Capítulo 17

Eu ainda estava com a conversa com minha mãe na cabeça, enquanto entrava em casa. Segui até a cozinha onde tomei água, ouvindo a voz de Tália vinda o quarto. Ela estava falando com alguém, provavelmente ao telefone.

Sentei no sofá da sala e liguei a televisão. Ainda era cedo, mas não tinha nada realmente interessante para ver, ainda mais estando com a cabeça cheia de Tália. Eu sabia o que queria e que poderia fazer, mas a insegurança estava no controle.

Me assustei ao ouvir a porta do quarto e de lá saiu ela.

— Algum problema? — perguntei vendo sua expressão de quem não estava nada satisfeita com alguma coisa.

— Esse braço — falou sentando ao meu lado. — Amanhã é a parada na capital e eu tinha marcado de encontrar algumas amigas, mas acabei ficando nessa situação.— Ela suspirou.

— Parada?

— LGBTQ...

— Oh, sim! — Desviei o olhar para  televisão enquanto pensava sobre aquilo. — São quase cinco horas de ônibus até a capital. — Ela concordou. — Que horas saímos?

— O quê?

— Você está com as pernas ótimas. — Ela riu. — E eu posso ir e te ajudar com qualquer coisa. Dependendo de como seja posso até proteger o seu braço.

Tália riu novamente, claramente não me levando a sério.

— Está brincando, não é?

— Claro que não!

— Luiza, pode ser cansativo e até estressante. Além do mais que na segunda você tem trabalho. Também... Enfim.

— Que bobagem! Somos jovens, vamos nos divertir. Tenho certeza que vai ter boa música, não é? Você não pode dançar muito, mas com certeza vai ser bom encontrar suas amigas.

— Tenho que concordar, sinto falta delas.

— Então pronto!

Mesmo um pouco relutante Tália por fim concordou e assim acabei me reprogramando inteira, afinal meus domingos costumavam ser sempre voltados para arrumar a casa, ir ao parque e estudar.

Começamos pela parte menos difícil, encontrar uma roupa. Tália desenterrou da mala no canto uma variedade de blusas coloridas, então foi fácil decidirmos apenas nossos shorts e calçados confortáveis.

Eu quase não dormi a noite. Nunca tinha ido ou sequer cogitado ir a um evento daqueles, mas Tália estaria lá, então seria perfeito.

Acordamos cedinho no domingo, colocamos o necessário em uma mochila e saimos. No caminho tomamos café e logo depois fomos para o ponto. Seria uma longa viagem.

Eu tinha ido à capital umas três vezes no máximo, durante a infância e adolescência, por isso estava ansiosa para saber como seria depois de tanto tempo.

Tália não parava de dizer que era loucura minha já que no dia seguinte tinha trabalho, mas eu já tinha uma desculpa mentalmente para dar. Geralmente meu número de faltas no ano não passava de duas ou três no máximo, ao contrário das professoras concursadas.

Eu já estava toda dormente quando finalmente chegamos. Minhas pernas já nem lembravam mais como andar.

Por sorte uma amiga de Tália, que se chamava Carla, foi nos buscar no ponto. Nós íamos almoçar e nos arrumar na casa dela. Casa essa que estava uma loucura. Aparentemente era o ponto de encontro de outras pessoas.

Logo na sala havia uma moça maquiando uma drag queen, outra se maquiava sentada no chão, ao lado de algumas sacolas de onde caiam algumas roupas brilhosas. No sofá tinham fantasias e vários objetos que eu desconhecia.

Todos cumprimentaram Tália e a mim que sorri tentando disfarçar o quanto observava tudo com atenção.

— Coloca a mochila no meu quarto, tem comida na cozinha — disse Carla indo sentar diante da garota no chão e após dar um selinho nela, pegou a paleta de maquiagem, logo começando a ajudá-la a pintar o rosto.

— Luiza? — chamou Tália e só então me dei conta de que fiquei tempo demais observando as outras.

Depois de deixar a mochila no quarto, que também estava uma bagunça, com roupas espalhadas sobre a cama, seguimos até a cozinha onde encontramos sanduíches e batata frita sobre o balcão. Tinha coca na geladeira onde Tália pegou e colocou diante de mim.

— Abre? — pediu indo sentar num banco e eu confirmei, logo abrindo a garrafa. — Você deve estar assustada.

— Eu? Por quê?

— A bagunça da Carla. — Ela riu pegandou um sanduíche na caixinha. — Geralmente nossos amigos vem se arrumar aqui. Ainda faltam alguns. O Pedro e o Gustavo namoram, o Renato é encalhado e a...

Ela começou a contar sobre a roda de amigos que fez na época em que vivia na capital e como os conheceu.

— Lembra que falei sobre ter perdido uma namorada por dar selinho em amigas? — confirmei. — Foi a Carla.

— A amiga?

— A namorada. — Arqueei as sobrancelhas e ela sorriu. — Continuamos amigas.

— Que loucura, ou melhor, que legal.

— Quem vai ser a próxima? — Surgiu na porta da cozinha a moça que antes estava maquiando a drag.

— A Lu! — anunciou Tália, me surpreendendo.

Eu nunca nem tinha me maquiado muito, mas não ia recusar.

Assim que terminei de comer fui para a sala onde passei alguns minutos com a moça que chamava-se Gabrielle.

Quando ficou pronto ela me entregou o espelho pequeno e eu não pude esconder a surpresa. Estava lindo. Amei a sombra com as cores da bandeira e as estrelinhas ao redor de meus olhos.

— Tá linda — falou Tália surgindo de repente, já maquiada e arrumada.

Depois de todos prontos saimos a pé mesmo, pois não ficava muito longe o ponto de encontro com os outros.

Todas as pessoas que caminhavam na mesma direção que nós, formavam um lindo arco-íris pelas ruas.

Tália, ao meu lado, conversava animada com os amigos. Sobre o braço com o gesso ela tinha uma bandeira. Estava linda como sempre. Um lindo raio de sol cintilando em cores diversas, capaz de ofuscar tudo e todos ao seu redor.

— Desculpa, percebi depois que não perguntei se queria fazer make — cochichou voltando-se para mim. — Desculpa se te deixei desconfortável...

— Claro que eu queria! Não precisa se desculpar.

— Me empolguei e comecei a jogar pra você roupa colorida e maquiagem, quando na verdade só quis vir me acompanhar.

— Você não jogou nada. Eu quis vir te acompanhar sim, mas também porque queria viver essa experiência e...

— Meninas, vem! — chamou Carla lá na frente.

Nos apressamos até alcançar a avenida onde encontramos os outros amigos, que estavam com um isopor de debidas no chão. Ao longe um trio elétrico com alguém cantando fazia a animação do local. Estavamos afastados, não estava tão lotado, mas era possível ouvir a música.

Me ofereceram uma cerveja e eu aceitei apenas por educação, afinal não queria beber.

— Eu quero dançar! — gritava Tália para os amigos.

Eles eram tão divertidos. Todos alí estavam se divertindo dançando, conversando, se expressando da maneira que queriam, com fantasias, cartazes e beijos. Sem medo. Era a coisa mais louca, linda e intensa que eu já havia visto de perto.

Eu nunca tinha me sentido tão viva e bem, mesmo estando cercada de pessoas que nunca vi antes.

A bebida em minha mão simplesmente sumiu e junto com ela foi minha falta de coragem de me deixar envolver pela música.

De repente me vi cercada de gente se beijando, tanto os amigos de Tália quanto os estranhos que nos cercavam.

— Ei! — gritou a médica, me puxando de repente.

— É a hora do beijo ou algo parecido? — perguntei apontando para os outros e ela riu.

— É a hora de ser feliz! — Sorriu segurando meu rosto com a mão livre.

Eu nem queria pensar em nada. O universo já tinha deixado claro que aquele era o momento e lugar perfeito para fazer o que mais queria há tanto tempo.

De início selei nossos lábios. Tália me olhou tão surpresa e aparentemente assustada que por um momento pensei ter feito besteira. Meu estômago gelou. Mas logo depois decidi mandar aos ares aquele medo bobo. Puxei ela pela cintura e beijei sua boca de uma vez.

Na minha cabeça só tinha o quanto eu precisava dela, o quanto queria ela junto a mim, exatamente como quando seus lábios se moldavam aos meus e sua língua deslizava pela minha. Foi totalmente diferente de qualquer fantasia, afinal era mil vezes melhor, mais gostoso, intenso e demorado.

Eu não queria solta-la mais, mas o barulho ao nosso redor nos fez parar e quando nossos olhos se encontraram eu queria que ela visse neles tudo o que eu sentia naquele momento, já que minha voz parecia ter sumido.

Os amigos dela logo começaram a falar alguma coisa e assim eu pude respirar, aproveitando que alguém me entregou água. Só então percebi que meu coração estava quase saindo pela boca. Eu não estava bêbada, mas com certeza o pouco de álcool que bebi surtiu algum efeito.

Não demorou a estarmos cada vez mais cercados de gente e em meio a toda aquela muvuca, aos pouco fomos perdendo alguns de seus amigos de vista,

Eu estava tão nervosa. Nunca havia me sentido daquela forma antes. Tudo era novo e um pouco assustador, mas por um lado sabia que era apenas por estar acostumada a mesmice de uma vida pacata em Irenoi, sem que meus sentimentos e quem sou fossem postos a prova.

— Luiza? — falou Tália em meu ouvido. — Olha, eu não quero que pense que me aproveitei da situação.

— Do que está falando? — Virei para ela que apenas fez uma careta, mas eu entendi do que falava. — Ei, fui eu quem te beijou.

— E isso me confundiu ainda mais.

Seus olhos vieram minha boca e ela me beijou tão de repente que cheguei a me assustar inicialmente, mesmo assim correspondi.

Era difícil acreditar que aquilo realmente estava acontecendo. Eu estava completamente fora da minha realidade. Nunca em toda minha vida pensei que um dia estaria no meio da rua beijando uma mulher sem nenhuma preocupação — muito pelo contrário, eu estava muito feliz.

Mais populares

Comments

Valdenia Silva

Valdenia Silva

finalmente ,espero que elas fiquem logo juntas😍

2024-09-12

1

Carvalho

Carvalho

minha alegria.
o povo daqui de casa tão me chamando de doida kkkkkk

2023-06-05

1

A.Maysa

A.Maysa

caramba era disso que tava falando

2023-02-27

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!