meus lábios por um instante antes de cruzar seu olhar com o meu, indecifrável.

— Você acreditaria seu eu te dissesse que não estou preso aqui porquê parece um jeito divertido de passar a eternidade? - ele rosna baixinho, sem se afastar um único centímetro de mim.

— Eu sei disso, é claro... - desvio meu olhar do dele, posicionando minha mão aberta sobre seu peito para empurra-lo de volta, mas ele não se mexe, apenas baixando o olhar para minha mão e erguendo uma sobrancelha para mim.

— Sabe, se te deixei desconfortável você poderia apenas ter dado alguns passos para trás... Você é realmente tão fraca a esse ponto, feiticeira? - outro ruído sai de sua garganta, e pelo jeito como seu peito vibra na minha mão, ele está rindo de mim.

— Não desvie do assunto!! - me afasto dele apressadamente, mas o calor e a sensação de sua pele permanecem, mesmo que este não seja o meu corpo verdadeiro. Respiro fundo e volto a encara-lo, determinada. - Eu posso te libertar.

— E porquê eu acreditaria em você?

— Porque eu consegui vir até aqui e falar com você. Se confiar em mim e me guiar com meu corpo verdadeiro até você, tem a minha palavra que irei te libertar.

Ele me analisa em silêncio por longos minutos, então volta a sua forma de lobo gigante e recua para longe da minha luz.

— Eu não posso confiar apenas nas suas palavras. Me procure novamente se quiser, de preferência com argumentos melhores... Eu já ouvi essas palavras antes, feiticeira. E como pode ver, eu ainda estou preso aqui.

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Comments

Valda Martins

Valda Martins

O que ela tem que fazer para libertar ele

2024-04-06

0

Angela Raquel Silva

Angela Raquel Silva

/Angry//Angry/

2024-01-18

2

Nat

Nat

🥰❤

2023-09-19

1

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