Capítulo 03

"Enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas..."

— Acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida — completou a voz masculina finalizando o trecho que eu lia.

Estava encostada a uma estante na biblioteca da cidade durante uma tarde de sábado que decidi vasculhar as prateleiras, parando vez ou outra para ler trechos aleatórios dos livros de Machado de Assis.

Busquei com o olhar o dono da voz, mas percebi que ele estava na fileira de trás, encostado a estante de costas para mim, parecendo folhear um livro.

— Quincas Borba, capítulo XLV — completou fechando o livro em mãos.

Ele virou-se em minha direção, se inclinando um pouco para me ver por entre os livros, colocando a capa do livro ao lado do rosto mostrou que lia exatamente o mesmo que eu.

Era o professor novo e mais comentado da escola. Descobri durante a semana que chamava-se Petrus. Não Pedro ou Pietro, segundo a merendeira. Ele já havia tentado puxar assunto comigo na sala dos professores outro dia, mas não dei muita atenção porque não queria as outras professoras falando bobagens, afinal vi que a última com quem ele parou pra conversar ficou tendo que aguentar fofocas porque segundo as más linguas ela estava dando encima do homem.

Toda aquela fofoca e julgamento em uma escola. Era a esse ponto que as professoras chegavam e eu não queria problemas, não por medo de meu nome cair na boca do povo, mas sim para evitar que eu desse uns tapas na cara de alguém alí, afinal o ambiente era impróprio.

— Gosta de Machado de Assis? — perguntou ele caminhando pela fileira e eu confirmei colocando o livro novamente na prateleira. — Qual seu favorito? Se é que tem um...

— Memórias Póstumas de Brás Cubas — respondi enquanto olhava distraída os livros e ele chamou minha atenção ao chegar na mesma fileira que eu, em sua mão havia exatamente o livro que mencionei.

"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas."

Leu o trecho, logo em seguida fechou o livro e o colocou novamente no lugar.

— Conheço alguém que leu esse livro duas vezes, mas somente porque não entendeu na primeira vez, então leu uma segunda vez anos mais tarde. — Parei de observar os livros e o olhei a espera que continuasse, mas ele ficou calado.

— Então, conseguiu entender? — questionei curiosa.

— Não. — Ele riu divertido.

— É uma pena — comentei saindo daquela fileira e a moça da recepção me avistou, então sorriu avisando que não encontrou nos registros o livro que havia ido procurar.

Não voltei a falar com o professor Petrus, saí da biblioteca às três e meia da tarde em minha bicicleta de cor rosa bebê, com cestinha. A coisa mais linda que eu já tinha ganho, afinal foi meu pai quem pintou e montou ela inteira do jeito que eu queria. Pude escolher até a cestinha toda cheia de detalhes que ele foi comprar em outra cidade. Meu pai gosta de inventar e inovar, não é atoa que as nossas casas são cheias de móveis reaproveitados que ele faz milagres e deixa tudo como se fosse novo, só que bem mais bonito.

Aproveitei a tarde livre para passar no café de Victoria, que naquela hora com certeza tinha menos movimento já que o pico era às três em ponto, quando o pão da tarde fica pronto e o pessoal chega aos montes.

Logo na entrada parei pra ver os vasos de flores do lado de fora, havia umas de cor lilás que chamou minha atenção então anotei mentalmente que deveria lembrar de comprá-lo pra fazer companhia aos outros que eu tinha na varanda.

— Olha só quem apareceu — falou Victoria vindo em minha direção carregando uma bandeja. — Faz quase uma semana que encontrei tua mãe. Está se escondendo, Luiza?

— Que imaginação é essa? — Me acomodei em uma mesa e ela sentou na cadeira à minha frente. — Acha que sou desocupada? Tenho que trabalhar para pagar a água que rego minhas plantas.

Nós duas rimos, mas fomos interrompidas por Thomas que aproximou-se da mesa e do nada colocou um prato com um pão redondo, bem atraente.

— Prova — disse ele em tom mandão, cruzando os braços.

Eu arqueei as sobrancelhas olhando desde o padeiro até a mulher dele que tinha um sorriso contido esperando que eu provasse, então peguei o pão e dei uma mordida. A massa era uma delícia, do tipo que dá vontade de dar uma mordida trás da outra, tão bom e prazeroso que eu só consegui resmungar algo que dava para entender estar aprovado e Thomas sorriu abertamente, assim como Victoria.

— O nome dele é Victoria. Vou preparar alguns para você levar — disse ele, em seguida saiu voltando para a cozinha.

— Sério que ele fez um pão com o seu nome? — perguntei só para ver ela sorrindo toda boba, confirmando.

— Eu até ajudei com a receita — disse orgulhosa.

— Bom, eu quero muitos victoria para a viajem. — Rimos. — Ah, me diz se você tem esse livro. — Com a mão livre abri minha bolsa sobre a perna e retirei o pedaço de papel de lá, logo depois entreguei a ela.

O Flores, Livros e um Café tem as três coisas em um só lugar e eu nem sei porquê ainda ia naquela biblioteca da cidade, que já estava ultrapassada e o acervo que deixa a desejar quando se trata de livros atuais.

Victoria levantou e depois de ir na área onde fica a estante com alguns livros expostos voltou carregando exatamente o que eu queria e também uma xícara de café que colocou encima da mesa.

— Já falei que amo esse lugar? —  disse pegando o livro das mãos dela e aproveitando também para dar um gole no café. Minha amiga confirmou vendo algumas pessoas entrando então foi atendê-los. — Trás mais Victoria's, é uma delícia! — gritei aquilo e logo em seguida nós duas rimos feito idiotas.

Era tão bom ver o quanto aquele lugar ia bem. Victoria e Thomas não foram meus amigos durante a escola, ela sempre estava grudada nele e os dois viviam sempre em seu mundinho particular. Acho que só eles mesmo não percebiam que se gostavam.

Naquela época eu era mais do tipo que lia horrores e observava as pessoas de longe, mas acabei sabendo a história deles toda, afinal Irenoi é esse tipo de lugar que você escuta várias versões. E de tanto ouvir acabei me aproximando dela quando abriu o café, mas não por curiosidade e sim admiração porque apesar de tudo ela e Thomas nunca baixaram a cabeça.

Acabei comendo três pães Victoria e tomando dois cafés enquanto lia o começo do livro aproveitando que a mesa era afastada e bem iluminada, próximo ao janelão onde ficavam os vasos.

Depois de satisfeita peguei além dos outros pães que Thomas me deu, também alguns de queijo para levar pra minha mãe, sem esquecer o vaso que acomodei na cestinha da bicicleta com cuidado, então me despedi dos dois e segui meu caminho no intuito de passar na casa dos meus pais.

Logo na entrada ouvi a falação já conhecida de minha mãe, sinal que havia visita. Fui logo na cozinha onde encontrei ela conversando com minha tia Olívia que tomava café e bastou ver os pães foi a primeira a abrir a sacola para pegar um.

— Podem falar o que quiser, mas aquele Thomas faz uns pães gostosos, né? — dizia minha tia em meio a mastigação. — Ouvi falar que a filha da Aurora vive rondando a padaria paquerando ele.

Eu, que pegava uma garrafa na geladeira, revirei os olhos ouvindo aquela conversa. Mamãe não ficava atrás, entrava na onda e ia longe falando da vida alheia.

Bastava uma pessoa para inventar e logo todas as senhoras de Irenoi sabiam de forma ainda mais exagerada porque fofoca é assim, quanto mais boca fala mais ela cresce e muda, até se tornar algo assustador.

— Mãe, já vou indo depois venho aqui. Tchau tia Olívia! — Me despedi ouvindo ela pedir para ficar e mamãe dizendo para eu ir na missa de sétimo dia de alguém que ela conhecia, mas eu não fazia idéia de quem era, então gritei um "se der eu vou" e saí portão a fora.

Chegando em casa cumprimentei tia Lena que estava na entrada da quitanda, olhando quem ia e quem vinha, então subi com minha bicicleta com certa dificuldade os degraus da escada até finalmente acomoda-la junto a grade com cuidado para não bater nos vasos.

Retirei o vaso que estava na cestinha e coloquei encima da mesa de ferro, mas olhando bem não combinava alí por isso decidi que o colocaria na janela já que havia grade de proteção, ele ficaria seguro.

Assim que entrei em casa liguei a TV, sem nem prestar atenção no canal que estava, afinal era só um vício mesmo. Abri parte da janela para colocar o vaso, logo depois caminhei para o quarto retirando minhas roupas pelo caminho, ficando somente de calcinha.

Era bom demais viver sozinha, sem sombra de dúvidas. Eu podia comer na hora que quisesse, andar nua pela casa, deixar a TV ligada pelo tempo que quisesse, passar horas no banho e ser eu mesma.

Poder externar a pessoa estranha que sou é a melhor das sensações.

O que eu não esperava era que a filha da vizinha do lado estivesse tão inspirada a ouvir música alta com letras pra lá de estranhas atrapalhando meu momento de reflexão. Não era sempre que ela fazia isso, somente quando todos saiam de casa e ela parecia querer que o mundo ouvisse sua playlist.

Não demorou para uma das moradores da pensão do outro lado da rua abrir a janela e gritar algum desaforo e logo a menina gritou de volta lá da casa dela.

Eu mutei a tv para ouvir melhor a briga que não demorou a se tornar insultos da parte da menina. Corri no quarto, vesti uma blusa grande e saí na sacada para ver a moça lá na janela do segundo andar da pensão e a menina na janela da casa de baixo —  no meu lado da rua — mandando a outra ir tomar em vários lugares nada decentes.

Nada mal para uma tarde de sábado, hein? Acabei rindo muito observando aquilo, encostada na grade da varanda.

Por sorte — ou azar — a mãe da menina chegou carregada de compras e aí já viu né? Meu excesso de riso acabou, afinal elas duas entraram para o quebra pau continuar de forma particular.

Prestes a voltar para dentro desviei o olhar, parando lá do outro lado da rua, numa janela da pensão onde avistei aquela mulher do outro dia segurando uma xícara e usando uma camisa grande de botões. Ela parecia me olhar e sorriu, logo depois entrou fechando a porta.

— Que baixaria hein, Luiza? — gritou lá do pé da escada a tia Lena. — Essa menina não tem vergonha na cara.

— Ela é jovem, tia Lena.

Ri enquanto ela bufava voltando para dentro da quitanda e eu voltei a entrar em casa.

Na manhã de domingo acordei sentindo o cheiro do café de minha mãe e quando virei na cama avistei no corredor ela passando com minha roupa suja, resmungando alguma coisa. Enfiei a cara no travesseiro não acreditando que novamente ela pegou a cópia da minha chave na bolsa e entrou em minha casa enquanto eu dormia.

— De novo mãe? — resmunguei parando na porta da lavanderia coçando a cabeça e bocejando.

— Claro, você não lava roupa! Se eu não vier aqui fica tudo uma imundície.

— Eu mereço.

Depois de escovar os dentes, vestir um short e prender meus cabelos, peguei uma caneca que enchi de café depois peguei a cestinha onde havia botado os pães que trouxe no dia anterior e segui até a varanda. Ainda era oito da manhã, o melhor horário para tomar café olhando meus vasos, desfrutando do silêncio da rua em um domingo.

— O pão do Thomas é tão bom que ainda tá fofinho. — Ouvi minha mãe gritar lá dentro enquanto eu já sentava do lado de fora.

Tomei café na santa paz e quando já levantava para entrar avistei lá embaixo aquela mesma mulher do outro dia, saindo da pensão.

— Bom dia! — disse ao me ver próximo a grade, observando, então respondi de forma educada. — Posso te pagar uma bebida hoje.

— Ah, não precisa. — Sorri sem graça e ela pareceu pensar em algo antes de falar.

— Tudo bem. Então me faz companhia em uma bebida hoje? — Seu sorriso foi bem convincente então eu sorri de volta confirmando. — Que tipo de suco, refrigerante ou cerveja você gosta?

Me inclinei apoiando melhor na grade enquanto pensava sobre aquela pergunta. Uma cerveja cairia bem, mas era domingo então no dia seguinte eu tinha aula.

— Trás budweiser — falei por fim e ela mais uma vez sorriu, confirmando.

— Às oito bato aí, pode ser? — Observei seu sinal com o polegar em minha direção e fiz o mesmo confirmando a ela que seguiu subindo a rua.

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Comments

Carvalho

Carvalho

tu tava observando a briga e alguém estava te observando a observar a briga. e com certeza alguém estava observando ela a te observar a vc observando a briga. isso significa que estamos sempre sendo observada.

2023-06-04

1

Carvalho

Carvalho

eita que o ego dele subiu. aposto

2023-06-04

0

sua crush? ~ ♀️🔞

sua crush? ~ ♀️🔞

puxou isso da tua mãe né tu , acabar fala da mãe dela marrapaizi kkk

2023-04-29

0

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