Cap. 8 - Evasiva

Perspectiva de Lost

Kelly baixou a cabeça para procurar a chave para entrarmos.

Aproveitei para contemplar seu rosto angelical parcialmente coberto pelo cabelo escorrido e dourado que seguia abaixo dos ombros.

Eu não me cansava de admirar a mulher que para mim era o meu anjo da guarda.

Desde que a vi na praia pela primeira vez, fiquei atraído por ela e desejava que um dia olhasse para mim de forma diferente, não como um mendigo sem lembranças.

Durante o trajeto de volta para casa, minutos antes, eu a ouvi em silêncio, enquanto ela desabafava sobre sua rotina nada fácil de vendedora de cosméticos e também das situações corriqueiras do seu ofício de garçonete nos finais de semana.

Se pelo menos eu descobrisse quem eu era, seria mais fácil ajudá-la e também conquistar o coração dela.

— Achei! — Ela mostrou-me a chave num chaveiro simples de plástico rosa.

Desviei meus olhos para que ela não percebesse minha intenção de retê-la em meus braços.

Com a porta aberta, esperei que entrasse primeiro. Quando fechei a porta atrás de mim, ela me disse:

— Que sono! Preciso dormir que amanhã tem mais!

Falei com delicadeza:

— Boa noite, Kelly! Obrigado por hoje! Gostei muito de sua família!

Ela mostrou seu belo sorriso que se estendia até seus olhos castanhos. Parecia uma princesa dos contos de fada. "Ah, Kelly, me dá uma chance!" Pensei.

Ela continuou:

— Meio malucos, não?! Apesar de toda a confusão de hoje, foi um momento agradável... Boa noite, Lost!

Ela deu meia-volta e observei-a entrar no quarto e suspirei. Essa era minha reação a cada momento que a perdia de vista.

"Seria possível um homem sem lembranças como eu conquistar o amor da minha adorável salvadora?"

Momentos depois, arrumei-me da melhor forma que podia, no sofá e fui dormir. Meu último pensamento: Kelly!

De madrugada, acordei sobressaltado mais uma vez. Sentei no sofá e fiquei recordando o sonho estranho.

Desde que perdi a memória era a mesma situação. Sonhava estar trabalhando numa construção de uma casa e muito irritado, dando ordens bruscas, quando de repente, decidi inspecionar o telhado.

Alguém me estregou o capacete de segurança, mas ignorei e subi a escada.

E assim como aconteceu em outras vezes no sonho, uma pessoa me empurrou lá de cima e antes de bater a cabeça, ouvi pneus cantando no asfalto.

Por que sempre o mesmo sonho conturbado como parecesse ter duas situações?

Estava pensativo, quando ouvi a porta do quarto de Kelly se abrir.

Ela estava num pijama branco com estampas florais e ao me ver acordado, perguntou, sobressaltada:

— Por que está acordado? Teve um pesadelo... Ou lembrou de algo?

— Não, apenas acordei por acaso. —Menti, para não assustá-la. — E você?

— Acordei com uma baita sede.

Ela caminhou até a cozinha, mas de onde eu estava, dava para ver tudo o que ela fazia.

— Você quer também?

— Quero, por favor!

Ela se aproximou de mim e, após entregar-me o copo, puxou uma cadeira e pôs em minha frente. A única luz acesa vinha da cozinha e não dava para ver sua feição com nitidez. Ela suspirou e disse:

— Às vezes sinto falta do meu pai. Lembro-me que eu acordava e ele estava de pé na madrugada para escutar músicas no rádio. Era bom conversar com ele até amanhecer.

Curioso, perguntei:

— Onde ele está?

— Ele casou ano passado e se mudou para um município mais distante daqui. Estou guardando dinheiro para visitá-lo no final do ano.

— Beleza! E sua mãe?

— Ah...Ela mora aqui mesmo na capital, mas com a correria do dia custo visitá-la.

Fiquei tentado a perguntar o motivo de os pais dela serem separados, mas não tive coragem de perguntar. Ela no entanto, como se estivesse lendo meus pensamentos, explicou:

— Minha mãe tinha quinze anos quando casou com meu pai. Ela queria liberdade ao se casar, mas logo percebeu que não era nada fácil a vida de casada. Talvez nem chegou a amar meu pai. Assim que se separou dele há cinco anos atrás foi morar sozinha e queria que eu fosse com ela, mas amo morar aqui. Sei que minha mãe agora usufrui do que ela costuma chamar o melhor momento de sua vida. ...

— Você fica triste por... Não estarem juntos?

— Não... Já superei, mas no começo, não entendia e queria que voltassem, afinal são meus pais, mas brigavam tanto... Acho que minha mãe não era feliz sendo esposa.

— Que pena! Você deve ter sofrido muito com a separação dos dois.

— Coisas da vida! Enfim, depois entendi que não vale a pena ficar com alguém sem amor.

Eu concordei com a cabeça e com o desejo de saber mais sobre ela, perguntei:

— A separação do seu pai influencia no seu modo de ver o amor?

Ela me olhou, séria.

— Não sei... Talvez. .. Se eu me casar, não quero ter que passar por um divórcio. Diferente de minha mãe, escolho demais, esse tem sido o meu dilema, pois ainda não encontrei o amor de verdade.

Fiquei sobressaltado por aquela revelação. Como eu, um simples "Zé ninguém", poderia almejar um coração tão exigente? Falei, então:

— Sabe, Kelly, não lembro do passado, mas penso que o amor não funciona assim... Você não escolhe a quem amar... Esse sentimento vem naturalmente.

Ela ficou quieta. Custou falar de novo.

— Bom, estou aguardando até hoje.

—Ela forçou um sorriso. — Vou preparar o café já que está prestes a amanhecer e Felipe vem cedo, pois ele ainda vai trabalhar no shopping.

— Ele me falou que é segurança, lá.

— Isso mesmo.

Depois dessas palavras, ficamos calados. Esfreguei meu olhos e levantei-me. Retirei o lençol do sofá e dobrei-o.

Quando virei-me para minha surpresa, ela me observava. Sem desviar o olhar, ela disse:

— Até que você ficou bonitinho, após a "transformação " no salão de beleza.

Nem acreditei no que ouvi. Fiquei tão impressionado, que ela começou a rir de mim.

— Será que não é acostumado a receber elogio, Lost?