Depois da aula voltei para casa e comprei uma das quentinhas que tia Lena costuma vender. Subi para casa onde pude finalmente descansar após um banho. Sentei para comer assistindo, mas minha bolsa ao lado me fez lembrar do papel, então larguei tudo e após digitar o número de Tália em meu celular, disquei ligar.
Não tinha nada a perder mesmo e eu sabia que ela estava de folga.
Tália atendeu no primeiro toque, como se já estivesse com o dedo no botão. Eu comentei isso que fez ela rir afirmando que estava planejando o que almoçar, então contei sobre as quentinhas da tia Lena.
— Se quiser vir comer aqui, será muito bem-vinda — comentei enquanto ela dizia procurar a carteira.
— Não quero incomodar. — Eu ri negando. — Ok, chego aí daqui a pouco.
Desliguei o celular e pulei do sofá para trocar minha blusa rasgada, logo depois fui na cozinha ver se tinha refrigerante.
Bom, como já esclareci antes, eu costumava ser alguém muito focada em livros e isso me impossibilitou de me aproximar muito das garotas para manter uma amizade. O máximo que eu tinha era um melhor amigo, o Lucca, que por sinal estava viajando para a Argentina. Então devo ser meio carente de amigos, por isso fico tão eufórica quando me aproximo de alguém novo.
Não demorou para Tália bater na porta e eu abri vendo o sorriso largo dela que usava um boné e parecia ter vindo de uma corrida, mesmo às 13 horas da tarde.
A médica segurava a quentinha, dizendo o quanto estava realmente quente, por isso abri caminho para que rapidamente entrasse e pudesse coloca-la encima de minha mesa de madeira, com cadeiras coloridas.
Fui pegar duas latinhas de refrigerante na geladeira e uma colher, depois sentei ao lado dela.
— Você não está mesmo chateada por ontem? — perguntou me olhando com um certo receio enquanto recebia a colher.
Fiquei um pouco nervosa pela pergunta repentina, já que estava me esforçando para deixar o assunto pra lá.
— Claro que não! Você veio de outro lugar, com certeza seus costumes são diferentes — falei e ela riu.
— Não é que meus costumes sejam diferentes, só que... tenho essa mania de dar selinhos em minhas amigas, principalmente quando bebo um pouco, afinal sou fraca para bebida, por falta de costume. — Ela desviou o olhar para a quentinha. — Já perdi até namorada por causa isso.
— Nossa, você perdeu namorado por dar selinho em amigas?
— Namorada — repetiu a palavra dando ênfase na última sílaba e eu com certeza fiquei com cara de idiota naquele momento.
— Aaah — falei desviando o olhar. — Você é lésbica — comentei de um jeito meio estranho.
— Algum problema? — Sua sobrancelha arqueada me olhando de forma um tanto intimidadora foi algo bem desconsertante.
— Magina, nenhum! — falei rapidamente.
— Ouvi tantas coisas desde que cheguei aqui, por isso fiquei com um certo receio de você pensar alguma bobagem devido ao que fiz ontem.
— Que tipo de coisas?
— Bom, eu vi que o dono de um café bem frequentado aqui no centro, é Trans e alvo de muitas fofocas. As pessoas não fazem o menor esforço para disfarçar seus preconceitos e não é duas nem três de idade avançada, são várias pessoas, incluindo jovens de mente pequena que saem por aí falando mal na cara dura.
— Você achou que eu fosse uma dessas pessoas cérebro de ervilha?
Tália sorriu sem graça, confirmando enquanto retirava o boné da cabeça, então o colocou encima da mesa.
— Não se preocupe quanto a isso — afirmei dando uma colherada na comida e pelo canto do olho pude notar o sorriso que ela deu.
— Fico feliz — disse mordendo a ponta da colher.
— Feliz? — murmurei com a boca cheia.
— Por confirmar que me aproximei de alguém... Legal.
Não botei muita fé na última palavra que ela pronunciou, mas mesmo não entendendo exatamente o que queria dizer, preferi não entrar em detalhes.
Nós duas começamos a comer enquanto comentávamos sobre o quanto a comida da tia Lena era boa e como Tália estava se virando em relação as refeições enquanto estava na pensão.
Acabei sabendo um pouco mais sobre a médica do que pretendia, afinal eu estava sempre evitando falar sobre mim e levando a conversa para ela, que não parecia ter problema algum em falar sobre si.
Aos 31 anos ela tem a aparência de alguém da minha idade. Nunca contou com apoio financeiro dos pais e teve a faculdade toda paga pelo próprio trabalho e também com a ajuda de uma tia, quem mais apoiava e estava sempre em contato.
Falamos tanto enquanto comíamos que nem nos demos conta quando acabamos.
— Gosta de tomar café depois do almoço? — questionei enquanto jogava as embalagens das quentinhas no lixo. — Tenho uns sachês de capuccino que acho uma delícia.
— Vou te deixar em paz agora, você deve ter que ir trabalhar ainda...
— Não! Estou livre — falei já colocando a água para esquentar. — Meu turno é só pela manhã, hoje vou ficar em casa estudando.
— Que bom. Foi ótimo ter sua companhia para o almoço, mas agora tenho mesmo que ir — afirmou já ficando de pé. — Não tenho trabalho hoje, mas tenho tantas coisas para resolver no tempo livre que nem sei se posso chamar de folga.
— Que pena. — Não pude evitar fazer um muxoxo. — Tudo bem então.
Acompanhei ela até a porta e a observei descendo a escada, logo depois voltei para dentro e enquanto minha água esquentava decidi ir retirar do varal lá atrás as roupas lavadas no dia anterior.
Enquanto pensava sobre a conversa com Tália, algo chamou minha atenção. Havia somente duas calcinhas lavadas, quando eu lembrava claramente ter cinco, então fiquei rodando para ver se o vento havia jogado elas em algum canto da lavanderia ou se haviam sido jogadas sobre o telhado das casas vizinhas, mas não tinha sinal de nenhuma. Em minha mente estava claro que haviam cinco ao invés de somente aquelas duas, que joguei sobre minha cama junto com o resto das roupas. Segui para a cozinha com aquilo em mente, temendo que tivessem sido arremessadas pelo vento para mais longe.
Deixando minhas calcinhas de lado, preparei meu capuccino e após espalhar todo meu material de estudo sobre a mesa da cozinha, tentei focar minha mente no conteúdo.
— Eu já falei várias vezes para colocar grades naquela varanda — dizia minha mãe ao telefone, quando questionei se estava ficando louca a respeito das calcinhas. — Pode ter sido o vento, mas seu varal é tão pequeno que nem sei como entra vento suficiente para secar as roupas. Nessa semana traga suas roupas pra cá, tem muito mais espaço!
— Não precisa mãe. — Suspirei deslizando os dedos pelo notebook em meu colo. — E não invente de mandar o papai vir colocar mais grades aqui.
Eu havia me arrependido de comentar com ela. As vezes a super proteção de meus pais me sufocava.
Desliguei o telefone e fixei o olhar na tela do notebook. Já eram seis da noite, eu havia passado horas estudando, por isso parei um pouco e fui para o sofá, onde decidi relaxar minha mente com algo do qual gostava muito.
Abri a página do site de livros online — algo que não fazia há semanas — e observei a absurda quantidade de notificações. Era um tanto assustador que houvessem tantas, mas ao mesmo tempo bem empolgante.
Mais um suspiro saiu por meus lábios e por um momento pensei sobre mostrar meu segredo a Tália, mas logo em seguia balancei a cabeça tentando esquecer aquilo.
Estava perdida em pensamentos quando a buzina de um carro chamou minha atenção. E como não era sempre que carros passavam por minha rua, levantei indo até a varanda para observar o modelo preto que estava na esquina, próximo a quitanda da tia Lena, já que não era possível passar um carro em nossa estreita rua, exatamente. A buzina soou novamente e pude ver que da pensão saiu Tália, toda arrumada, com um vestido longo de festa na cor preta, segurando uma bolsa de mão, indo em direção ao carro de onde vi sair uma mulher de dentro, também arrumada, mas ao contrário da médica, suas pernas estavam a mostra. Elas pareceram trocar algumas palavras — sempre sorrindo —, em seguida deram um selinho que me fez arquear as sobrancelhas observando a cena e logo em seguida entraram no carro que logo saiu.
Eu pude notar que nessa hora tia Lena estava com freguês, pois assim que o carro se foi um casal atravessou a porta da quitanda já de saída e a mulher correu para fora.
— Quem era no carro? — perguntou ao me ver ainda de pé na varanda.
— Ninguém que a gente conheça — respondi e logo em seguida entrei em casa.
A semana passou até que rápido. Entre trabalho, estudos e ajudando minha mãe a deixar tudo ok em casa para que pudesse viajar com papai em comemoração ao aniversário dele. Eu havia ficado de comprar a tal vara de pesca, que acabou esquecida em algum lugar de minha mente cheia de assuntos aleatórios, então me desculpei antes dos dois partirem na quinta-feira e afirmei que quando voltassem daria o presente.
...(...)...
A aula de sexta-feira já havia acabado e quando a mãe do último aluno o levou embora eu fiquei arrumando a sala que estava uma verdadeira bagunça.
Em meio a meus devaneios sobre o fim de semana, percebi a aproximação de alguém na porta, onde logo avistei o professor Petrus que sorriu sem mostrar os dentes, enfiando uma mão no bolso da calça, entrando devagar.
— Tentei falar com você durante toda a semana, mas acho que não costuma ficar muito tempo na sala dos professores. Parece estar sempre fugindo... — disse ele dando um sorriso de canto.
— É, eu não costumo mesmo — falei um pouco sem jeito.
Não entendi o motivo dele estar á minha procura, mas não precisei de muito tempo para que fosse logo retirando dois papéis do bolso e estendendo em minha direção.
— Ganhei convites para essa peça e achei ela tão a sua cara que seria um pecado desperdiça-los.
Eu olhei desde os convites até o rosto dele, achando aquilo a coisa mais estranha que poderia acontecer na minha sexta-feira.
— A minha cara? — Peguei os dois convites.
— É uma adaptação de Dom Casmurro. — Gesticulou enquanto eu confirmava suas palavras, olhando o papel. — Com certeza vai gostar.
— Você já viu antes? — questionei e ele negou. — Bom, obrigada, mas não posso aceitar. — Tentei entregar os papéis de volta, mas ele recusou-se a receber.
— Se você não aceitar os convites irão para o lixo...
— Perfao, mas isso não faz sentido, eu mal o conheço. — Fui sincera.
— Não deixa de ser uma boa chance para mudarmos isso. — Ele puxou um dos convites de minha mão. — Te pego amanhã às seis.
— Mas... — O homem saiu porta a fora e nem tive tempo de dizer mais nada.
Ele sequer sabia onde eu morava.
Como ia me pegar?
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Atualizado até capítulo 25
Comments
Carvalho
o momento mendiga kkkkk
2023-06-04
0
Laris 😼
mais por favor autora
2023-02-20
3