Capítulo 20

Acordei antes do despertador tocar, com Tália se remexendo na cama. Virei para ela, ainda me sentindo sonolenta, e tentei enxerga-la enquanto se mexia desconfortável. Aparentemente ainda era madrugada.

— Não consegue dormir? — Minha voz soou horrível.

— Te acordei? Desculpa — pediu num fio e voz. — Na verdade dormi, mas acordei incomodada.

Pra variar, o gesso.

— Meu despertador vai tocar logo — falei virando de barriga para cima enquanto passava a mão pelos cabelos, antes de me arrastar um pouco até apoiar as costas no travesseiro. — Vem cá.

Ela pareceu demorar entender, mas toquei seu ombro e incentivei que se aproximasse até que se arrastasse e eu pudesse passar o abraço ao redor de seu corpo, até ela deitar a cabeça em meu ombro.

— Você tem que aproveitar para dormir — falou.

Devagar deslizei meus dedos por seus cabelos.

— Então dorme — sussurrei fechando os olhos, sem parar de fazer carinho.

— Tenho o dia inteiro para dormir, vou ficar entediada mesmo. Não vejo a hora de voltar a trabalhar.

Ficamos em silêncio enquanto eu pensava sobre o quanto era chato ficar em casa sem fazer absolutamente nada. Geralmente quando eu ficava em casa o melhor era arrumar as coisas ouvindo música. Até lavar roupa me parecia mais divertido as vezes. Tudo para não ficar entendida. Se duvidar até estudar me parecia melhor que não fazer nada. Também tinha a opção de ver filmes, mas a vezes no tédio extremo nada prende.

De repente lembrei de uma coisa.

— Você gosta de ler? — perguntei quebrando o silêncio e ela pareceu se surpreender com o fato de ainda estar acordada.

— Gosto, por quê? Algum livro para indicar?

— Na verdade... — pigarreei. — Você será a segunda pessoa a saber sobre isso, somente a Vic sabe.

— O quê? — perguntou claramente curiosa.

— Sempre gostei de ler e com o tempo passei a escrever também...

— Você escreve livros?

— São só para passar o tempo. Na verdade parei um pouco ultimamente devido aos estudos.

— Sobre o quê escreve?

Eu ri antes de falar e ela cutucou a lateral de meu corpo.

— Fala!

— Romance, extremamente açucarado — dei ênfase nas duas últimas palavras.

— Sério? — Ela riu. — Estou curiosa. Mas são tipo entre...

— São entre mulheres. Comecei mais por causa da Vic e o Thomas. Quando eles começaram a namorar fiquei meio curiosa e li bastante sobre gênero e sexualidade. Não passava por minha cabeça que eu... sabe, mas me atrai bem mais por esse tipo de leitura e como não costumava encontrar muita coisa do meu agrado, comecei a escrever minhas próprias histórias.

— Estou realmente muito curiosa.

— A Vic diz que no futuro vai abrir uma editora e publicar meus livros físicos. — Ri lembrando de suas palavras.

— Você gostaria?

— Acho que sim.

— Estou ansiosa para ler.

— Não crie tanta expectativa, são só algumas historinhas bobas, nada demais.

— Mas foi você quem escreveu, saiu da sua cabecinha. Estou realmente curiosa para saber até onde sua mente é capaz de ir.

— Ela parece não ir muito longe? — Balancei um pouco o corpo dela que riu.

— Muito pelo contrário, sua boba!

Eu suspirei apertando mais ela contra mim e senti sua cabeça aconchegando mais próximo ao meu peito.

— Dorme Luiza — pediu.

Eu fechei os olhos e só acordei novamente quando o despertador tocava, provavelmente pela milésima vez. Definitivamente estava atrasada.

Por incrível que pareça Tália dormia agarrada a mim, meu braço esquerdo estava dormente, mas consegui sair sem que ela acordasse, com certeza foi vencida pelo cansado da noite mal dormida.

Fiz meu café e me arrumei às pressas. Antes de sair digitei no celular o site e meu user para que ela procurasse minhas histórias. Depois de enviar pelo whatsapp, sentei na beirada da cama e observei seu rosto sereno enquanto dormia. Fiz um carinho de leve, ainda sem acreditar ser possível poder fazer aquilo. Era difícil acreditar em tudo o que aconteceu nos últimos dias.

Os sentimentos de Tália por mim são como um presente que sou agraciada a cada dia que abro os olhos. E só faziam três dias desde que eu sabia ser correspondida.

Saí de casa avistando tia Lena abrindo a quitanda. Meu bom dia com certeza foi feliz o suficiente para fazê-la se questionar o motivo de meu bom humor matinal.

Apesar de estar atrasada, o clima estava bom o suficiente para que eu aproveitasse o percurso até finalmente chegar na escola.

As crianças já estavam em sala, juntamente com a professora. A primeira coisa que eu costumava fazer era guardar minha bolsa, por isso foi um choque ao perceber que não estava com ela. Como era possível? Quem vai trabalhar e esquece a bolsa? Bom, eu saí atrasada, mas minha bolsa era parte principal. Como pude era tão avoada? Ao menos não havia nada importante nela que eu precisasse pela manhã, não que lembrasse naquele momento.

As folhas que a professora pediu que eu imprimisse no dia anterior estavam na pasta, que milagrosamente lembrei de trazer.

Oh! Esqueci de fazer as cópias.

Inventei uma desculpa para ela que me fuzilou com os olhos e segui até a secretária. O sinal para os alunos maiores não havia trocado, então ainda estava uma loucura. Passando pelo corredor vi que a sala dos professores estava cheia, inclusive, o professor Petrus não me passou despercebido, por isso apressei o passo no intuito de ir fazer o que precisava o mais rápido possível, mas ao dobrar no corredor me deparei com Tália, quase me matando do coração.

— Desculpa! — falou ela e observei que em sua mão estava minha bolsa. — Você esqueceu isso, decidi trazer para o caso de precisar.

— Não precisava ter se incomodado, você devia ter ficado dormindo mais.

Ela sorriu negando e foi inevitável sorrir diante daquele sorriso lindo. Só de olhar dava para ver que também saiu às pressas.

Enquanto recebia a bolsa notei algumas professoras passando, os alunos não transitavam tanto naquela área, por isso foi inevitável ouvi um pouco do comentário que fizeram após passar por nós. Algo sobre casal. Provavelmente alguma palavra baixa veio logo a seguir, mas preferi ignorar e novamente agradecer Tália antes de me despedir dela, afinal já estava atrasada o suficiente.

A manhã se arrastou, mas por sorte durante a tarde não tinha aula ou reunião, então como em qualquer dia comum eu ia para casa almoçar e estudar, mas sabia ser difícil pensar em estudos quando Tália estava lá.

Estava saindo da escola quando ela mandou mensagem avisando que já tinha comprado nosso almoço. Isso me pregou de surpresa.

Quando imaginei que um dia viveria algo assim, ter alguém em casa me esperando?

Meu sorriso sumiu quando notei a aproximação de alguém, era Petrus.

— Se eu não precisasse fazer umas coisas agora, te levaria em casa — disse ele caminhando ao meu lado em direção ao portão de saída.

— Não precisa se preocupar...

— Veja, eu não queria dizer nada, mas acho melhor você evitar andar por aí com aquela médica.

— O que disse? — perguntei parando, virando de frente para ele.

— As pessoas andam fofocando sobre você e essa mulher. Ela não tem boa fama na cidade. Todo mundo sabe que andava... — ele olhou ao redor antes de continua —, aos beijos com uma enfermeira dentro de um carro nas esquinas.

Revirei os olhos e voltei a andar, não encontrando palavras para responder aquela fofoca idiota.

— Perdão, eu sei que você não faria algo assim, que é uma moça de família. Por isso estou avisando para evitar...

— Petrus, me poupe desse seu preconceito mascarado de preocupação! — Saí andando mais rápido, logo atravessando o portão, que o porteiro havia aberto assim que notou minha aproximação, deixando para trás o professor inconveniente.

Mesmo após a caminhada até em casa ainda me sentia incomodada com a lembrança do que Petrus disse, mas assim que atravessei a porta e avistei Tália usando óculos de grau enquanto colocava copos sobre a mesa, onde já haviam duas quentinhas, esqueci tudo e o sorriso em meu rosto foi imenso. 

— Bem-vinda ao lar! — disse ela. — Só faltou um avental para finalizar a fotografia da esposa dedicada que espera a esposa em casa após o trabalho.

Gargalhei antes de largar os livros e a bolsa no sofá, notando a pequena bagunça sobre a mesinha de centro. Meus olhos foram logo para o notebook aberto no site que indiquei.

— Você leu? — Me aproximei dela que fez a volta na mesa e pude puxa-la devagar para meus braços, selando nossos lábios rapidamente.

— Quase não consegui parar pra comprar nosso almoço — falou passando o braço livre ao redor de meu pescoço. — Você é tão boa.

— Sou? — Ela confirmou sorrindo, diante de meu jeito sem graça. — Vamos comer, senão vai ficar gelado.

Fui lavar as mãos e logo depois sentei ao lado dela que servia nossos copos com suco, começando a falar sobre meu livro me deixando ainda mais constrangida, durante todo o almoço.

— Você é uma romântica — dizia enquanto eu já levava os copos até a pia. — Podia ler para mim, o que acha?

— O quê? Meu próprio livro? Nem pensar!

— Poxa Lu, ia ficar tão bonitinho você narrando.

— Já é constrangedor o suficiente saber que está lendo.

Por minha visão periférica notei ela jogando as embalagens no lixo e logo depois estava ao meu lado, apoiada de costas na pia enquanto eu lavava os copos e talheres.

— Não quero que me entenda mal, mas talvez, nem sempre eu seja boa em demonstrar o que sinto. Acho importante que saiba disso.

— Você é médica — falei dando de ombros. — Uma vez li que médicos, enfermeiros e outros profissionais da área da saúde são incentivados a não demonstrar sentimentos. Por ser tão ligada ao trabalho talvez isso tenha se tornado natural para você, até mesmo fora do hospital.

— Depois que perdi minha irmã eu precisava de algo em quê me agarrar para aguentar a barra e meu trabalho foi o que me manteve firme até aqui. — Notei ela suspirar desviando o olhar, parecendo pensativa.  — Espero que não me entenda mal caso eu não corresponda às suas expectativas.

— Minhas expectativas? — Ri.

— O quê?

— Nada. — Dei de ombros.

— Fala — insistiu.

— É que... Só de você estar aqui e ter interesse em mim já ultrapassou minhas expectativas, não acho que possa esperar nada mais que isso.

— Como não? Precisa que eu seja boa para você. Não adianta apenas gostar, tenho que fazer por merecer seus sentimentos.

— Você quer? — perguntei e ela franziu o cenho. — Merecer — expliquei.

— Lógico!

— Então pronto, estamos no caminho certo. Não gosto muito de pensar em daqui uma semana ou anos. Eu quero o agora. E agora tenho você — falei pegando um pano de prato onde sequei as mãos.

— Você me deixa completamente sem reação.

Ri da cara que fez.

— Como foram seus relacionamentos anteriores? — Claramente peguei ela de surpresa com a pergunta.

— Nada que me tirasse do eixo — respondeu.

— Você nunca amou alguém de uma forma louca e intensa? — Vi ela sorrir negando.

— Nada comparado a filmes e livros. — Tália se afastou da pia e segurou minha mão, me levando até a sala, onde sentamos no sofá. — Mas também nenhuma se comparava a você.

Sorri baixando a cabeça.

— Boba e inexperiente?

— Você não se enxerga, Luiza?

— Desde que chegou minha casa ganhou um brilho especial, sabia? — falei virando de frente para ela, apoiando o braço no encosto enquanto olhava em seus olhos que eram pura incredulidade. — Eu sempre achei que faltava mais um vasinho para fazer companhia aos outros, lá fora — apontei com a cabeça em direção a janela atrás do sofá —, mas agora que a flor mais linda está aqui dentro, não me parece faltar mais nada.

Eu vi o sorriso dela aumentar gradativamente.

— Eu não fazia idéia dessa conquistadora que habita em você.

— Sou só uma boba romântica.

— Minha linda romântica. — Sua mão livre veio para meu rosto e ela selou nossos lábios.

Ficamos conversando e namorando mais um pouco, até eu decidir tomar banho para depois começar a estudar.

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